O dia nascia aparentemente intranquilo naquele 11 de janeiro de 1930. O sol tentava em vão furar o bloqueio provocado por algumas nuvens carregadas que insistiam em cobrir os céus da cidade. Defronte ao majestoso Hotel Internacional do José Menino, situado no pé da areia na direção da Ilha Urubuqueçaba, quatro homens empurravam uma pequena aeronave, modelo Breda-15, italiana, de dois lugares, posicionando-a para a decolagem. Desde 1923, quando do pouso do Anhangá (famosa aeronave nacional) naquele trecho da praia santista, o José Menino virara referência para aviadores aventureiros de passagem pela cidade, a ponto de existirem hangares no local.
Entre os empurradores da chamativa engenhoca voadora, estava seu proprietário, o mecânico Vasco Cinquini, reconhecido herói da aviação nacional, integrante da célebre travessia do Oceano Atlântico realizada pelo gigantesco hidroavião “Jahú” em abril de 1927, a primeira realizada somente por brasileiros.
Cinquini, que também havia se tornado piloto, tirando seu brevê em meados de 1929, estava eufórico com o “brinquedo” comprado na Europa e que tinha acabado de desembarcar do navio “Conde Russo”, oriundo de Genova, Itália. O aparelho chegara a Santos nos primeiros dias do ano, devidamente encaixotado, e fora deixado na casa de Reynaldo Gonçalves, um amigo aviador que residia na Linha Forte Augusto, 179 (atual Avenida Almirante Saldanha da Gama), na Ponta da Praia. Posteriormente, foi levado para um pequeno hangar que Reynaldo mantinha nas proximidades do Hotel Internacional do José Menino.
Vasco não se conteve de alegria ao ser notificado da chegada de seu avião e logo desceu a Serra do Mar, de trem, acompanhado pelo companheiro mecânico Irany Correa, a fim de executar a montagem do aparelho. A ideia era voltar para São Paulo pelos ares, como realmente gostava de viajar.
Assim, como uma criança que ganha um quebra-cabeça de Natal, Cinquini se dedicou a montar, peça por peça, o Breda-15 italiano, auxiliado por Irany e Reynaldo, além do aviador Barreta, também seu amigo, e o mecânico Arthur Mitscke, que havia se prontificado para fazer um teste de voo assim que o equipamento estivesse pronto. Depois de seguir fielmente todas as instruções da fábrica italiana, a equipe concluiu o trabalho de reconstrução da aeronave no dia 10 de janeiro. Ansioso por ver sua aeronave nos céus, Vasco decidiu que faria o primeiro voo imediatamente.
Cinquini sonhava com o dinheiro que iria ganhar promovendo passeios e excursões aéreas. Era essa sua motivação pela compra do equipamento. Afinal, tinha mulher e dois filhos pequenos para cuidar. No entardecer daquele dia 10 de janeiro, com a ajuda dos companheiros, Vasco levantou voo e ganhou os céus de Santos. A aeronave elevou-se a uma altura de 200 metros. O aviador fez várias evoluções por cima das praias santistas. Mas algo parecia não muito bem. Durante o curto trajeto, Vasco notou que havia uma anormalidade na estabilidade do avião. O Breda mostrava uma leve tendência de se inclinar para um dos lados. Após alguns minutos, resolveu aterrissar, pousando junto ao hangar na praia. Já na areia, confessou aos amigos que sua aterrissagem não lhe pareceu muito segura.
Enquanto retornava a aeronave ao hangar do amigo Reynaldo, Vasco reafirmou a intenção de partir rumo a São Paulo na manhã do dia seguinte, 11 de janeiro. Barreta, após ouvir os relatos sobre a tendência de inclinação da aeronave, tentou demover o amigo da ideia de partir sem antes encontrar uma solução para aquele defeito. Ainda alertou para o fato de a aeronave italiana não ter vindo com uma bússola, o que dificultaria, e muito, a navegação aérea caso tivesse que enfrentar nevoeiro pelo caminho, como era comum no alto da Serra do Mar. Cinquini, no entanto, parecia decidido a prosseguir com sua ideia, confiando, naturalmente, na sua perícia de piloto.
À noite, Vasco, que se hospedara no Hotel Internacional do José Menino, recebeu a visita inesperada de um de seus companheiros da viagem heroica do “Jahú”, João Ribeiro de Barros, que também se encontrava em Santos à espera de uma aeronave que deveria desembarcar no porto e seria montada no campo da Latecóere, em Praia Grande (A partir de 1946, este campo se tornou o Campo da Aviação, ou Aeroclube de Praia Grande). Ficaram conversando até tarde da noite, a respeito do futuro e de seus “brinquedos”.
Tragédia nos céus
Era pouco mais de 6h30 da manhã, quando os quatro homens finalmente posicionaram o Breda-15, ainda sem nome, com o bico voltado na direção da Ponta da Praia para, enfim, realizar sua primeira viagem. O dia não estava muito propício para o voo, mas o famoso mecânico do lendário “Jahú” insistia que não haveria problemas. Antes de partir para São Paulo, porém, Vasco decidiu fazer mais um teste com sua aeronave. No fundo, uma leve preocupação havia se instalado em sua cabeça, embora não manifestasse aos companheiros. Arthur Mitscke havia novamente se prontificado a testar o avião e tomou lugar no assento do Breda, consentido por Cinquini. Porém, antes de acionar os motores, Vasco mudou de ideia e pediu ao amigo que deixasse o lugar. Ele mesmo voltaria a fazer os testes.
Era precisamente 7 horas da manhã, daquele 11 de janeiro, um sábado, quando os motores do Breda-15 foram acionados. Na praia do José Menino, alguns banhistas que passavam férias na cidade, observavam curiosos a movimentação no entorno da aeronave. Em poucos segundos, o pequeno avião ganhou velocidade, deslizou lépido pela areia da praia e subiu, sob os aplausos de algumas testemunhas.
O avião, na condução do entusiasmado Vasco, fez algumas evoluções por sobre a Ilha Urubuqueçaba. Em terra, os companheiros de Cinquini sorriam satisfeitos com o desempenho do amigo. De repente, algo inesperado. Ao fazer uma curva em declive, já buscando o posicionamento para o pouso, as asas do Breda-15 deslocaram-se para cima, tocando uma na outra sobre o aparelho, como se fossem orelhas de um coelho. Sem nenhuma chance de equilíbrio, o avião precipitou-se ao mar, chocando-se contra a água. Imediatamente, uma enorme coluna de fumaça subiu aos céus.
Na areia da praia, desespero. Os companheiros de Vasco e várias outras pessoas que estavam no local correram até a beira d´água. Dois banhistas, João José Guedes e Luiz Bastos do Amaral, resolveram correr em socorro do aviador, utilizando uma canoa que se encontrava na areia da praia. O Breda-15 ainda podia ser visto fora d´água, flutuando. Com remadas vigorosas, os dois socorristas chegaram até o aeroplano acidentado. No local, testemunharam, aflitos, que o ocupante estava morto.
Com muita dificuldade, Guedes e Amaral libertaram o corpo de Vasco do que sobrou do avião. No entanto, não conseguiram colocá-lo na canoa, devido às fortes ondas que mexiam o mar naquela manhã trágica. Decidiram, então, nadar até a praia apoiados na frágil embarcação, puxando o cadáver de Vasco Cinquini pelas pernas, que foram amarradas no seu próprio blusão, como forma de facilitar o trabalho de resgate. Ao mesmo tempo em que os dois salvadores se debatiam lutando contra o mar picado, o povo se comprimia na Praia do José Menino, acompanhando lance por lance, os passos finais daquela tragédia. Para piorar a situação, uma onda mais forte virou a canoa. O choque foi tão forte que os dois banhistas largaram o corpo de Cinquini, que acabou desaparecendo. Desesperados, decidiram safar-se da fúria do mar, nadando para a areia da praia.
O acidente aéreo chamou a atenção de uma lancha da Alfândega, que se encontrava nas imediações. Sem pestanejar, o comandante da embarcação, que era ninguém menos do que o conhecido esportista santista Edgard Perdigão, ordenou a partida imediata de socorro. Exímio nadador, Perdigão pulou no mar e mergulhou fundo, até que encontrou o corpo de Vasco Cinquini, trazendo-o para a lancha. O herói da aviação foi examinado no necrotério da Santa Casa, onde constatou-se a causa da morte. Cinquini sofreu traumatismo craniano, com várias fraturas expostas e ferimentos generalizados no tórax, além de queimaduras de 1º grau.
O corpo do aviador foi embalsamado e encaminhado para São Paulo, de trem. Uma curiosidade desta tragédia foi que o relógio de bolso de Vasco, encontrado posteriormente nos destroços do Breda-15, marcava 7h15, o horário exato da morte deste herói dos céus brasileiros, que seguiu seu caminho fazendo o que mais amava.