Duas horas de palestra com o comendador Alfaya
Por Edmundo Amaral
(Extraído da edição de janeiro de 1939, da revista Flamma)
Outro dia o Gomes dos Santos telefona
– Então, vamos às 10h30 à casa do comendador Alfaya?
– Está certo, às 10h30 estarei lá.
Meses atrás, falando do próximo centenário da cidade de Santos, lembramos então que entre as comemorações da cidade, fossem também lembradas as figuras mais representativas entre os vivos da velha tradição santista e, fossem por isso, entrevistadas, para que de seus depoimentos, a Santos de hoje pudesse fazer uma ideia nítida e viva da Santos de ontem.
– O Comendador Alfaia?
– Ótimo!
O comendador João Manuel Alfaya Rodrigues é hoje, pela sua figura veneranda, pela tradição de sua família e pelos seus 90 anos bem vividos, a figura mais representativa do passado santista. Como sua cabeça coroada pela névoa de prata dos cabelos e com a sua distinção de velha raça, ele é bem uma reminiscência viva de uma época extinta. Como um eco de um passado longínquo. Vendo-o, evocamos Santos de oitenta anos atrás, a Santos de 1860. A Santos da Abolição, da Propaganda Republicana, de quando os banguês sacolejavam as suas cortina de lona pelo Caminho Velho da Barra, rumo às antigas chácaras; quando os escravos carregavam barris dentro da noite, enquanto o sino grande tocava a recolhida; quando vilões vadios gemiam de amor sob a luz dos lampiões de querosene; quando os chafarizes de pedra cantavam seu cântico d’água dentro das latas de folha.
Sobrevivente de uma geração que passou, viu também passarem os anos, como de uma janela de trem se vê passar a paisagem. Velhos amigos desapareceram, velhos cenários foram substituídos no palco da vida, homens, coisas, ambientes desaparecidos, diluídos na poeira impalpável do tempo.
A sua memória, entretanto, límpida e certa, guarda as imagens e as recordações do passado, como o côncavo de um búzio guarda o ruído do mar. A sua lembrança que conserva todas as ressonâncias desse passado, é como um arquivo onde se arquivassem todos os fatos santistas de 80 anos para cá. Folhear este arquivo é consulta-lo, é o que iríamos fazer.
O Comendador Alfaya mora num segundo andar de um prédio da Rua do Comércio. Entre velhos livros e antigas lembranças, ele repousa ali a sua velhice serena e digna. Em cima, diante de uma porta, onde vimos as armas ramalhudas e coloridas de Guatemala, nós batemos. Uma senhora nos recebe.
– O Comendador Alfaya está?
– Ele está no escritório à espera dos senhores.
Atravessamos um corredor onde velhos quadros dão uma nota d’arte nas paredes alugadas. No escritório em que penetramos, junto à secretaria atulhada de livros e papéis, está o Comendador Alfaya nos esperando de pé.
– Bom dia Comendador! Vimos importuna-lo.
João Alfaya, com aquela gentileza cavalheiresca que sempre foi o encanto e a sedução dos Alfayas, nos aperta num abraço amigo e acolhedor.
– Qual importunar! Para vocês estou sempre as ordens! Querem me folhear como um velho livro de memórias? Pois folheiem!
A sala, onde duas mesas atravancavam cobertas de papéis, tem um misto de presente e de passado. Num recanto, um velho arquivo consular cheio de gavetas entre duas estantes atulhada de livros. No alto da parede caiada, um antigo relógio entalhado em madeira, onde uma cabeça de galgo espia sobre o marcador. Nas paredes, espalhadas aqui e ali, velhas recordações: um registro d’armas dos Alfayas da Academia Heráldica Espanhola, encaixilhado, um portrait-charge do comendador assinado por Gonçalves; e, sobre a escrivaninha, numa moldura oval e preta, flores feitas de cabelos queridos encimando a palavra Saudade…
Nós olhamos enternecidamente aquele ancião quase tão idoso como século e que tão bem guardava uma tradição de boas maneiras.
– Comendador – começamos -. Santos vai comemorar o primeiro centenário de sua elevação à cidade. Essa cidade hoje toda se agita no entusiasmo dessa comemoração. “A Flamma”, revista de Santos para santistas, vai publicar um número especial dedicado a este acontecimento. Um número síntese de todas as atividades do passado e do presente de nossa terra. Não podíamos por isso esquece-lo e nem deixar de recorrer à sua memória evocativa.
Esse homem de noventa anos é de uma fina educação. As suas maneiras polidas pelas longas viagens e pelo contato contínuo com as velhas civilizações, guarda um tom ancien regimen.
– Já sei, vocês querem que eu fale de Santos da minha meninice e da minha mocidade. Pois seja. Vou lhes dizer, entretanto, em primeiro lugar, que a Santos desse tempo era pouco mais do que um vilarejo. Era um burgo de dez ou doze mil habitantes no máximo. Era um punhado de casas aninhadas entre os morros, o mangue e o mar. A Praça Rui Barbosa, nesse tempo, era cercado de pau-a-pique. De pau-a-pique eram também as casas, os sobradões eram quase sempre de taipa, acaçapados, de beirais longos, debruçados sobre as ruas mal calçadas. Depois, lembra-se então das velhas chácaras, cheias de sombras, roseiras bravas, árvores de cambucás e vasos de louças da Índia. Casas grandes, tábuas largas nos corredores sombrios, lâmpadas de petróleo Carcel iluminando dedos tecedores de crochê. A chácara dos Martins, perto do Saboó, a chácara de Domingos José Rodrigues, perto do Largo José Bonifácio.
– E as praias?
– Nas praias desertas havia uma ou outra chácara onde as famílias da cidade passavam o Verão. Mas era uma verdadeira viagem ir-se à praia naquele tempo. Faziam-se despedidas.
– Iam de bonde?
– Qual bonde? Não havia ainda nem bonde de burros. Ia-se de bangué, de caleça, ou nos carros grandes puxados a burros. Espécie desses carros de açougue, mas abertos e com bancos. Sua vó, Dona Francisca Jeremias da Silva Campos, possuía um, no qual sempre fazia a viagem. Ia-se pelo Caminho Velho da Barra, espécie de caminho de índio, acidentado e tortuoso.
– E o Centro, Comendador?
– Ruas tortas, sobradões de taipa iluminados pela luz dos candeeiros de azeite de peixe. Quando havia luar apagavam-se os candeeiros. Era sim a rua Antonina, a Rua direita, a rua Meridional, etc.
– E a vida social?
– Pacata. Jantares em família, um ou outro batizado ou casamento. Teatros? Lembro-me de um pertencente a um português Domingos de tal, onde Furtado Coelho e a Lucinda Simões representaram. Só mais tarde é que Augusto Fomm construiu o Guarany, onde estreou o Keller.
– E arte, a literatura, a poesia de então?
– Poetas? Lembro-me de um, por sinal, satírico. Refiro-me ao major Hegino Vicente de Carvalho, pai do grande poeta santista. O major escrevia no “Foguete”, jornal humorístico. Uma vez, eu era então delegado de polícia municipal, era meu secretário o Ricardo Rocha Lima. Ora, por esse tempo, o Emílio Ribeiro Campos, que dirigia o Diário de Santos , havia iniciado uma forte campanha contra o Ricardo. Uma noite, eu estava no teatro quando, no intervalo, o Ricardo pede-me licença e sai. Sai e espera o Ribeiro Campos ao pé do chafariz, onde aplica-lhe uma tunda com um guarda-chuva e cujos prejuízos foram avaliados em três mil Réis. No dia seguinte, o major Hegino, pelo “Foguete”, glosava em verso o caso.
O próprio Diário diz
Que na esquina do Curvello
Do doutor foram-lhe ao pelo
Quando a orquestra do Luís
Tangia um grave Bilú
O doutor se requebrava
Debaixo do couro cru
– Foi lá – disse apontando para o lado da Praça Mauá – no antigo Campo da Aclimação. Aí, acrescentou, também se faziam as paradas militares. Era comandante em chefe das milícias o coronel Cândido Dias de Albuquerque.
Depois de um silêncio, o comendador sorrir com outra recordação.
– Imaginem vocês, que no centro desse Campo da Aclimação, foi construído um chafariz que D. Pedro II inaugurou em sua viagem a Santos. Era todo de pedra lavrada e tinha no topo um ananás de folha de Flandres. Nesta ocasião deu-se um fato curioso. Um português chamado José Teixeira da Silva Braga, ofereceu para a inauguração, uma pipa de vinho tinto que foi entornada dentro do chafariz. Quando o imperador abriu a torneira, para inaugurar, em lugar de água, correu vinho! O presidente da Câmara, que se achava junto ao imperador, disse então a Dom Pedro:
Senhor, tal é o poder de Vossa Majestade, que já transforma água em vinho, como nas bodas de Canaã.
– Depois, ainda me lembro, houve vários discursos e, entre outros, falou um indivíduo qualquer. Foi quando no meio do discurso, uma voz se levanta e diz: Senhor, não preste atenção, esse homem não é daqui, é de Paranaguá!
– Nessa ocasião o imperador hospedou-se no Convento de São Bento. Havia no alto do morro uma bica de excelente água, onde o Imperador uma vez bebeu. Tão leve e fresca era a água que S.M. bebeu dois fartos copos. Mandaram, então, escrever junto à bica:
D. Pedro II esta fonte visitou
E para mais honra lhe dar
Dois copos d’água tomou
Pela janela aberta entrava o bafo quente do meio dia. Nós nos abanávamos com jornais. O comendador caçoou:
– Isso não é nada. É café pequeno! Vocês não sabem o que era calor em Santos há quarenta anos atrás
– De derreter untos, hein, comendador?
– Insuportável! O chão da cidade, muito arenoso, guardava o calor durante dia e o expelia num bafo quente durante a noite. Dormia-se de janelas abertas, apesar dos mosquitos de vinham do mangue. Esse mangue que quase cercava a cidade e que as Docas, substituindo os velhos trapiches, cercou e saneou. Sem esgotos e sem água encanada, o despejo das águas servidas era feito pelos escravos, que carregavam à noite, nos “tigres”, espécie de barris altos, que eles levavam na cabeça, cantando. A água potável era servida pelos chafarizes. Lembro-me de um, no lugar chamado “Buraco da Onça”, onde os escravos iam encher latas e moringas
– A cidade era, então, pouco saneada?
– Pouco? Não havia saneamento de espécie alguma. Daí o surto das epidemias periódicas. Lembro-me de duas. A primeira, então fez perto de seiscentas vítimas, o que é enorme para uma população de 10.000 habitantes!
E o comendador ainda recorda, evoca na sua esplêndida memória, o panorama da terra santista no passado. Fala-nos da campanha abolicionista, do movimento republicano. Recorda estes vultos magníficos que elevaram pelo talento e pelo ideal a terra santista. A sua palavra evocativa nos transporta e nos enleva. Mas uma campainha de telefone toca apressada. É alguém que deseja ver o comendador. No relógio do Rosário uma badalada marca meia-hora depois do meio-dia. Um bater de louça que vem de dentro, indica o almoço posto. Já levantados, abraçamos o comendador, num comovido abraço de despedida e agradecimento.
– Obrigado, comendador! Obrigado pela palestra e pelo acolhimento!
Alfaya tem sempre o gesto fidalgo e cavalheiresco
– Disponham vocês! Não tem nada que agradecer. Precisando de mais algum esclarecimento, voltem!
Descemos. Em baixo, sob sol forte, buzinavam automóveis, na esquina um rádio gritava a “Jardineira”, E foi diante dessa atualidade mecânica que tomamos contato outra vez com presente, porque nós descíamos, naquele momento, do alto de um passado de mais de oitenta anos.