Santista José Bonifácio ganha estátua pela primeira vez no Rio de Janeiro, em 1872

Ilustração publicada na revista “O Novo Mundo: Periódico Ilustrado do Progresso da Edade”, editado em Nova Iorque (EUA), edição de 23 de agosto de 1873.

Rio de Janeiro, 12 de julho de 1861. Os membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) estavam reunidos para mais uma sessão ordinária, onde discutiriam as proposituras de ações para os anos seguintes. Uma delas seria a de mandar erigir na capital do Império uma estátua em homenagem ao conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva, ministro do Interior e dos Negócios Estrangeiros em 1822, o qual teve a glória de realizar nesta época a Independência do Brasil.

Ficou também resolvido naquela sessão que mandariam construir, na cidade de Santos, um túmulo condigno para os restos mortais do homenageado, proposta esta assinalada por Cláudio Luís da Costa (que fora provedor da Santa Casa de Misericórdia de Santos entre 1836 e 1838). Disse ele: “Proponho que se ajunte à indicação da ereção da estátua a José Bonifácio de Andrada e Silva, a construção de um túmulo no lugar onde jaz sepultado o seu corpo, e onde até agora não há uma pedra que assinale esse jazigo”. Assentou-se que tais obras deveriam ser realizadas por meio de subscrições populares recolhidas em todo o Império, enfatizando a finalidade de conservar o caráter de reconhecimento nacional. (importante registrar que a proposta do túmulo não foi realizada em função da Câmara santista ter outros planos para os despojos de Bonifácio. O atual Panteão dos Andradas, no entanto, só veio a ser viabilizado em 1923)

Ao cabo da reunião, juntaram-se os membros do IHGB para constituir uma comissão que levasse à cabo a honrosa tarefa. E, assim, ela foi nomeada pelo presidente da instituição, o sr. Cândido José de Araújo Viana, o Marques de Sapucaí, com a seguinte composição:

Presidente– Eusébio Queiroz Coutinho Matoso Câmara (foi ele o autor de uma das leis mais importantes do Império, a Lei Eusébio de Queiroz, de 4 de setembro de 1850, que proibiu o tráfico negreiro para o Brasil);  Secretário– Joaquim Norberto de Sousa Silva (escritor e historiador – viria a ser presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de 1886 a 1891); Tesoureiro– Irineu Evangelista de Souza (o famoso Barão de Mauá, responsável pela construção da primeira ferrovia brasileira, em 1854, entre outras inúmeras atividades); Membros– Conselheiro Thomas Gomes dos Santos (ex-presidente da Província do Rio de Janeiro, em 1858); Fernando Sebastião Dias da Motta, Coronel Henrique de Beaurepaire Rohan (visconde); Dr. Claudio Luís da Costa (um dos mais importantes provedores da Santa Casa de Santos); Dr. José Ribeiro de Sousa Fontes (barão e visconde) e Dr. João Manoel Pereira da Silva (senador).

Eusébio de Queiroz, primeiro presidente da Comissão Organizadora para a ereção da estátua em homenagem a José Bonifácio.

Para desempenhar a tarefa, a Comissão do IHGB expediu circular a todas as Câmaras Municipais do Império, abrindo concurso para a exibição de planos ao monumento pleiteado. Inicialmente a ideia era de que a estátua fosse produzida por artistas nacionais. No entanto, os poucos trabalhos apresentados não animaram os membros da comissão, que acabaram por desistir do concurso e contratar um profissional de maior gabarito. A escolha recaiu sobre o estatuário francês Luiz Rochet, um veterano artista discípulo de David de Angers (autor do famoso monumento a Gutemberg, o pai da imprensa, na cidade francesa de Estrasburgo), que se encontrava na capital imperial brasileira. Rochet havia produzido um monumento belíssimo no Rio de Janeiro retratando o imperador D. Pedro II em cima de um cavalo (o primeiro monumento equestre da cidade), que fora inaugurado em 1862.

Assim, os membros da Comissão, Thomas Gomes dos Santos, Joaquim Norberto de Sousa e Silva e Fernando Sebastião Dias da Motta, procuraram o estatuário e o instruíram sobre o plano do monumento e as condições artísticas que neste se deviam guardar. Além dos representantes do IHGB, participou também das reuniões com o artista francês, o secretário da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, J. Maximiano Mafra.

Paralisado por conta da Guerra

Estava tudo caminhando bem até que, em 1864, eclode no sul do país a Guerra do Paraguai. O conflito durou seis anos e deixou um saldo de mais de 300 mil mortos. Por conta da guerra, o projeto José Bonifácio ficou suspenso. Além disso, neste período, três membros do comitê faleceram: o presidente da Comissão, conselheiro Eusébio (07/05/1868), além de Dias da Mota (04/01/1869) e Claudio Luís da Costa (27/05/1869).

Após o fim da Guerra do Paraguai, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro voltou a convocar a Comissão, fazendo nova reunião em 14 de junho de 1871, ocasião em que ocorrera a substituição o presidente da mesma, com a indicação para o cargo o Visconde do Bom Retiro, Luís Pedreira do Couto Ferraz, e na composição das vagas deixadas pelos outros falecidos, os drs. Francisco Ignácio Marcondes Homem de Mello (que viria a se tornar o Barão Homem de Melo) e Joaquim Manoel de Macedo (médico, jornalista e historiador).

Refeito o grupo, restava encontrar o estatuário Rochet, que havia retornado à sua terra natal. Destarte, o Visconde de Bom Retiro, em nome da Comissão, enviou à Paris o contrato para o artista que, assim que o assinou, iniciou seu trabalho, procurando concluir a obra o mais breve possível, uma vez que a ideia era inaugura-la em 7 de setembro de 1872, no quinquagésimo aniversário da Independência do Império.

O monumento em foto de Augusto Malta, 1910. Acervo Instituto Moreira Salles.

O monumento

A primeira estátua de José Bonifácio de Andrada e Silva foi representada de modo “pedestre” (como se diz tecnicamente), ou seja, em pé. O santista estava representado com vestimenta “à corte” (roupa que os nobres utilizavam em ocasiões especiais), tendo à mão esquerda o manifesto de 6 de agosto de 1822*, em que proclamou aos povos do universo a emancipação política do Brasil, e na mão direita a pena, com que escrevera o documento. Tal mão descansa sobre livros amontoados em uma cadeira negra.

O pedestal era ornado de quatro figuras alegóricas, cada qual representando a Justiça, a Poesia, a Ciência e a Integridade. Todas vasadas em bronze maciço. A base é de mármore rosa do monte Jura, localizado na França. Os degraus da escada octogonal que circunda o monumento, por sua vez, foram construídos com granito retirado das pedreiras do Rio de Janeiro. Ao total, a estátua mede 2,4 metros de altura e possui 18 toneladas de peso.

O monumento apresenta a seguinte inscrição nas faces:

JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA – Sete de Setembro de 1822 (de um lado)

JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA – Sete de Setembro de 1872 (do outro lado)

Nos faces restantes foram colocados os perfis de Antônio Carlos e Martim Francisco.

Manifesto de 6 de agosto de 1822

É o documento oficial em que o Príncipe Regente, D. Pedro, proclama a independência do Brasil, embora não anuncie a sua completa separação de Portugal. O processo de libertação é colocado de forma clara. Para muitos historiadores, esse documento tem mais força histórica do que o Grito do Ipiranga, que aconteceria mais de um mês depois. Dizem que o documento fora redigido por José Bonifácio de Andrada e Silva, embora há quem diga que fora uma obra de Gonçalves Ledo, outro importante líder da época.

O Imperador D. Pedro II esteve pessoalmente na festa. Foto do mesmo período, c. 1872.

A INAUGURAÇÃO

Estava a praça do Largo São Francisco de Paula lindamente ornado com auriflamas, em cujos centros viam-se coroas de folhas douradas emoldurando as quatro letras iniciais do nome do homenageado (J.B.A.S.), sustentadas por postes que se ligavam entre si por duplos cordões de galhardetes e de lanternas venezianas.

A presença mais ilustre da festa era ninguém menos do que o próprio Imperador, S.M. D. Pedro II, acompanhado de toda sua corte, corpo diplomático e altos funcionários do Estado, além dos membros da Comissão formada pelo IHGB e por numerosa massa popular.

Em frente ao edifício da escola Central do Rio de Janeiro levantou-se uma tenda, onde ondulavam diversos estandartes nacionais e brilhavam os numerosos pingentes de três grandes lustres de cristal. Nos quatro ângulos da praça havia grupos de plantas vivas. A estátua não estava à mostra, sendo velada por uma capa de damasco verde e amarela.

O programa de inauguração foi seguido à risca em todas as suas particularidades depois do Te-déum (hino cristão, usado principalmente na liturgia católica, como parte do Ofício de Leituras da Liturgia das Horas e outros eventos solenes de ações de graças) e do cortejo que percorreu o caminho saindo do Paço da Cidade, dirigindo-se pela praça D.Pedro II e ruas Primeiro de Março e do Ouvidor, até chegar ao local da inauguração.

Para dar à festa um cunho mais popular e grandioso, não se estabeleceu a ordem em que deviam ir os convidados com roupas específicas. Assim, era possível testemunhar lado a lado, homens com simples casacões pretos ao lado de pessoas trajadas de ricos fardões e severas togas.

Tão compacta era a multidão que só com muita dificuldade podia atravessa-la para chegar ao Largo de São Francisco de Paula, onde o Imperador foi recebido com grande aclamação. Nesse momento uma banda marcial executou o hino nacional e os sinos imponentes da igreja local se fizeram ouvir em alto e bom som.

S.M., o Imperador, então, subiu para a ala central da escola, onde já o aguardavam a Imperatriz Tereza Cristina e a princesa Isabel. Sabendo que alguns descendentes do conselheiro José Bonifácio lá estavam, ao lado da Comissão, dignou-se D. Pedro II ir até eles e o convidar para acompanha-lo até a área do trono. Entre os referidos estavam Dona Gabriela de Andrada, filha de Bonifácio e viúva de seu irmão, Martim Francisco.

Tudo pronto para a cerimônia, dirigiram-se alguns membros da comissão chefiada pelo Visconde de Bom Retiro até o Imperador. Foi-lhe, então, pedido que pegasse a ponta do véu que cobria a estátua e que ele escolhesse os que pegariam as outras pontas. D. Pedro II escolheu o seu genro, Conde D’Eu, o presidente do Conselho de Ministros, o presidente do Senado, o presidente da Câmara, o presidente do IHGB, o presidente da Comissão executora, o estatuário (Luís Rochet) e um dos descendentes de Bonifácio.

Ao som do hino nacional foi, então, inaugurado o monumento, sob intensos aplausos do povo. Naquele momento, uma enorme girandola de foguetes subiu do pátio da Escola Central, explodindo nos ares por alguns segundos. A seguir, foram dadas salvas de 19 tiros, a partir do Morro de Santo Antônio.

Voltando sua majestade para a sala do trono, ouviu o discurso do orador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Joaquim Manoel de Macedo. D. Pedro se manifestaria, dizendo as seguintes palavras: “As nações engrandecem-se com as homenagens prestadas a seus varões ilustres. José Bonifácio de Andrada e Silva é digno da veneração que lhe tributam todos os brasileiros, e eu lhe consagro também como grande pupilo

Monumento em festividades do 7 de setembro em 1945. Acervo do Arquivo Nacional.

Escravo libertado

Os estudantes da Escola Central, que angariavam recursos para poder libertar o único escravo que trabalhava nos alicerces do monumento, logo que souberam que Sua Majestade havia dado, de seu próprio bolso, a quantia que faltava para completar a missão de alforriar o cativo homem, subiram as escadas do edifício e, penetrando na sala do trono, gritaram entusiasticamente: “Via o Rei Cidadão! Viva o Imperador!”

Discurso pincelado

Dos vários discursos e falas pronunciadas no ato da inauguração, destacou-se o do dr. Francisco Ignácio Marcondes Homem de Mello, membro da Comissão do IHGB:

“Um homem extraordinário, pacientemente adormecido em sua poeira, acaba de ressuscitar para reclamar a sua glória adiada. Seu espírito penetrante havia antecipado o seu tempo: uma vez chegada a era das ideias que ele representava, estas vieram bater em seu túmulo e evoca-lo à vida.

No momento em que esta nascente nacionalidade recebeu dos acontecimentos a revelação, de sua potente virilidade, e sacudiu resolutamente de seus ombros a túnica ensanguentada de Nesso, que rasgava as carnes, ela volveu os olhos ao passado, como retemperando-se em suas origens. E eis aqui surge diante de nós a efigie augusta de José Bonifácio de Andrada e Silva.

O homem não é um ente isolado no vasto teatro da natureza. É um elo importante da grande cadeia da criação. Sua existência não é a luz passageira de um dia, que brilha hoje para amanhã sepultar-se nas trevas.

Sua missão abrange horizontes mais vastos. Pelo poder da inteligência ele triunfa da lei do tempo, e suas ideias alcançam as idades mais remotas.

Há meio século, o eminente brasileiro, cuja memória revive radiosa neste momento, dirigiu a seus concidadãos estas palavras: ‘Generosos cidadãos do Brasil, que amais a vossa pátria, sabei que sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o Brasil firmará sua independência nacional e segurará e defendera a sua liberal Constituição. Sem liberdade individual não pode haver civilização individual, nem solida riqueza; não pode haver moralidade e justiça; e sem estas filhas do céu, não há, nem pode haver brio, força e poder entre as nações!’

O voto do patriota cumpriu-se; e na terra de Santa Cruz o sol de 7 de setembro não alumia mais berço de escravos.

Devemos, senhores, agradecer a Deus esta rara fortuna, que sua infinita sabedoria nos reservou em seus impenetráveis desígnios. A mão que firmou a independência de nossa pátria, escreveu igualmente esse grande verbo da emancipação, que é o mesmo esplendor da glória na primeira página de nossa história.

Aparecemos perante a humanidade, com a consciência tranquila, altivos de nosso passado, e da obra de nossos pais.

Viemos chamados ao conselho das nações, subjugados pelo fato da escravidão, assediados, dominados por ele: mas, reagindo sempre contra o peso da secular instituição pela força do sentimento nacional, e desprendendo-o da solidariedade de nossos destinos com essa resolução refletida do homem de bem, que pesa os seus atos, e cumpre o dever com desassombro e serenidade. 

E permitiu-nos esta maravilhosa energia do caráter nacional realizar entre flores, nas expansões de uma alegria santa, a redenção de uma geração inteira, e a mesma libertação de nosso porvir.

Quando vemos, que entre outros povos este resultado tem custado hecatombes de sangue e o extermínio de milhares de vidas, podemos sem jactância dar testemunho, perante o mundo, da intima satisfação, que nos comove, contemplando este triunfo humanitário, e guardando como o nosso título de Brasileiros!

A glória de José Bonifácio não perecerá jamais.

Ela representa a onipotência da vontade nacional para firmar a sua independência, e o voto íntimo desta geração, desde o seu primeiro vagido, para repudiar o funesto vagido que constituía toda sua existência, e assegurar a liberdade a todos os filhos desta pátria.

E essa memória, senhores, eu vos asseguro, crescerá com as idades futuras, como por dia a dia se acrescenta a glória de Washington, de Franklin e Lincoln.

Essa recompensa suprema, a justiça dos tempos só a defere aos benfeitores da humanidade. Radia sobre a solenidade deste momento a luz imortal, que alumia as grandes magnificências da alma humana.

Confiamos do mármore e do bronze transmitir ao futuro o sentimento de nossa gratidão, sentimento sublime, que enobrece os povos e glorifica os impérios.

Pode ufanar-se de sua grandeza, e encarar com segurança seus destinos, esta nação que, ao cabo de cinco anos de luta sangrenta, robustecida com consciência de sua força, escreveu com a mão firme e lançou à luz do porvir essa página brilhante, que pertence já à história da humanidade.

No Brasil ninguém nasce escravo!

E repousando tranquila os olhos sobre o passado, a justiça dos tempos dirá, que José Bonifácio de Andrada e Silva sobreviveu a si mesmo para completar no futuro a independência e liberdade de sua pátria!

Críticas na imprensa

Logo depois da inauguração, a estátua dedicada a José Bonifácio foi humoristicamente criticada pelo caricaturista italiano Angelo Agostini, quando este ilustrava O Mosquito. Ele já havia satirizado outro monumento do francês Rochet e não perdoou a nova obra, por conta do formato do pedestal. A caricatura publicada em 1872 traz um comentário de cunho satírico, que talvez revelasse um descontentamento com a composição da base do monumento. É isso que sugere a legenda da imagem de duas figuras vestidas como artistas circenses, as quais se equilibram, cada uma sobre alguns objetos como uma mesa, garrafas, madeira e um banquinho: “Onde o Sr. Rochet se inspirou para o pedestal da estatua de J. Bonifacio.” Logo abaixo aparecem duas versões da escultura: a primeira lembra a posição original, já na segunda o personagem está sentado no banco que apoiava os livros, de pernas cruzadas e escrevendo sobre um dos livros. A primeira legenda lembraria que teria sido o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que financiou o monumento e, na segunda sugere uma função para o banco presente na obra: “Em vista d’isto não se pode dizer que o Sr. Rochet fez mal em lhe por um banquinho.”

O monumento nos dias de hoje. Foto de Daniel Jorge Filho (2017)