Pão de cará, a cara do santista

Pão de cará virou patrimônio oficial. Foto: Juicy Santos

Iguaria, que ganhou status de patrimônio de Santos, tem registros históricos que remontam à década de 1910

Santos, 23 de março de 1911. O comerciante Severino Torrecilla, proprietário do Café e Confeitaria do Povo, estava revoltado. Indignado com a concorrência “desleal” de uma outra “casa da cidade”, ele decidira redigir uma carta “Aviso” e publicar na imprensa local dando conta de que pães de cará produzidos com matéria-prima de segunda qualidade estavam sendo comercializados de forma indiscriminada pelo rival, e a preços muito inferiores, obviamente. Torrecilla queria alertar sua freguesia, para que ela não se iludisse com os baixos valores do pão concorrente, pois o custo-benefício do mesmo não valia a pena. Seu produto, dizia, “é preparado com matérias primas escolhidas e exclusivamente preparado para atender a distinta freguesia”.

O alerta, publicado no jornal A Tribuna no dia 23 de março de 1911, foi o primeiro encontrado numa pesquisa sobre o tema “pão de cará”, que em 2022 se transformou em “patrimônio imaterial” da cidade de Santos, por sugestão do vereador Benedito Furtado. A iguaria, encontrada em praticamente todas as panificadoras do município, já vem ocupando lugar de destaque, há décadas, no rol de exclusividades santistas, assim como o tamboréu e os belos jardins da orla.

Publicação de 1911 com a bronca de Severino Torrecilla alertando a prática de produção de baixa qualidade nos pães de cará da cidade.

Muito se palpita sobre as origens e significados do pão de cará. Há quem diga que o nome “cará” possui relação à cobertura “caramelizada” do produto, convalidando os que teorizam que o pão nunca levou em sua composição a massa do inhame, outro nome popular para o tubérculo de origem asiática, que desembarcou no Brasil ainda nos tempos coloniais.

Porém, pesquisas recentes apontam que, sim, o pão de cará foi originalmente trazido ao público consumidor com a massa do “cará” (ou inhame).

Por ser algo do cotidiano, sem nenhum peso transformador, o pão de cará pouco ocupou as linhas dos registros jornalísticos ou mesmo publicitários. Assim, é escassa sua referência textual.

O Memória Santista se debruçou em buscas sobre o tema e extraiu algumas curiosidades, além da bronca do comerciante Severino Torrecilla, de 1911.

Em 1919, por exemplo, outro anúncio publicado em A Tribuna, dava conta da comercialização do pão de cará, na Padaria e Confeitaria “José Bonifácio”, situada na Rua São Francisco, 196. O estabelecimento se dizia especialista na produção de pães de todos dos tipos, como de cerveja, de ovos, tipo italiano, tipo francês e de centeio legítimo, além do pão de cará de Veneza.

Em 5 de junho de 1921, outro estabelecimento, o Café, Bar e Sorveteria Santense, era inaugurado na Rua Santo Antônio (atual Rua do Comércio), esquina com a XV de Novembro oferecendo o pão de cará aos fregueses. O curioso é que em seu anúncio, o local oferecia a “média” na condição de “café com leite”, exatamente como ainda hoje ocorre em qualquer cidade paulista, à exceção de Santos, que passou a reconhecer como “média”, a unidade de pão francês.

 

Na merenda escolar

Nos anos 1960, o pão de cará se fazia presente como item da merenda escolar na rede pública de ensino. Em 1963, a Seção de Nutrição da Prefeitura de Santos apresentava relatório de gastos com as refeições das crianças, tendo investido naquele ano o valor de Cr$ 9 mil (nove mil cruzeiros) com a iguaria (equivalente a R$ 2.250 atuais). O pão integral, de fato, era o mais distribuído, haja vista que foram dispensados Cr$ 9,7 milhões no produto (equivalente a R$ 2,4 milhões atuais).

O caso dos carás envenenados

Em junho de 1970, o pão de cará foi parar nas manchetes dos jornais, como pivô de um caso de “polícia”. Tudo começou quando o Comando de Saúde do município, em fiscalização de rotina na padaria “A Brasileira”, situada na Rua João Pessoa esquina com a Rua Braz Cubas, determinou que o estabelecimento descartasse no lixo 250 pães de cará que estavam expostos de maneira indevida. Ao término do procedimento realizado pelos agentes públicos, o proprietário do estabelecimento, Benito Gil Estevez, ordenou a dois de seus funcionários (Anfrisio da Silva e Pedro Alves Gouveia) que retirassem do lixo os produtos descartados e os devolvessem à vitrine da padaria. Indignados com a situação, os funcionários, sem que o patrão percebesse, afixaram um cartaz ao lado dos pães com os dizeres “Cará Envenenado”. Quando um freguês viu o alerta, chamou o proprietário e lhe perguntou se aquilo era uma brincadeira. O patrão, enfurecido, quis saber quem fora o autor da iniciativa e, sem sucesso em sua descoberta, resolveu acionar a polícia e registrar um boletim de ocorrência. No entanto, o tiro saiu pela culatra, pois o médico-chefe do Comando de Saúde, Anésio Dau, ficou sabendo da situação, voltou ao estabelecimento e interditou por tempo indeterminado.

Receita publicada em 1917 na revista de maior circulação do Brasil, a revista da Semana.

No começo dos anos 1970, o pão de cará ainda era feito com o tubérculo também conhecido como “inhame”, como se atesta nas receitas que eram publicadas nos jornais da época. O produto, para uma quantidade de 30 pãezinhos, levava três xícaras de chá com cará descascado e picado, mais fermento, açúcar, leite morno, banha, sal, queijo parmesão ralado, ovo e farinha de trigo.

Nos anos 1980, o pão de cará chegou a ser classificado como “pão especial” em várias padarias e não estava sujeito às mesmas regras de regulamentação de preços que o pão francês de sal, tido como o produto panificado mais consumido e popular. Essa classificação se tornou oficial um pouco mais tarde, incorporando outros tipos, como o pão doce, de forma, de fécula, de milho, de banha e o pão caseiro.

O cará sem cará

Praticamente todos os panificadores hoje confessam que o pão de cará deixou de ter o inhame na fórmula em razão de custos e complexidade na técnica de produção. Até o terceiro quartel do século 20, ainda havia motivos para usar a massa de cará na produção, uma vez que a escassez de trigo (em função das guerras) forçava ao uso de outras bases de panificação. Com o período de paz a partir dos anos 1950, gradativamente as panificadoras santistas foram excluindo o tubérculo da fórmula a fim de baratear o produto. Assim, do pão de cará original só sobrou o nome, uma vez que o produto hoje se assemelha mais aos pães de leite encontrados em panificadoras de todo o país. A parte brilhosa do pão é feita com gema de ovo. Alguns dos estabelecimentos que vendem cará em Santos oferecem duas versões: com e sem açúcar salpicado.

Pão definitivamente santista

Pesquisando sobre o assunto em 7.962 periódicos de todo o Brasil, o pão de cará apenas surge em forma de anúncios de estabelecimentos e em notícias relacionadas à cidade de Santos, o que nos leva a crer, de forma bastante sólida, que a iguaria é, definitivamente, um patrimônio santista.

O pão de cará dos dias de hoje se equivale ao pão de leite de qualquer lugar do país.