Nas duas paixões brasileiras, futebol e carnaval, Santos teve o privilégio de ter duas majestades de inigualável valor. No gramados imperou Edson, o Rei Pelé, que levou o nome da cidade para além das fronteiras nacionais. Nas ruas, passarelas, salões de baile e no braço do povo, na folia carnavalesca, tivemos Waldemar, o Momo de maior reinado da história do Brasil. Coroado pela primeira vez em 1950, ele manteve o trono de forma ininterrupta até 1991. Absolutamente ninguém foi tão soberano. Em fevereiro daquele ano, Waldemar deu uma entrevista histórica, onde falou sobre sua carreira e o amor que sempre nutriu pela maior festa popular do país. O Memória Santista reproduz na íntegra a matéria, produzida pelo jornalista Humberto Challoub, publicada em 11 de fevereiro de 1991.
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O REI DA ALEGRIA DEIXA O PODER
Após 42 anos reinando absoluto no Carnaval santista, o Rei Momo mais tradicional e antigo do país, Waldemar Esteves da Cunha, aposenta sua coroa este ano para dar vez a novos carnavalescos que, em 1992, queiram disputar o mais alto cargo que um folião pode almejar. Aos 72 anos e com disposição de causar inveja a muita gente, Waldemar não se preocupa em conceituar ou qualificar através de uma análise comparativa os carnavais realizados no passado e os da atualidade. O que lhe interessa é manter viva a emoção e a espontaneidade da mais antiga festa brasileira, seja com o samba no pé, seja pelo visual das alegorias e fantasias. É claro que ele ainda sente saudades do tempo em que o lança-perfume só era utilizado para molhar delicadamente o colo das senhoritas e quando todos aguardavam com ansiedade as novas composições de Lamartine Babo, que animam os salões até hoje. Para ele, pensar e falar sobre Carnaval representa sempre imensa alegria.
Por que o senhor escolheu esse Carnaval para se despedir oficialmente do Reinado de Momo?
Costuma-se dizer que devemos sair enquanto estamos por cima, enquanto ainda podemos ser lembrados pelos momentos felizes. Sinto que chegou a hora de dar chance a outras pessoas que também querem ser o Rei Momo de Santos.
O que motivou o senhor a ser Rei Momo durante tantos anos?
Antes de incorporar o Rei Momo eu representei, no período de 1947 a 1950, a Dorotéia, no desfile da “Dona Dorotéia, Vamos Furar Aquela Onda?”, que na época era a figura mais querida e importante do Carnaval da cidade. Quando foi realizado o primeiro concurso, promovido pelo jornal O Diário, para escolher o Rei Momo, eu resolvi disputar. Eram quatro os concorrentes, mas, como todos já sabiam que eu desfilava como Dorotéia, existiu um consenso em torno de minha eleição. Devo ressaltar que recebi o patrocínio e muito estímulo do Rancho “Agora Vai”, agremiação que representei durante o concurso.
Quais as principais diferenças que o senhor apontaria entre o Carnaval da atualidade (1992) e o que era realizado em décadas passadas?
As brincadeiras carnavalescas também acompanhavam a evolução e o momento sócio-político da sociedade. A preocupação maior era com o samba no pé. Na década de 1940, o lança-perfume eras apenas utilizado para molhar delicadamente o colo das moças. Eram brincadeiras mais inocentes. Atualmente os jovens estão muito mais livres de preconceitos e a preocupação maior das escolas é com o visual. Além do mais, o lança-perfume perdeu sua finalidade original e é utilizado como entorpecente. Não entendo isso como um retrocesso ou aperfeiçoamento do Carnaval, apenas um reflexo do que é a sociedade, com seus erros e acertos.
O senhor condena o nu nos desfiles das escolas de samba?
Não. Não condeno o nu de forma nenhuma (risos). Acho bonito, gosto e acredito que a maioria da população pensa assim. Creio, porém, que tudo que é exagerado não faz bem e existem, vez por outra, certos abusos que poderiam ser evitados.
Qual a sua opinião sobre a polêmica, surgida entre os sambistas e a atual administração municipal, com referencia à montagem das arquibancadas na avenida da praia para servir ao desfile das escolas?
A partir da oficialização do Carnaval da cidade, em 1955, tivemos um processo crescente e evolutivo em termos de organização dos desfiles de Carnaval. Devido ao número cada vez maior de pessoas interessadas em assistir a apresentação dos blocos e escolas, as administrações municipais foram obrigadas a participar mais dos eventos. No início, eram colocados cordões de isolamento nas avenidas, para que o público não invadisse a passarela onde passariam os blocos e ranchos. Com o aparecimento das escolas, o público aumentou consideravelmente e, por isso, o jeito foi construir arquibancadas. Assim, não concordo que o Carnaval deva retroceder à época dos cordões de isolamento. Todos querem, naturalmente, melhores acomodações.
O senhor quer dizer com isso que a cidade já viveu uma melhor fase em termos de organização de Carnaval?
Não se trata de dizer que existiram melhores ou piores fases. Quero ressaltar apenas que tivemos, nos últimos sete anos, um aprimoramento na montagem de arquibancadas. Em 1989, inclusive, foram criados espaços até para camarotes na avenida, a exemplo do que ocorre no Rio de Janeiro. Não temos que ter preconceitos ou orgulho em imitar o Carnaval do Rio. Temos que admitir que lá é o centro do Carnaval e isso não podemos contestar de forma nenhuma.
No seu entender, o poder público tem a obrigação de custear o Carnaval ou o senhor é defensor da tese de que a iniciativa privada deve assumir o custo total da festa?
Eu penso que o poder público ainda precisa ajudar porque as escolas de samba não têm condições de arcar sozinhas com os custos do Carnaval. O que precisa acontecer, na verdade, é que as agremiações sigam os exemplos dados pela X-9, união Imperial e Mocidade Amazonense. Ou seja, que promovam eventos o ano todo para angariar recursos.
Mas como resolver o problema das escolas menores, que sequer têm quadra para ensaios?
Mas é nesse ponto que o município poderia ajudar, cedendo espaço para que as escolas possam desenvolver trabalhos sérios e comunitários. Não se trata de dar o peixe, mas sim ensinar a pescar. Quando toco nesse assunto gosto de lembrar o caso da Escola de Samba Brasil. Apesar de enfrentar dificuldades e sem possuir um espaço definitivo, ela continua saindo desde 1949. E isso é o resultado do desejo e do esforço de uma comunidade. Existem histórias, porém, que tiveram um triste fim, que são os casos da Império do Samba e da Padre Paulo. Acho que, aí, o poder público deve dar o apoio.
Nestes 42 anos de Reinado de Momo, o senhor teve ao seu lado belas Rainhas do Carnaval. O senhor já se envolveu afetivamente ou manteve um caso amoroso com alguma?
Não (risos). Primeiro porque, quando assumi como Rei Momo, eu já estava casado há dois anos; segundo porque não se pode misturar o joio com o trigo. Existe uma relação profissional, visto que a moça que incorpora a figura da Rainha tem que cumprir um cansativo programa de trabalho.
É notório o aumento do número de bandas a cada Carnaval. O senhor acredita que esse fato está mudando aos poucos a tradição do Carnaval santista?
Com certeza esse será o futuro do Carnaval da cidade. Todos nós temos, no íntimo, a vontade de querer brincar o Carnaval. As bandas, neste aspecto, oferecem a oportunidade para que as pessoas possam se divertir sem a necessidade de pagamento ou a obrigatoriedade de serem sócias de algum clube. A banda é uma organização de voluntários, se assim posso definir. Da mesma forma que um folião entra na banda ele pode sair sem qualquer restrição.
O senhor concorda com a tese defendida por alguns estudiosos de que o Carnaval é uma festa que serve para tirar a atenção da população para os principais problemas, principalmente os de caráter socioeconômicos, enfrentados pelo país?
Não concordo. Acho que o Carnaval é uma tradição cultural e está no sangue do brasileiro. Essa festa popular, na verdade, serve como uma autêntica válvula de escape para a população que, por alguns momentos, quer ter o direito de não precisar se preocupar com a crise econômica ou com a guerra no Golfo Pérsico.
O uso de drogas aumenta consideravelmente durante os dias de folia. Como o senhor interpreta esse fato?
Eu não concordo quando se atribui ao Carnaval a responsabilidade pelo aumento do consumo de drogas. Ou uso de entorpecentes é um reflexo negativo da nossa sociedade, que não dá aos jovens oportunidades para que eles cultivem ideais mais sadios.
Os senhor apoia a ideia de que o tão desejado sambódromo seja construído em outra cidade que não Santos?
Já existe um campeonato regional de escolas de samba e a Baixada é composta por várias cidades. Se não há espaço físico em Santos para construção de um sambódromo, não vejo qualquer impedimento para que ele seja erguido em outro município. A cidade que materializasse essa ideia, incluindo o aproveitamento do prédio para reforçar o número de escolas, nos moldes do que acontece no Rio de Janeiro, com certeza não se arrependeria. Além de ampliar a oferta de vagas na rede de ensino, a administração municipal também seria recompensada com a maior arrecadação de tributos durante o período de Carnaval.
Mas o senhor não teme que a retirada dos desfiles carnavalescos da orla resultaria em diminuição de público?
Quem gosta de samba não se preocupa com local da apresentação das escolas. Ele quer ver o espetáculo em qualquer lugar. A Mocidade Amazonense é do Guarujá e desfila em Santos. Nem por isso seus simpatizantes deixam de assistir sua apresentação.
O Rio de Janeiro, para o senhor, parece ser um modelo de como o Carnaval deve ser administrado, tantas as vezes em que aquela cidade foi citada. Que pontos poderiam ser copiados e colocados em prática em nossa região?
Ficaria muito feliz se ao menos pudéssemos introduzir em todas as escolas de samba da região a filosofia de, durante todo ano, fazer com que as crianças participem e aprendam os trabalhos de preparação para o Carnaval. Isso serviria para tirar os menores da rua, evitando o crescimento da criminalidade por meio de uma efetiva formação profissional.
No próximo ano a cidade terá um novo Rei Momo e o senhor não terá mais obrigações oficiais a cumprir durante o Carnaval. Sua forma de participação na festa carnavalesca de 1992 já está definida?
Nisso eu não quero pensar, pois não sei o que acontecerá comigo. Não sei se terei coragem de permanecer na cidade durante esse período. O pessoal da coordenação do Carnaval já me convidou para participar dos trabalhos de organização para o próximo ano. Não creio que terei forças para isso. Talvez eu faça uma viagem para conhecer o Carnaval em outras cidades. O que vai ser exatamente, eu não sei.
Será que, na medida em que o Carnaval do próximo ano for se aproximando, a decisão de deixar o Reinado de Momo não pode ser revista?
De forma nenhuma. Mesmo porque, no próximo ano, já teremos programado um concurso para escolha do novo Rei Momo. Eu não poderia, em hipótese alguma, fazer uma desfeita dessas. Seria uma atitude mesquinha e antiética.
E como o Rei Momo define o Carnaval?
É difícil encontrar uma uma palavra ou uma frase que possa definir o que seja o Carnaval. Para mim é um sentimento espontâneo que nasce dentro da gente. Posso até citar o meu passado como exemplo. Apesar de ter pais portugueses que me davam uma educação rigorosa, comecei a participar desde criança de brincadeiras na rua. Quando me soltaram um pouco mais, não tive dúvidas em participar de vários blocos e dos banhos de mar à fantasia. Em pouco tempo me tornei um folião tão conhecido que ganhei até o apelido de “Gordinho do Campo Grande”.
Durante todos esses anos de folia existe alguma passagem que lhe volta à lembrança sempre que o senhor incorpora a figura de Rei Momo?
Existem milhares de coisas que me trazem alegria e tristeza. Prefiro, porém, lembrar das coisas alegres. Entre elas posso citar o dia, não me recordo com exatidão se foi em 1951 ou 1952, em que, vestido de Rei Momo fui visitar um clube na Ponta da Praia e passei por uma rua onde, num pequeno barraco, um grupo de pessoas promovia uma batucada. Entrei sem avisar e, quando todos notaram minha presença, ficaram espantados e pararam de tocar. Pedi para que o samba continuasse e comecei a dançar. A partir daí a festa foi ainda maior e, depois que me despedir, todos me acompanharam pela rua até o Clube Internacional. Foi um fato que nunca esqueci.
Como senhor avalia o sucesso das marchas carnavalescas de outras décadas, que até hoje ainda são frequentemente tocadas nos bailes?
É que naquela época existia Lamartine Babo. Ele era um compositor que todos os anos produzia músicas de qualidade. Na época, os carnavalescos aguardavam com ansiedade os lançamentos dele para o Carnaval. Existiam outros também de igual valor. A questão, na verdade, está na qualidade. As músicas novas, de maneira geral, não fazem o mesmo sucesso e são esquecidas rapidamente. Quando a banda quer por fogo no salão tem que recorrer às marchas antigas.
Qual o conselho que senhor daria ao novo Rei Momo que vai substitui-lo no próximo ano?
Primeiro conselho que eu daria ao Rei Momo, ou a qualquer outra pessoa que quer brilhar na vida, é o de que ele pense prioritariamente no bem-estar da sua família. Deve ainda respeitar o próximo, independente da idade, credo ou raça. O respeito às mulheres também é de fundamental importância. Ei, principalmente, nunca tirar proveito pessoal pelo fato de estar com uma coroa de brinquedo na cabeça.
SÍNTESE BIOGRÁFICA
Waldemar Esteves da Cunha e paulistano de nascimento, mas santista de coração, como sempre gosta de ressaltar. Filho de portugueses, O mais antigo Rei Momo do Brasil foi criado desde os cinco anos no bairro Campo Grande, onde mora até hoje. Desde a infância ele demonstrou sua vocação incontida para os festejos carnavalescos, que o fez acompanhar vários ranchos e blocos e participar com grande destaque dos banhos de mar à fantasia, travestido de Dorotéia. Entretanto, a forma do maior folião santista não ficou limitada a região da Baixada Santista. Em 1990, ele foi homenageado em Florianópolis, onde recebeu o carinhoso título de “Vovô dos Reis Momos” brasileiros. Além da paixão pelo Carnaval e pelas festas natalinas (ele também incorpora a figura de Papai Noel durante o período que antecede o Natal), Valdemar é um ardoroso torcedor do Santos, time que acompanha com muita devoção. Já com 72 anos de idade pesando quase 120 quilos, Valdemar é mesmo bastante ativo da paróquia da Igreja São Judas Tadeu, onde realizar trabalhos comunitários e manifesta toda sua religiosidade. Atualmente ele administra, junto com seus familiares, um estabelecimento que produz e comercializa próteses e outros artigos dentários.
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Waldemar Esteves da Cunha, nosso eterno Rei Momo, faleceu em Santos, no dia 8 de abril de 2013, aos 92 anos de idade.