Das Igrejas ao Cemitérios

Tradição de sepultamentos no interior dos templos da cidade foram proibidos por Carta Régia promulgada há 220 anos

Nos idos coloniais, os primeiros povoadores da região, assim como praticamente todos os homens cristãos do mundo, eram sepultados dentro das igrejas, à exceção dos indivíduos que detinham pouca influência dentro da comunidade, especialmente os escravizados, alguns criminosos, e, obviamente, os não cristãos. Essa era uma prática milenar, seguida em boa parte da Europa e repetida na América colonial. Aos desvalidos, era dado apenas o direito de sepultura em cova-rasa, em local não muito distante das aldeias, vilas ou cidades. Esta regra fundamental seguida pela sociedade brasileira funcionou até 1801, quando o Reino de Portugal publicou uma Carta Régia ordenado a cessão da prática, por razões higiênicas e sanitárias.

Na tradição católica romana, os velórios e enterros aconteciam dentro dos tempos. Ao mesmo tempo que o corpo era velado, preparava-se o local do enterro dentro da igreja.

O costume dos sepultamentos dentro das igrejas se devia, basicamente, à ideia piedosa de que eles aumentavam as chances do falecido no “acerto de contas post mortem”. Assim, a renúncia a esse direito acabou se tornando um choque à cultura do mundo cristão, refletida também aqui em Santos, em que boa parte da população levou muitos anos para respeitar. A bem da verdade, os santistas só acabaram vencidos na sua resistência em função das epidemias que se acumulavam na vida local a partir da metade do século 19. O número de enterramentos, em razão da quantidade de mortos vitimados pelas epidemias era tão grande, que o ar do interior dos templos ficou insustentável, agravando ainda mais a crise sanitária que se instalou na cidade.

Os responsáveis pela burocracia dos enterramentos dentro dos templos eram as “Irmandades Religiosas”. Para um cidadão possuir o direito fundamental de ter um local para ser enterrado, era ser membro de uma dessas irmandades. Santos possuía várias, espalhadas pelas igrejas da cidade. Entre elas se destacavam a de Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos (a família Andrada pertencia a esta irmandade); Nossa Senhora do Terço; Veneranda Ordem Terceira do Carmo; Nossa Senhora do Rosário (onde estava os despojos de Braz Cubas e a mais popular da cidade); São Benedito; Nossa Senhora do Amparo; Nossa Senhora do Rosário Aparecida; Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (cujos mortos ficavam no antigo convento Franciscano do Valongo); Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte; entre outras menores.

Imagem rara do antigo Cemitério dos Ingleses (ou dos Estrangeiros), que ficava para os lados da região do atual Mercado do Paquetá. Foto tirada por Militão Augusto de Azevedo em 1865. Acervo IMS.

Cemitério Público

Em 1851, preocupada com o impacto sanitário provocado pelos surtos epidêmicos, a Câmara de Santos (instituição que detinha o poder de condução da cidade – ainda não existia a Prefeitura, que é de 1908) adquiriu um terreno quase às margens do Rio dos Soldados, para os lados do futuro Paquetá. Naquele local, distante da cidade, já existia um cemitério, conhecido como o dos “Estrangeiros” ou “Protestantes”. Eram lá que se enterravam os mortos dos não praticantes do catolicismo romano, em geral ingleses, poloneses e alemães. Dois anos depois, a municipalidade já havido erguido os muros no entorno do novo cemitério, um grande portão central e, no dia 18, após benção solene, aconteceram os primeiros enterramentos no sítio que ficou conhecido como “Cemitério Público Municipal”, mais tarde chamado popularmente de “Cemitério do Paquetá”.

As antigas irmandades religiosas migraram, então, para o local, não muito satisfeitas com a medida. Mas se acostumaram. Uma capela, de Santo Cristo, foi erguida no centro do Cemitério, em 1855. Os primeiros túmulos eram feitos de mármore branco, depois, com o tempo, passaram a ser de granito preto, que caracteriza até hoje o local.

O primeiro Cemitério Público de Santos, o Paquetá. No portão de entrada, a inscrição em latim: “In Pace Idpsum Dormian Et Requiescam” – “Descansem em paz os que dormem eternamente”.

Ricos e Pobres

Desde o princípio houve diferenciação dos sepultamentos, entre pessoas desvalidas e abastadas. Enquanto os ricos eram levados em carros enfeitados, puxados por cavalos emplumados, os pobres iam de charrete simples. Com o advento dos bondes, também se criou o bonde funerário, todo engalanado para quem podia pagar, e uma linha específica, de número 9, da Companhia City, com o caixão indo no encosto dos bancos mesmo.

Saboó e Areia Branca

Diante da quantidade de pessoas mortas pelos surtos epidêmicos que assolaram a cidade nas últimas duas décadas do Século 19, Santos se viu obrigado a abrir outro campo para enterramentos, desta vez na região do Saboó. Chamado de “Cemitério da Filosofia” (por conta da área ocupada, uma antiga chácara chamada de “Philozophia”), o lugar marcou definitivamente a ruptura entre as classes sociais da cidade. Enquanto o Paquetá se tornava um cemitério da elite santense, o Saboó se tornaria um campo santo popular. O primeiro enterro no local, ocorrido em 10 de abril de 1892, foi o de um menino de dez anos de idade.

A partir daí, enquanto o Cemitério do Paquetá abrigava falecidos famosos, como Benedicto Calixto, Martins Fontes e Vicente de Carvalho, o do Saboó passou a reunir o povão e algumas figuras populares, como Maria Mercedes Fea, vítima do famoso crime da mala (1928), a quem logo passaram a reputar milagres. Aliás, as lendas urbanas sobrenaturais se multiplicavam no Saboó e uma delas até filme de cinema ganhou em 1951, com a película “Alameda da Saudade, 113”.

O segundo cemitério da cidade, o da “Philozophia”, no Saboó, de 1892. Tornou-se o campo do povão e palco de várias lendas urbanas. Ele também tinha um portão que ostentava a mesma inscrição em latim do Paquetá.

Destarte, nos anos 1950, a cidade já apresentava uma demanda que Saboó e Paquetá já não suportavam mais e a consequência disso foi o surgimento do Cemitério da Areia Branca, instalado em 1953 na crescente Zona Noroeste. O novo campo santo da cidade passou a enterrar os indigentes, situação até hoje mantida. O Paquetá ainda era o preferido da elite santense, até o surgimento, em 1983, do primeiro cemitério privado do município, o Memorial, que trouxe o inusitado de ser verticalizado. Com seus treze andares e 46 metros de altura, ele chegou inclusive a ganhar, em 1990, o reconhecimento internacional como o mais alto do mundo, registrado no famoso Guiness Book of Records.

Enterramentos em um passado distante

O fundador Braz Cubas foi enterrado na Capela da Misericórdia (que existiu nas proximidades do Outeiro de Santa Catarina) e seus despojos foram trasladados depois para a primeira Matriz, consagrada à Nossa Senhora do Rosário dos Brancos (demolida em 1908, e localizada onde hoje está a Praça Antônio Telles). Havia enterramento nas igrejas do Valongo, Carmo e a outra Rosário, que recebia corpos de homens e mulheres negros (daí o nome Rosário dos Homens Pretos – que ainda existe, defronte à Praça Ruy Barbosa). José Bonifácio de Andrada e Silva também foi sepultado em igreja, no Carmo, antes de ter seus despojos trasladados para o atual Panteão, que fica no mesmo complexo religioso. Havia também enterramentos na Igreja da Misericórdia, que ficava onde está hoje o centro da Praça Mauá. Foi por isso que, em 1998, quando fizeram as obras do banheiro subterrâneo local, várias ossadas foram encontradas. Eram os mortos sepultados da Misericórdia.

Desde os anos 1980, o Memorial, primeiro cemitério privado da região, verticalizado, é famoso por ter ostentado por muitos anos o título do “Mais Alto do Mundo”, reconhecido pelo Guiness Book of Records em 1990. Essa imagem mostra o projeto de um prédio ainda mais alto para o complexo, que até hoje não foi executada.