Um paraíso natural chamado Gohayó

Região que engloba a Ilha de São Vicente foi um verdadeiro santuário da vida animal

Ilha de Gohayó, ano de 1502. O cenário era esplendoroso. A vida brotava, perfeita, em todos os cantos, numa autêntica explosão de diversidade. Emoldurada pela cadeia serrana, de densa vegetação atlântica, a baixada, com suas ilhas, rios, mangues e pequenos morros salpicados numa área de pouco mais de mil quilômetros quadrados, testemunhava o puro fervilhar da natureza. Nas porções de terra, répteis, mamíferos, aves e uma infinidade de insetos cumpriam seu papel no ciclo da vida. Nas águas estuarinas, repletas de nutrientes, crustáceos, peixes, anfíbios e diversas espécies de mamíferos marinhos conviviam em harmonia, dividindo seus berços, num compasso magnífico, digno dos desígnios da Mãe Terra. Em meio a este verdadeiro paraíso, a figura humana, representada pelos índios da etnia Guaianá, interferia apenas nos momentos pontuais, estratégicos, como na piracema (período de reprodução dos peixes), em que a pesca, tanto quanto a caça, se revelava abundante e compensadora.

Antes da chegada do homem ocidental, toda a geografia da atual Baixada Santista era reconhecida pela toponímia indígena. A Ilha de São Vicente era o Gohayó (com variantes de escrita: Guaió, Goiahó, Gohaió e Guaiahó); a de Santo Amaro era conhecida como Guaibê; o canal do estuário do porto de Santos era o Guarapissumã; para os lados de São Vicente, havia o Tumiarú; o atual centro santista o Enguaguaçú, enquanto no pé da Serra imperava a Piaçaguera e lá no alto, majestosa, a Paranapiacaba. Muitas dessas nomenclaturas resistiram ao tempo, caso dos rios Jurubatuba, Guaratuba e Itapanhaú, ou das cidades de Guarujá, Mongaguá, Itanhaém, Peruíbe e Bertioga, o que demonstra o peso desta ancestralidade como uma verdadeira herança cultural-histórica do litoral paulista.

No desenho (colorizado a partir do original, de Theodore de Bry) feito a partir dos relatos de Hans Staden, no século 16, os temíveis Tamoios, em ritual de canibalismo.

Apesar de frequentada pelos guaianás, integrantes do tronco tupi (ou tupiniquim), a região chegou a ser coabitada pelos temíveis tamoios (ou tupinambás), que dominavam o atual litoral norte paulista e o sul fluminense. No entanto, tal ocupação era esporádica, uma vez que as duas tribos não nutriam, uma pela outra, qualquer tipo de apreço. Os conflitos eram inevitáveis e via de regra, quando um inimigo tamoio era capturado, sua morte era certa. Do outro lado, o destino podia ser ainda mais grotesco. Os tamoios praticavam o canibalismo e tinham o péssimo hábito de devorar, literalmente, seus adversários.

Porém, a despeito da “violência” que vez ou outra eclodia entre os representantes da raça humana local e nativa da Terra Brasilis, era harmonioso o equilíbrio natural naquela terra íntegra e airosa.

A chegada do intruso ocidental

Na manhã do dia 22 de janeiro de 1502, a estabilidade de Gohayó seria, então, maculada pelo cobiçante olhar ocidental. Três naus lusitanas, sob o comando de André Gonçalves (Alguns historiadores afirmam que a expedição era liderada por Gonçalo Coelho e outros poucos por Gaspar de Lemos) apontaram na entrada da barra tupiniquim e lançaram âncoras. A bordo viajava um influente cosmógrafo florentino, Américo Vespúcio que, curioso, saiu de sua cabine, caminhou tranquilamente até a proa, olhou convicto para a verdejante paisagem local e, decidido, ampliou o desenho que começara meses antes, um mapa da costa do futuro Brasil, onde anotou: Rio de São Vicente, em referência ao santo do dia no Calendário Gregoriano. O homem que algum tempo mais tarde teria seu nome ligado ao Novo Mundo, a América, registrava, então, a primeira inscrição cristã e ocidental para aquela espécie de éden tropical, que viria a se tornar uma grande referência nos mapas-múndi da época.

João Ramalho leva Martim Afonso de Sousa para o alto do Paranapiacaba, com a ajuda dos guaranás. Quadro de Benedicto Calixto.

A partir desta significante passagem, a vida e seu equilíbrio natural nunca mais seriam os mesmos em Gohayó. O surgimento de Cosme Fernandes, o famoso bacharel de Cananéia (deixado à própria sorte, em degredo, justamente pela expedição de 1502, alguns quilômetros ao sul) e a chegada de outros ocidentais, como João Ramalho e Antônio Rodrigues, entre outros náufragos, degredados e aventureiros, mudariam o cenário bucólico da região. Um povoado logo surgiria pelas mãos destes fora-da-lei na face ocidental da ilha, o mesmo núcleo que, em 1532, seria aproveitado pelo fidalgo Martim Afonso de Sousa no seu intento de colonização, a pedido do Rei D. João III, de Portugal. Lá nasceria a primeira vila oficial do Brasil, São Vicente.

Os integrantes da expedição de Martim Afonso, então, se ocuparam a dar o pontapé inicial para a transformação do velho paraíso guaianá numa terra “produtiva”. Novas culturas foram introduzidas, como a cana-de-açúcar e a banana, ambas originárias do Sudeste Asiático. Animais estranhos ao habitat tropical, como porcos, galinhas, cavalos e mulas, também transformavam a paisagem. Os primeiros colonos lusitanos iniciaram, assim, um processo de metamorfose que, ao longo de décadas, de séculos, determinou a transformação da Baixada Santista. Com o passar do tempo, os nativos da terra iam desaparecendo à mesma medida que a própria fauna ancestral. O berçário de uma infinidade de espécimes de peixes e mamíferos marinhos, em especial de baleias, foi destruído e, em seu lugar, foram erguidas as feitorias do homem, até culminarmos nos atuais terminais marítimos, cinzas e desalmados.

O caminho inverso

Nos dias de hoje, em meio à malha urbana dominante, ao caminharmos no que resta de natureza, como à beira d’água na serena orla de Santos, podemos testemunhar um pequeno gesto, ousado, de um tipo de busca pelo caminho inverso, simbolicamente encenado pelo reaparecimento de pequenos cardumes de peixinhos, que nos remete à sensação de que o ciclo da vida presente na velha Gohayó tenta reconquistar o direito de lembrar que um dia fora um verdadeiro paraíso da terra santista.