Um dia no atelier de Lucky Tattoo, o primeiro tatuador do Brasil e América do Sul

Memória Santista, em suas pesquisas, encontrou esta incrível reportagem produzida pela famosa revista O Cruzeiro, publicada em sua edição de 11 de maio de 1968, que narra um pouco da história e do trabalho do primeiro tatuador do Brasil e da América do Sul: o dinamarquês Knud Gregersen, o Lucky Tattoo. A reportagem é uma preciosidade, assim como a foto junto a ela publicada, mostrando o atelier do pioneiro da tatuagem brasileira.

Boa Leitura! 

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A TATUAGEM

Cais do Porto, uma cidade dentro da cidade de Santos. Rua João Otávio, ao lado da faixa dos armazéns. Marinheiros louros de olhos azuis, falando línguas as mais complicadas, numa confusão e confraternização inglesa, dinamarquesa, sueca, Italiana, grega, francesa, portuguesa, do outro lado da terra. Hotéis de sigla HO, de permanências rápidas, inferninhos que funcionam desde o meio-dia, ele se pensar não estar na nação descoberta por Cabral: Night and Day, Served by Girls, Holliday, Saloon… então, o anúncio, único da América do Sul: Tattoing Tatto, para os de língua complicada, Tatu mesmo para os da pátria amada, a terra local.

Prrrazerrrr, muuuuitooo prrrazerrrrr. Knud Harald Lykke Gregersen, dinamarquês, nem alto nem baixo, gordo. De uma família de tatuadores que, marinheiro, há oito anos, menos pela terra e mais pelo amor de uma morena descendente de índios, aqui aportou, abriu seu atelier na João Otávio e começou a enfeitar corpos humanos.

Lucky Tattoo em seu atelier da Rua João Otávio, 2, no coração das bocas, onde nasceu a arte da tatuagem no Brasil e na América do Sul.
Lucky Tattoo em seu atelier da Rua João Otávio, 2, no coração das bocas, onde nasceu a arte da tatuagem no Brasil e na América do Sul.

O atelier é pequeno e tem de tudo caboclo para extasiar e tirar os dólares dos ricos sobrinhos do Tio Sam. E Tatu tira, sem dó nem piedade. As paredes estão totalmente tomadas por molduras onde marinheiros, elas e outros eventuais fregueses escolhem os desenhos para a sia tatuagem, que varia conforme raça e nacionalidade: por exemplo, os da Suécia, Dinamarca e adjacências preferem mais os dragões e as serpentes; os italianos, como não, santas, santos ou o nome dos pais sobre um coração; já a brasileirada dá sua preferencia para sereias e navios. De vez em quando aparece algum mais debilóide pouquinha coisa e manda tatuar a preciosidade: Amor de Mãe.

Acontece também muitas vezes chegar um casal marujo e a gama do momento. É normal, ela pedirá ao Tattoo para gravar o nome de John nas costas ou nas pernas, sobre uma dessas inscrições: With Love, Forever – I Love You – Love.

Ele também pedirá para escrever nos braços, dentro de um coraçãozinho, o nome dela ao lado do seu. Mas marinheiro é marinheiro e muitos se arrependem. Dada a volta ao mundo, correm ao Tattoo para “apagar” o Maria, esperando em outros portos possam estar a Mária ou Mariá. Sofrem muito mais do que quando foi feita a tatuagem, pois além de demorado e dolorido, requer técnica especial, no lugar do desenho ficará uma feia cicatriz por toda a vida.

No princípio, de fundamentos religiosos, a tatuagem era a arte dos vikings, dos povos orientais. Foram os marinheiros ingleses que fizeram dela enfeite ou recordação, de volta de suas viagens pelo Japão, China, Ilhas Polinésias, Java, Bornéu, Sumatra. Ali, então, perdeu ela todo o seu sentido de guerra ou religião. Popularizou-se tanto que nos Estados Unidos até fizeram concursos de tatuagens, com prêmios aos melhores trabalhos.

Lucky mostrou à reportagem como é feita uma tatuagem: “Primeiro o desenho é feito à lápis. Depois vem a máquina, a dor, e está tudo pronto.
Lucky mostrou à reportagem como é feita uma tatuagem: “Primeiro o desenho é feito à lápis. Depois vem a máquina, a dor, e está tudo pronto.

Conta Tattoo que a tatuagem é uma arte sublime, cujos segredos vão passando de pai para filho, isto por várias gerações. Orgulhoso, recorda que seu pai e seu irmão são famosos tatuadores em Copenhague e, o máximo na história da família, seu pai chegou até a fazer uma tatuagem no antebraço do Rei Frederik, uma âncora de três cores.

Para a classe, ainda, outra passagem de mérito foi quando um outro tattooing, o McDonald, desenhou um dragão chinês no braço do rei. Aqui no Brasil, se Tatu não pode vibrar e lançar ao infinito o nome de nenhuma autoridade, ele se antecipa e diz que é procurado por muitas senhoras “da alta sociedade do Rio e de São Paulo”, que vão lhe pedir para desenhar pintinhas nas costas ou no rosto. É bem.

Dói um pouco e sai um pouco de sangue. Tattoo já percebeu que o brasileiro, para mostrar valentia, é o que procura fazer menos caretas. Desinfetado a álcool o lugar do corpo onde vai ser feita a tatuagem, aplica-se depois, sobre a pele, uma pasta de vaselina e penicilina, para não infeccionar. Feito o contorno do desenho a lápis de cor, é a hora, então, da maquininha especialmente fabricada por seu pai, na Dinamarca, começar a perfurar a pele.

É assim que a agulha, na ponta, batendo 40.000 vezes por minuto, vai jogando a tinta, ao mesmo tempo que vai fazendo os minúsculos buracos. As tintas são feitas no Japão, a sua composição química é segredo bem guardado. São seis as cores mais usadas: preta, vermelha, verde, amarela, marrom e azul.

Tudo pronto, O desenho é coberto por uma camada de antibiótico. Uma semana depois arrependimento já não vale mais. Pelo resto da vida, para uns, será o estigma, a marca indelével; para outros motivo de orgulho, de se exibir com vaidade.

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