O resgate épico do graneleiro Lorina, em 1977

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O rebocador “Gemini” empurra o Lorina para fora da área de risco.

Baia de Santos, domingo, 17 de julho de 1977, 3h40 da madrugada. Pelo menos vinte homens haviam se esforçado, com todas as suas forças e capacidade de raciocínio, para desencalhar um gigante de milhares de toneladas que semanas antes se “desgarrara” de sua rota ao Porto de Santos e rumara perigosamente na direção da Ilha Porchat, acabando preso num banco de areia nas proximidades da praia de Itaquitanduva, junto ao Morro do Japuí. Para o centro de comando da delicada operação de “resgate” havia sido designado um dos mais experientes práticos locais, Ismael Castanho que, a despeito de toda a sua vivência em situações de risco marítimo, sentia à flor da pele o que ele mesmo reputaria como o caso mais difícil de sua carreira.

O horário da operação se justificava por conta das condições da maré, cheia (conhecida no meio marítimo como “preamar”), tida como a mais propícia para arrancar do fundo arenoso o navio de bandeira liberiana, o “Lorina”, velho conhecido do porto santista, um graneleiro de 15 mil toneladas, que vinha carregado de carvão com destino à Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa).

Após quase dez horas de “combate” intenso contra os mais variados contratempos, o navio, então liberto, era puxado valentemente pelo pequeno rebocador “Gemini” para uma zona de segurança, na altura da chamada Boca da Barra (a abertura da Baia de Santos, entre o Itaipú e a Ponta do Monduba). Para todos os participantes da operação, o pior já havia sido superado. Ledo engano.

O vento zunia cada vez mais forte e as ondas se chocavam violentamente contra o casco da embarcação desvalida. O Lorina estava totalmente à mercê da sorte e da capacidade profissional de Ismael, que precisava reconduzi-lo ao porto de Santos, em segurança, sem contar, porém, com o leme ou mesmo com o sistema de âncoras, perdidos durante o sinistro que o conduziu involuntariamente ao extremo oposto de sua rota.

Tais condições adversas foram determinantes para sustentar o pesadelo que se revelaria para todos os atores envolvidos naquele drama marítimo.

Eram quase 4h30 quando o Lorina adernou perigosamente para estibordo (boreste), depois de ter sido atingido por uma onda de quase três metros de altura. O graneleiro, então, passou a se movimentar como um “joão bobo”, adernando de um lado para o outro, em inclinações que beiravam os 58 graus. Ismael tentava controlar a situação utilizando-se única e exclusivamente dos motores do navio, alterando velocidades. De repente, outra onda, ainda mais abrupta, pegou o barco liberiano em pleno movimento, quase “capotando-o”. O pânico se instalou entre os marinheiros.  As ondas varriam o convés enquanto se ouviam, em todos os cantos, o arrebentar de objetos e cabos, escotilhas, lâmpadas e garrafas. A visibilidade estava reduzida a 10%. Mais à frente, o rebocador “Gemini”, o único que sobrara na condução do Lorina para a entrada da barra (as outras embarcações de resgate – Aquarius, Corona e Walsa – tiveram seus cabos de aço partidos durante a operação), assemelhava-se a um barquinho de papel à mercê do oceano enfurecido. Todos temiam, a qualquer momento, que tanto o valente rebocador quanto o combalido Lorina fossem à pique.

Em meio ao quadro caótico, o prático Ismael Castanho, firme e frio como uma estátua de mármore, orientou o “Gemini”, por rádio, a inverter a posição do Lorina, virando sua proa na direção do Itaipú. O balançar do navio naquele momento era tanto, que até mesmo o mais experiente dos marujos precisou segurar a respiração. As luzes das cidades santista e vicentina, distantes, apagavam e acendiam no vai e vem do graneleiro sobre as ondas violentas que insistiam em se formar, dado o vento forte que soprava na infeliz hora.

Por mais de duas vezes o navio liberiano entrou e saiu da Boca da Barra, levado forçadamente pela força do mar. Para piorar, a visibilidade da madrugada era insuficiente para uma tentativa de conduzi-lo ao estuário de Santos de maneira segura. Tal qual um touro bravio, “domar” o Lorina custou a exaustão física e mental de todos, em especial de Castanho.

O experiente prático, decerto, ruminava em sua mente sobre o momento em que lhe fora outorgada a dura e inesperada tarefa.

O Lorina encalhou a 150 metros da praia de Itaquitanduva, perto do Morro do Japuí.
O Lorina encalhou a 150 metros da praia de Itaquitanduva, perto do Morro do Japuí.

O início da aventura

Santos, 13 de junho de 1977. Ismael chegara cedo ao centro de operações da Praticagem e, mal tendo tempo para ler os comunicados do dia, acabou chamado para assumir a condução de um caso inusitado que ocorrera na Baia de Santos. Um graneleiro tipo “Bulk Carrier”, o Lorina, de bandeira liberiana, fora pego de surpresa pelo mau tempo, perdendo uma de suas âncoras, ficando à deriva. Logo em seguida, na tentativa de estabiliza-lo, perdeu a segunda âncora. Sem “freio”, o navio de 178 metros de comprimento e 23 metros de boca, foi arrastado pela maré até encalhar, às 2 horas da madrugada, num banco de areia situado na altura do Morro do Japuí, a cerca de 200 metros da praia de Itaquitanduva e a menos de 1.500 metros da Ilha Porchat. Para piorar, com o choque da popa às pedras submersas, acabou perdendo o leme, além de ter a hélice do motor seriamente comprometida. Sem poder mover-se, o navio ficou preso.

O intruso na bucólica paisagem, então, chamou a atenção dos vicentinos e santistas à luz das primeiras horas da manhã, e pôs em alerta as autoridades. Afinal, o navio vinha carregado com 22 mil toneladas de carvão vegetal usinado, provenientes do porto de Norfolk, Estados Unidos, e tinham como destino os altos fornos da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa). Assim, se a carga, de alguma forma, vazasse, certamente provocaria um grande impacto ambiental.

Ismael não era o prático escalado originalmente para a tarefa, mas sim seu colega, Fábio Fontes. Porém, o mesmo ficara adoentado e não reunia condições de assumir uma operação de tamanho risco.

A missão, face ao inusitado quadro, se mostrava, enfim, como das mais ingratas. Além de ter perdido leme e âncoras, algumas máquinas propulsoras do navio acidentado emperraram.

O prático Ismael Castanho foi chamado para assumir a missão de desencalhar o graneleiro de 15 mil toneladas.
O prático Ismael Castanho foi chamado para assumir a missão de desencalhar o graneleiro de 15 mil toneladas.

Uma verdadeira odisséia

Diante do cenário, a única alternativa para a retirada do Lorina de seu cativeiro repentino era com o auxílio de rebocadores. Mas quem reputou que a tarefa seria simples, percebeu que estava redondamente enganado.

Desde o primeiro dia o que não faltou foi a utilização do expediente provável para a soltura do barco liberiano.  Ismael acompanhou e coordenou, por várias vezes, revezando com alguns outros colegas práticos, as ações arrojadas para a libertação do graneleiro. Contudo, todas as tentativas se mostrarm ineficazes.

O único caminho, então, apontava para um procedimento que todos queriam evitar: a retirada de parte da carga de carvão objetivando aliviar o peso do Lorina,  uma operação delicada e que punha em risco a embarcação e o próprio meio ambiente local.

Depois de muito discutir, autoridades portuárias e locais chegaram a um consenso e permitiram a utilização de outra embarcação (incrivelmente ainda maior que o Lorina) para promover o “transbordo” de parte da carga do graneleiro sinistrado. O navio escolhido foi o autodescarregador norueguês “Kiwi Arrow”, de 182 metros de comprimento e boca de 29 metros. No dia 10 de julho, a operação foi realizada com sucesso, tendo sido retirado cerca de 5 mil toneladas de carvão.

Mais leve, o Lorina, então, passou a ser alvo de uma operação de “arraste”, onde foram utilizados os rebocadores mais potentes da empresa Wilson & Sons.

O navio norueguês “Kiwi Arrow” aliviou a carga do Lorina em 5 mil toneladas.
O navio norueguês “Kiwi Arrow” aliviou a carga do Lorina em 5 mil toneladas.

O Dia D

Trinta e quatro dias haviam se passado desde o início desta epopéia, quando o comando da Praticagem se reuniu para definir o desfecho da verdadeira “novela” que se tornara o caso Lorina. Ismael Castanho fora escalado, mais uma vez, para assumir o comando da operação, agora tida como a definitiva. A expectativa e a meta eram pela resolução do caso, aproveitando-se o pico da preamar, previsto para o final da noite de sábado, 16 de julho.

O navio já estava relativamente esvaziado de sua carga e os rebocadores Gemini, Aquarius, Corona e Walsa, totalmente à postos para a ação decisiva. A imprensa, conhecedora dos planos de resgate, anunciava a ação “cinematográfica” que teria como palco o canto vicentino da Baía de Santos. O anúncio sobre o “Dia D” atraiu a audiência de dezenas de curiosos, que utilizaram a alameda Paulo Gonçalves, na Ilha Porchat, como uma espécie de arquibancada improvisada ao espetáculo que se descortinaria aos seus olhos. O público espectador era conhecedor de detalhes da “novela”, incluindo o nome dos “atores” envolvidos. O que a maioria não sabia é que a cena principal se daria nas brumas da noite e, portanto, exclusivas aos olhos dos homens que se envolveriam em poucas horas no trecho mais emocionante do enredo desta história.

Eram cerca de 22 horas, quando os rebocadores Femini e Corona começaram a amarrar um cabo na proa do Lorina, tomando posição ao lado do Aquarius, que começava a operação. Chovia copiosamente naquele momento, fazendo com que o mar ficasse totalmente encapelado no inicio da preamar. Grossas vagas estouravam no costado do graneleiro, que passou a balançar, ranger e trepidar.

Quando o sábado findava, quase à meia-noite, começou o drama da operação de resgate. O gato hidráulico do engate do Aquarius (o mais potente dos rebocadores) arrebentou, fazendo jorrar o óleo de seu mecanismo. O cabo entesado voltou com violência arrebentando uma vigia e estilhaçando as madeiras do convés do Lorina.

Pelo VHF, o prático Ismael Castanho determinou a substituição do Aquarius pelo Gemini. Outros cabos foram lançados em meio a escuridão. Chovia, o mar arruinava. A madrugada avançava rapidamente. A preamar seria às 4 horas e os rebocadores começavam, com estudada sincronização, a puxar lentamente.

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O resgate do Lorina chamou a atenção dos santistas e vicentinos. Dos prédios da Ilha Porchat era possível verificar a presença do intruso à paisagem.

Às 3,10 horas, uma vaga violenta conseguiu levantar o navio. O Lorina sobiu, bateu no fundo, estremeceu, avançou rapidamente e caiu outra vez com mais força ainda. Terror geral, os técnicos da United Towing (a empresa seguradora do Lorina), que acompanhavam o resgate ao lado do prático, entreolharam-se assustados.Castanhi, a despeito do medo alheio, entretanto, decidiu avançar. Afinal, não haveria outra chance como aquela tão logo novamente.

O olhar de Ismael percorria todos os cantos, a partir da ponte de comando do graneleiro liberiano. Nem mesmo a violência do choque provocado pelas vagas o impeliu a recuar. Com firmeza, e destreza, o prático santista fez o navio avançar, metro a metro, arrastando o casco pelo fundo arenoso.

Meia hora depois de uma luta que parecia não ter fim, o Lorina flutuou livre. O relógio marcava 3,40 horas exatamente. Ismael sorriu e acenou positivamente a todos os homens envolvidos na ação. O graneleiro estava, enfim, livre. Uma euforia geral tomou conta do navio liberiano e nos rebocadores. Abraçam-se o prático, os técnicos, e os operários. E, entre eles, ninguém supunha o que ainda estaria por vir.

Espetáculo de horror

O esforço havia chegado ao limite. Então, no meio da festa dos envolvidos, escutam-se estalos. Inesperadamente, arrebentam-se os cabos dos rebocadore Corona, seguido pelo Walsa. O Lorina, sem  poder contar com a hélice, sem o leme e qualquer amarra, começa a ser arrastado violentamente pela maré vazante, puxando consigo o único rebocador preso, o Gemini.

Como um verdadeiro Davi (da lenda Davi e Golias), o Gemini ousou puxar o gigante para fora da área de risco. No entanto, o vento forte produzia ondas de até três metros, que instabilizavam o Lorina, que passou a balançar de forma assustadora.

A tripulação do rebocador testemunhou o navio liberiano inclinar quase a ponto de virar. De dentro do pequeno barco era possível ouvir o barulho de coisas quebrando. Um verdadeiro espetáculo de horror e potencialmente trágico.

Para a sorte do Lorina é que o sangue frio de Ismael garantiu a tranquilidade para a tomada das decisões corretas. Sob sua orientação, o Gemini conseguiu arrastar o navio até as proximidades da Ponta dos Limões (trecho entre a Ilha das Palmas e a Praia do Góes), onde um cabo foi  passado para o rebocador Corona, que se posicionara do lado oposto, garantindo o equilibrio da condução segura do navio.

Nas horas seguintes, apesar do escuro e da chuva, o vento diminuiu e, ao clarear do domingo, é que finalmente todos puderam respirar, de fato, aliviados.

O Lorina, depois de toda a aventura, foi deixado no cais do armazém 33.
O Lorina, depois de toda a aventura, foi deixado no cais do armazém 33.

A saideira

O pesadelo trespassado por toda a madrugada, enfim, parecia ter encontrado o seu fim. Novamente, ledo engano. Após terem encurtado o cabo do rebocador Corona e mantido o Aquarius empurrando pela popa, o Lorina iniciou seu procedimento de entrada no porto de Santos, imprimindo uma velocidade de 3,5 milhas. Ao chegar na ponta da Fortaleza da Barra Grande, entretanto, o graneleiro, inesperadamente deu uma guinada forte para boreste, avançando na direção da Praia de Santa Cruz dos Navegantes, no Guarujá.

Avançou, avançou e encalhou no costão, emitindo um ruído surdo do casco contra a barragem natural ali existente. Castanho olhou para os companheiros e, exausto, pensou na terrível hipótese de ter que começar tudo de novo.

Mas, desta vez, por sorte, os rebocadores foram rápidos e conseguiram manobrar o graneleiro para o outro lado, embora não conseguissem evitar uma séria  avaria no tanque da proa. Só faltavam dois mil metros para chegar ao local de atracação. O negócio era continuar adiante. Praticamente arrastado pelos rebocadores Gemini, Corona e Aquárius, o Lorina ainda passou lambendo o ferry-boat e por fim, como se não bastasse, desgarrou, avançando, pesado, sobre dois navios atracados no cais da Conceiçãozinha. Nessa manobra, para evitar o choque, quase um dos rebocadores afundou, e então já não havia mais cabos para puxar o graneleiro liberiano.

Aquela havia sido uma saideira amarga.

Uma festa merecedora

Ao finalmente atracarem o navio liberiano no cais do armazem 33, os homens envolvidos puderam comemorar o fim da aventura. Castanho, bastante festejado pela equipe tinha um motivo a mais para sorrir. No dia seguinte comemoraria 49 anos de idade. Seu maior presente era, justamente, o sucesso daquela empreitada surreal.

“Uma loucura. Eu nunca vi coisa igual” – declarou na época o capitão Anthony John Oakley, diretor da United Towing Company, empresa contratada para o resgate do navio. Experimentado homem do mar e conhecedor dos mais extravagantes acidentes, confessou também emocionado que nunca tinha trabalhado com gente “tão fabulosa”.

O pessoal do bloco, gente das agências, estivadores e técnicos, todos brindavam com champanhe, no convés do Lorina, o sucesso, enfim obtido. Um sucesso conseguido com muito esforço, dedicação, coragem e audácia da nossa gente do porto.