A história de um casarão novecentista no centro de Santos

Fundada em 1546, como Vila, Santos guarda pouquíssimos registros arquitetônicos do seu tempo colonial, às exceções das edificações de caráter religioso (Conjunto do Carmo – c. 1600; Igreja de Santo Antônio do Valongo – 1640; Mosteiro de São Bento – 1650) e militar (Fortaleza da Barra Grande – 1584; Casa do Trem Bélico – 1640).

É certo que Santos pouco cresceu até meados do século 19, momento em que a economia de São Paulo dava claro sinais de desenvolvimento, alavancado, em especial, pela força do café, que se tornaria o símbolo de uma era de prosperidade para o Brasil. Neste ritmo, surgiam na cidade novos edifícios públicos, como a Casa de Câmara e Cadeia (que hoje chamamos de Cadeia Velha) e dezenas de prédios comerciais destinados a atuar como entrepostos aduaneiros para o porto de Santos.

Nas décadas de 1850/1860, os santistas viveram um boom desenvolvimentista e testemunharam o surgimento de grandes casarões coloniais, em especial nos eixos da Rua Direita (atual XV de Novembro), Rua de Santo Antônio (atual Rua do Comércio) e Rua Áurea (que viria se tornar a Rua General Câmara). Destes, poucos sobreviveram ao tempo, como a Casa da Frontaria Azulejada, o Casarão da Marques de Monte Alegre (atual Museu Pelé), o Sobrado da Hard Hand (atual discoteca Tribal) e a edificação da esquina das ruas General Câmara e Senador Feijó, objeto desta matéria.

Esta edificação em especial, erguida em um dos lugares mais tradicionais do velho Centro, é uma típica construção novecentista de uso misto, ou seja, residencial na parte superior e comercial no térreo. A área onde foi erguida era reduto de armazéns e galpões ligados aos negócios cafeeiros, vocação daquele trecho da cidade.

O casarão nas lentes de Militão, em foto tirada no ano de 1865. O prédio é o mais alto, quando ainda não havia a rua Senador Feijó.
O casarão nas lentes de Militão, em foto tirada no ano de 1865. O prédio é o mais alto, quando ainda não havia a rua Senador Feijó.

Nas lentes de Militão Augusto de Azevedo
O casarão de estilo colonial da Senador Feijó/General Câmara é uma das raras edificações ainda existentes que foram registradas pelas lentes do renomado fotografo Militão Augusto de Azevedo, para o álbum de vistas de 1865, a mais antiga coleção de imagens da história de Santos. Ele aparece como a mais imponente numa via reconhecida como por sua característica comercial de ofícios. Era na Rua Áurea que se concentrava a maior parte dos barbeiros, sapateiros, alfaiates, pintores e açougueiros da cidade santista.

Data da construção
Não existem registros elucidativos sobre a data de sua construção. Em estudos realizados a partir de mapas e fotos ainda preservados, como os de Militão e Marc Ferrez, e baseados em sua técnica construtiva (pedra e cal), estima-se que tenha sido erguida ainda na primeira metade do século 19. Em 2009, o escritório de arquitetura Gepas (Grupo de Estudos do Patrimônio Arquitetônico de Santos), quando da realização de um projeto de restauro do imóvel, promoveu uma ampla pesquisa sobre a efeméride construtiva do casarão, chegando a conclusão de que suas obras tenham sido concluídas na década de 1840.

Uso do casarão
O imóvel, construído em dois pavimentos, indicava claramente a atribuição de uso misto, ou seja, a parte térrea utilizada como área de depósito e armazenagem, e a superior como residência, o que remete à herança tradicional colonial. Porém, naqueles idos do século 19, a tipologia da edificação, para uso residencial, não mais atendia os desejos da classe dominante santista, que começava a separar a vida pessoal da profissional, optando viver em luxuosos palacetes, caso, por exemplo, da família Aranha de Rezende. Assim, o imóvel de uso misto, em geral, era mais utilizado pelo pequeno e médio empresário, para concentrar vida pessoal e profissional num mesmo lugar, em especial com vistas a melhor controlar a produção e movimentação de suas atividades comerciais.

O casarão, em fins do século 19. Propriedade da família Corte Real, que ali mantinha um armazém na parte baixa e residência no andar superior.
O casarão, em fins do século 19. Propriedade da família Corte Real, que ali mantinha um armazém na parte baixa e residência no andar superior. Foto cedida por Paulo Corte Real.

Características arquitetônicas
Os pesquisadores do Gepas, os arquitetos Gino Caldatto Barbosa e Jaqueline Fernándes Alves, não conseguiram identificar o autor do projeto arquitetônico da edificação. Esta ausência de informação é justificável, uma vez os órgãos públicos responsáveis da época não exigiam o registro do projetista da construção na documentação de solicitação de obra.

O sobradão seguiu as referencias formais comuns da segunda metade do século 19, em que preponderavam as janelas e portas arrematadas com vergas arqueadas, e sobrevergas em ressalto. Este tipo de solução é atribuída, no Brasil, ao engenheiro Antônio Fernandes Pinto Alpoim, executor da obra do Palácio dos Governadores, no Rio de Janeiro, técnica que acabou se alastrando e se tornando comum na arquitetura civil ao longo da segunda metade do século 19, sobretudo nas últimas décadas.

No trabalho do Gepas, consta que “o exterior organizado, segundo um plano simétrico, se apresenta com os ornatos em relevo – frisos, cornijas, sobrevergas – e janelas externas de vidro. Chama a atenção a ausência de portas com acesso aos balcões em ferro batido, solução tão comum ao exterior dos sobrados do período, como forma de valorização da fachada”.

A implantação do edifício no lote seguiu a forma tradicional de ocupação recorrente no passado colonial, junto aos limites frontais e laterais do terreno. Erguido com paredes de alvenaria de pedra, técnica construtiva tradicional filiada ao período da colonização, as divisórias do sobrado eram leves, originalmente em tabique feito de taipa de mão, também conhecido como “pedras francesas”, bastante comum nas casas do litoral. “São paramentos unicamente seletivos, dai seu grande emprego em paredes divisórias, sustentadas por sistemas de barrotes e vigas metálicas”, aponta do estudo.

Telhado cascata
O imóvel hoje está destelhado, mas quando de seu pleno uso, apresentava um belo telhado em quatro águas (quatro caídas), com estrutura de madeira e revestido com telhas de barro tipo capa canal. O imóvel possuía originalmente camarinha e beiral com cimalha, voltado para a rua, o que começou a gerar problemas a partir da aprovação dos códigos de posturas do final do século 19, que passou a exigir um sistema de coleta de água da chuva por meio de calhas (quando chovia, a água caia do telhado diretamente na rua, como uma grande cascata).

No estudo do Gepas, alega-se que “o edifício foi concebido para setorizar o programa de necessidades com a criação de acessos independentes mediante a disposição de escadaria lateral e pavimentos com planta livre organizando atividades distintas; o térreo servia para o comércio/depósito enquanto o pavimento superior se colocava possivelmente Como espaço familiar privativo. Enfim, não se tratava de uma residência rica da classe dominante, similar aos palacetes burgueses passaram a ser avizinhar pela avenida Conselheiro Nébias e Rua Sete de Setembro. A obra em questão era modesta, inicialmente erguida sobre o rés do chão, à maneira tradicional como preconizava a legislação precedente ao código sanitário do final do século XIX. Como tinha poucos cômodos segundo um programa de necessidades da época, focado mais nos aspectos funcionais da atividade mista que desvirtuados para a ambientação supérflua do novo modo de vida burguês, em ascensão no período”.

Os pavimentos
O edifício possuía dois pavimentos, cujas funções obedeciam a um tipo de organização frente/fundos. Na parte de cima, ficavam as áreas de estar, no lado fronteiro, seguido da zona de repouso, findada pela sala de jantar, sanitário e cozinha. Na parte de baixo ficavam concentrados os setores de comércio serviços como depósitos e sanitários. “nota-se a herança do habitat colonial através da conformação tradicional da planta em L, dividida em oito cômodos, ficando as áreas molhadas postadas Como espaço agregado ao corpo principal do edifício”.

O estudo do Gepas verificou a existência de poucas mudanças na edificação ao longo dos anos. Quando ocorreram, se concentraram no pavimento superior, com a compartimentação de alguns ambientes. “No correr do século XX a compartimentação dos ambientes em salas para escritório se intensificou, sobretudo, no período da instalação de negócios diversificados. Funcionamento que persistiu um pouco antes do sobrado ficar em desuso e alcançar estado de abandono que hoje se observa”.

Em 2009, quem ocupava o local era a Adega do Gringo.
Em 2009, quem ocupava o local era a Adega do Gringo.

As tentativas de resgate
O estudo promovido pelo Grupo de Estudos do Patrimônio Arquitetônico de Santos, ocorrido em 2009, serviu para embasar uma das tentativas de se resgatar o velho casarão colonial da General Câmara/Senador Feijó. Na época, a parte de baixo era ocupada por uma distribuidora de bebidas (Adega Gringo). Em março de 2010, o projeto de restauro foi aprovado pelo Condepasa.

CRONOLOGIA DOCUMENTAL DO IMÓVEL

Entre os documentos relativos ao imóvel constante nos arquivos municipais, destacamos o que segue:

Documento mais antigo a respeito deste casarão. Solicitação para instalação de depósito de lenha e carvão, em 1912.
Documento mais antigo a respeito deste casarão. Solicitação para instalação de depósito de lenha e carvão, em 1912.

1912 – É o documento mais antigo que se conhece do endereço. Trata-se de um pedido ao prefeito Belmiro Ribeiro de Moraes e Silva, para a instalação de um depósito de venda de lenha e carvão na parte baixa do prédio.

1931 – O então proprietário do imóvel, Evaristo Machado Netto, solicitou à Prefeitura, alvará para a construção de uma cozinha na parte térrea, de esquina, da edificação. Ali funcionaria um restaurante. Evaristo contratava o engenheiro Manoel Baptista de Souza, para executar a obra.

1941 – José Margueron, um dos inquilinos da edificação, solicita licença para pintar e caiar internamente seu estabelecimento, assim como colocar azulejos nas paredes e substituir o piso de ladrilhos por tacos de madeira.

Projeto de Letreiro para o Hotel Familiar Santista, de 1944.
Projeto de Letreiro para o Hotel Familiar Santista, de 1944.

1944 – Albino Melo solicitava licença para colocar letreiro luminoso na fachada do seu estabelecimento, o hotel “Santista Familiar”, que ficava na parte superior do prédio. O letreiro luminoso, saliente, media 1 metros de comprimento por 60 centímetros de largura, iluminado por três lâmpadas, pintados nas partes de vidro com os dizeres: “Hotel Santista Familiar”, em cores azul, vermelha e preta, com armação em folha de flandres, suportado por uma barra de ferro de 1 metro e colocado na fachada do prédio, na entrada da General Câmara, 151.

1954 – Em dezembro de 1954, José Machado Netto, um dos proprietários do imóvel, contratou a Construtora Itajú Limitada que, por sua vez, encaminhou pedido ao prefeito Antônio Ezequiel Feliciano da Silva, solicitando a aprovação de um projeto de obras para benfeitorias no local. Havia, na época, um plano municipal para o alargamento, em oito metros, da rua General Câmara, o que gerou uma grande expectativa para a valorização das edificações da via. Porém, diversas inconsistências no projeto em relação aos planos de alargamento da via, prejudicaram o propósito dos proprietários. O caso se arrastou por meses. Em vistoria ao prédio, fiscais da Prefeitura apontaram um outro problema: a falta de estabilidade do forro.

Na contramão dos conceitos atuais de preservação do patrimônio arquitetônico da cidade, o despacho do setor de obras da Prefeitura revelou o pensamento eliminatório daquilo que se convencionou chamar de “prédios velhos”:

O objetivo da lei ao proibir obras de qualquer natureza, é o de impedir a perpetuação das características externas desses prédios, que lembram um período arquitetônico passado, cujas convicções e limitações técnicas já são superadas, como também para que se processe, o mais rápido possível, o alargamento do centro comercial de Santos. Convenhamos que, a cada exceção que se abre, atende-se apenas aos interesses dos requerentes, com real prejuízo para a cidade que continua, em seu centro comercial, feia e velha”

1955 – Em julho de 1955, a empresa Tecidos Kalil S.A. instalava no endereço uma loja de tecidos a varejo.

2006 – A partir deste ano, os proprietários do imóvel iniciaram algumas tratativas visando a recuperação da velha edificação. Várias vistorias foram realizadas por um grupo de engenheiros e arquitetos, que observaram as condições e características do prédio. Constatou-se que a fachada e o telhado se encontravam em estado crítico, com sérios riscos de ruína. A parte térrea estava sendo utilizada por um bar e lanchonete, com condições precárias de higiene. Na parte superior, houve invasão por parte de moradores de rua. Várias soluções foram apontadas mas, infelizmente, não saíram do papel.

2008 – Em outubro de 2008, a proprietária, Glória Teresinha Ribeiro Gomes, contratou o engenheiro Mario Sergio Florido, para promover obras de recuperação da cobertura do imóvel.

2011 – Novo projeto de restauro é apresentado, pelo arquiteto Raimundo Araújo Filho.

2013 – A empresa Sobral Construções e Incorporações, compra o imóvel da família Ribeiro Gomes, no valor de R$ 1 milhão, em fevereiro de 2013. Nos dois anos seguintes, a nova proprietária comunicou uma série de serviços emergenciais no prédio.

 

Projeto de 2011, de autoria do arquiteto Raimundo
Projeto de 2011, de autoria do arquiteto Raimundo Araújo Filho
Em 2003, quem ocupava o casarão era a Nova Bandeirante Tecidos.
Em 2003, quem ocupava o casarão era a Nova Bandeirante Tecidos, no endereço desde 1995.
Planta de 1910, com indicação de obra de banheiro.
Planta de 1910, com indicação de obra de banheiro.

 

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