Tragédia pôs fim a sistema raro de funicular em Santos

Imagem do acidente publicada na Revista A Cigarra, de maio de 1922.

“Elevador” do Nova Cintra, que existiu por 20 anos (1902/1922), funcionava pelo conceito de “Tração Hidráulica por Gravidade”. Rompimento de cabo resultou em duas mortes e onze feridos, condenando o serviço que hoje só é visto em Braga, Portugal.

Santos, segunda-feira, 29 de maio de 1922. Os santistas viviam a expectativa pelas festividades alusivas ao Centenário da Independência do Brasil, que incluía festas e inaugurações, como o do imponente prédio da Bolsa do Café, no Centro, ou do incrível “Monumento em Glorificação aos Irmãos Andradas”, no espaço que ficaria conhecido por todos como a Praça da Independência, no coração do bairro do Gonzaga. Com um imenso espírito de alegria, a vida seguia seu curso, inclusive para os moradores do Morro da Nova Cintra, que costumeiramente utilizavam-se de um curioso meio de transporte, responsável por conduzi-los de cima para baixo de maneira engenhosa e perfeita.

O “tramway” da Nova Cintra, como todos se acostumaram a falar sobre aquela espécie de “bonde inclinado” era, na verdade, um sistema funicular, parecido com o que seria implantado anos mais tarde no Monte Serrat. A diferença é que o da Nova Cintra não dependia de energia elétrica para funcionar. O conceito de movimento se baseada apenas na boa e velha gravidade. Inaugurado em 1902, sua rota ligava a base do morro, na altura do final da Rua Rangel Pestana, onde havia uma linha final de bondes de tração animal (mais tarde substituída pelo bonde elétrico nº 16), e findava no trecho onde temos hoje a Avenida Santista, no alto da colina. O esquema do carril era bem simples. Em cada extremo havia um chassi de tração que sustentava um carro de passageiros com capacidade para vinte pessoas e um reservatório (abaixo dos assentos) com capacidade para armazenar até duas toneladas de água (isso mesmo! água!). Enquanto o carro situado no alto do morro era “abastecido” por meio de um conjunto de fontes e dutos de água (ligados a um lago artificial criado ali perto), o veículo que estava na base era “esvaziado”.

Esse “desequilíbrio de peso” fazia com que os bondes se movimentassem em direções opostas. Enquanto o carro que estava no topo descia com o peso da água, o de baixo, com o reservatório vazio, subia puxado por meio de uma engenhosa ramificação de cabos de aço. A tal método chamavam de “tração hidráulica”. O controle da descida era feito com uso de freios, instalados no chassi de tração. O sistema funcionava muitíssimo bem e era uma maravilha, orgulho de seu criador, o empresário José Luís de Matos, que obtivera da Câmara Municipal, em 1902, a concessão para explorar o serviço.

A tragédia ganhou as páginas de todos os jornais da cidade e muitos pelo país.

O sentimento positivo, porém, transformou-se em decepção e desespero diante da tragédia ocorrida naquela segunda-feira, 29 de maio. O bondinho que vinha de baixo estava completamente lotado, com dezesseis pessoas a bordo, entre homens, mulheres e crianças. Às 14h40, o condutor do carro, o português Alfredo de Abreu, ouviu um forte estouro. Era um cabo gasto, já cheio de ferrugem, que havia se rompido. Ele não pôde fazer nada. Em questão de segundos, o veículo desabalou de onde estava e, perto de uma casinha branca onde havia o desvio dos bondes do sistema, foi arrancado dos trilhos, capotando por mais de quinze metros, diversas vezes, até chocar-se à base do morro, quase ao lado da estação inicial, formando um montão disforme de taboas e ferragens, oferecendo o mais horrível aspecto no meio de gritos dolorosos e cheios de angústia. Alguns dos passageiros chegaram a se jogar do carro, antes dele ser arrancado do “rail”. Foi o caso de João Arruda de Camargo e sua esposa. Ambos fraturaram as pernas e outras diversas partes do corpo. Entre os ferros retorcidos, o cenário era de guerra. Duas pessoas morreram instantaneamente. Um senhor que também havia se atirado do carro em movimento, sr. Francisco Rodrigues Sá, comerciante de 67 anos de idade, e uma menina, Olga Gibran, de oito anos, encontrada mais tarde debaixo dos destroços. Outras onze pessoas sofreram ferimentos graves. Uma família inteira, recém-chegada a Santos, e que visitava o alto do morro, também figurava entre os feridos. Um jovem de 19 anos de idade acabou tendo sua perna amputada.

Os primeiros socorros foram prestados por moradores locais, até a chegada das autoridades e de veículos da Santa Casa. Todos foram atendidos pelos médicos de plantão, drs. Virgílio de Aguiar, Leão de Moura e Pedro Paulo

A notícia da tragédia se espalhou por toda a cidade e acabou por colocar um ponto final no sistema de transporte de Luís de Matos. Até a chegada dos ônibus, que só foi implantado nos anos 1950, os moradores do Nova Cintra não tiveram outras opções de transporte coletivo.

Cidade portuguesa conserva o único sistema por “tração hidráulica” do mundo

A cidade de Braga (norte de Portugal), mais precisamente no Santuário do Bom Jesus do Monte, existe um sistema de carris exatamente igual ao que existiu no Morro de Nova Cintra. Criado em 25 de março de 1882, ele transporta atualmente cerca de doze mil passageiros por ano. Atualmente, é o “elevador” mais antigo do mundo em funcionamento a utilizar o sistema de contrapeso de água.

 

sdsd

1) A força motriz é a água das fontes e minas da estância do Bom Jesus, ligadas por tubagem a um depósito no subsolo. Não é necessário recorrer à rede pública. Nos outros funiculares conhecidos, usa-se água da rede pública ou uma bomba eléctrica, que consome energia.
2) Para accionar a marcha, o condutor abre a torneira da água e enche o reservatório até ao nível desejado, dependente do número (e peso) dos ocupantes.
3) Cada cabina tem um reservatório de 5.850 litros de água. A cabina superior torna-se assim mais pesada do que a inferior e o movimento inicia-se com a libertação dos freios das duas cabinas.
4.) No sopé do monte, a água é descarregada e o ciclo repete-se. Além de contrapeso, o reservatório alimenta o circuito de refrigeração dos travões dianteiros.
5) O volante é a peça fundamental para gerir o cabo e, consequentemente, promover a ascensão ou descida do elevador. 
6) O duplo carril com cremalheira central assenta em travessas de madeira.
7) A madeira proveniente das árvores abatidas para construção da rampa foi usada no elevador.

Sistema funicular em Braga, Portugal. Foto: National Geographic Portugal

Deixe um comentário