Há 80 anos, jovens de Santos se tornavam os pioneiros do surfe no Brasil

Primavera de 1937. O jovem Thomas Ernest Rittscher Júnior esperava ansioso pela volta do pai, conhecido e respeitado corretor de café da praça de Santos, que regressava de mais uma viagem de negócios aos Estados Unidos, terra natal da família. Notório multiatleta, Thomas Júnior (à época com 20 anos de idade) queria, certamente, contar sobre suas peripécias náuticas, em especial com relação às contendas de remo, saltos ornamentais e natação, modalidades o qual costumava se destacar junto aos colegas do Saldanha da Gama e adversários dos outros clubes da Ponta da Praia.

Mas, quem acabou promovendo maior surpresa foi o sr. Rittscher, que trouxe na bagagem algo que proporcionaria ao filho colocar seu nome na história do país, como o pioneiro de um dos esportes mais populares da imensa costa brasileira: o surfe.

Edição de julho da revista Popular Mechanics, responsável por publicar uma reportagem que deu origem ao surfe no Brasil.
Edição de julho da revista Popular Mechanics, responsável por publicar uma reportagem que deu origem ao surfe no Brasil.

Popular Mechanics

Ao desfazer as malas da cansativa viagem, Thomas Rittscher sacou alguns exemplares da prestigiada revista “Popular Mechanics” (criada em 1902 por Henry Haven Windsor), leitura obrigatória aos que se aventuravam em montar os mais variados tipos de “utensílios” úteis para casa (eletroeletrônicos, hidráulicos, mobiliários, jardinagem, entre outros), além de artigos científicos sobre as novidades tecnológicas em voga no mundo. Sabedor das habilidades do filho, e de seu espírito irriquieto para “invenções”, deu-as com a certeza de que algo interessante seria criado. E, de fato, foi.

Thomas Junior ficou encantado com um dos temas da edição de julho (de 1937), que trazia uma ampla reportagem assinada por uma das lendas do surfe mundial, Tom Blake, revelando os segredos da prancha que o levou ao estrelato nas ondas do Hawaii. Sob o título “Riding the Breakers” (algo como “Montando Ondas Grandes”), a matéria explicava o passo a passo para que o leitor pudesse criar uma autêntica prancha “Tom Blake”.

Empolgado com a possibilidade de praticar mais uma modalidade “náutica”, Thomas botou a mão na massa, dedicando-se nos meses finais de 1937 à tarefa de construir o estranho equipamento de surfe. Concluída a tarefa, era hora de testar o brinquedo nas mansas águas da Baía de Santos. Para isso, levou consigo a irmã, Margot (um ano mais velha do que ele) que, curiosa com a “invenção” do Júnior, quis também participar do batismo da inusitada “embarcação”. Em razão dessa iniciativa, acabou se tornando a primeira mulher surfista do Brasil.

Os primeiros tombos

Bem que Thomas Júnior tentou se assemelhar aos bravos atletas fotografados para a reportagem de Tom Blake. Porém, insistia em “montar” as ondas com a ponta estreita da tábua voltada para frente, o que era, como percebeu, um grande erro, uma vez que ela tendia a afundar por inclinar-se para frente. O jeito desengonçado de usar a prancha lhe impedia correr toda a onda. Isso só se resolveu quando passou a fazer o inverso. Foi então que descobriu sozinho, como primeiro surfista que foi, quais eram o bico e a rabeta daquele objeto de surfe. Depois de muitos tombos (ou “vacas”, na gíria atual do esporte) é que Thomas aprendeu e ensinou a surfar.

Thomas Rittscher Júnior e sua irmã, Margot, os pioneiros do surf em águas brasileiras, em imagem da década de 1930 e já no novo milênio.
Thomas Rittscher Júnior e sua irmã, Margot, os pioneiros do surf em águas brasileiras, em imagem da década de 1930 e já no novo milênio.

Osmar, Juá e Silvio

Obviamente, Rittscher Júnior chamou muito a atenção dos que passavam pela praia santista naquele início de Verão, temporada 1937/1938. Mais particularmente de três garotos que, hipnotizados, não tiravam os olhos da prancha Tom Blake do “americano” (apelido de Thomas Júnior). Eram Osmar Gonçalves, João Roberto Suplicy (Juá) Haffers e Silvio Manzoni. Eles tinham entre 15 e 16 anos de idade, e ficaram absolutamente encantados com as possibilidades de diversão daquele pranchão. Juá, cuja família era bastante próxima da de Rittscher (o pai dele também era corretor de café), não titubeou e logo quis saber de onde Thomas Júnior tirara aquela maravilha. Ao saber que fora da revista “Popular Mechanics”, o garoto não fez cerimônia e pediu-a emprestada, para que pudesse também montar sua “Tom Blake”.

Nas várias entrevistas que concedeu para falar sobre este fato histórico, Juá Haffers disse que, ao contrário do “americano”, ele e os amigos resolveram buscar auxílio de um engenheiro naval, amigo de seu pai, para que projetasse a tal engenhoca de pegar ondas (afinal de contas, construir uma Tom Blake não era algo como montar um barquinho de papel). Assim, ainda a tempo de aproveitar aquele Verão, os três rapazes também se tornariam figurinhas carimbadsa nas ondas santistas, marcando indelevelmente os seus nomes na galeria dos pioneiros do surfe brasileiro.

O surfista Osmar Gonçalves, na praia de Santos, nos anos 1940. Muitos atribuem a ele o pioneirismo isolado, sem conhecer a história de seus companheiros e a de Thomas Richter.
O surfista Osmar Gonçalves, na praia de Santos, nos anos 1940. Muitos atribuem a ele o pioneirismo isolado, sem conhecer a história de seus companheiros e a de Thomas Richter.

O pioneiro resgatado

Irriquieto quando se tratava de experimentos esportivos, Thomas Rittscher Júnior acabou não curtindo muito a nova modalidade e logo “pendurou” sua prancha. Osmar, Juá e Silvio, pelo contrário, tomaram gosto pela coisa e se tornaram, de fato, os primeiros surfistas do Brasil, embora em muitos depoimentos eles se julgavam mais “maroleiros” (surfistas de marola) do que “prós” (surfistas profissionais ou experientes).

Independentemente da assiduidade do trio, com o passar dos anos, a participação do “americano” foi sendo apagada, fazendo com que o rótulo de pioneiros do surf apenas recaísse sobre os ombros de Gonçalves, Haffers e Malzoni. No ano 2000, entretanto, a participação de Rittscher, que já contava com 83 anos de idade, acabou sendo resgatada. Assim, então, fora trazida à luz um importante pedaço desta história, que  estava guardado apenas na memória das poucas testemunhas que presenciaram os acontecimentos de 1937. Juá, que se afastara de Santos nos anos 1950, para morar em Nova Iorque, voltou a Santos para homenagear o velho amigo e corroborar com a história de Rittscher e Margot.

Deste modo, e de forma justa, a galeria estava reorganizada. A cidade de Santos, berço do surfe nacional, enfim, passou a ter o seu quinteto fantástico, que merece, por todos os seus méritos, a reverência do esporte brasileiro.

O adeus aos pioneiros

Tomas Ernest Rittscher Júnior faleceu em Santos, no dia 24 de novembro de 2011, aos 94 anos de idade;  João Roberto Suplicy Haffer faleceu em 12 de dezembro de 2004, aos 82 anos;  Osmar Gonçalves faleceu em 30 de abril de 1999, aos 77 anos de idade; Margot Rittscher faleceu em 26 de julho de 2012, aos 96 anos. De Silvio Manzoni, infelizmente não temos informações precisas.

 

Esquema da prancha Tom Blake
Esquema da prancha Tom Blake
Jua Hafers nas ondas de Santos.
Jua Hafers nas ondas de Santos.
Jua Hafers e Osmar Gonçalves
Jua Hafers e Osmar Gonçalves

 

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