Raul Jordão Magalhães era um advogado de alta projeção na capital paulista, bem sucedido e conhecido, chegou a ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (era membro do Partido Republicano Paulista – PRP), na legislatura de 1928 a 1930. Após a Revolução de 1932, cansado da política e do trabalho advocatício, resolveu descer a Serra do Mar e se dedicar à sua chácara, que ficava na avenida Conselheiro Nébias, na altura do nº 650 (proximidades da rua Alberto Baccarat), onde criou um espaço que ficou conhecido como “Vila dos Pássaros”.
Em Santos, Jordão se tornou diretor do Cassino do Hotel Atlântico, que era mais um hobby do que um trabalho propriamente dito, uma vez que sua maior paixão e motivo de esforço pessoal era por sua indescritível coleção ornitológica, que chegou a contabilizar mais de 4.000 animais, nacionais e estrangeiros, das mais variadas espécies conhecidas.
Em poucos anos, a Vila dos Pássaros de Raul Jordão se tornou ponto turístico na cidade, atraindo pessoas de todos os cantos do mundo de passagem por Santos. Em sua chácara, de cerca de 1.750 m² (25 x 70 m), os animais viviam em diversos viveiros, todos bem construídos de modo a reproduzir um local, o mais próximo possível do ambiente natural. A organização espacial da Vila se dava com a residência, na frente, voltada para a Conselheiro Nébias. Na parte de trás, um grande quintal absorvia o aviário e, nos lados, ficavam os viveiros com as gaiolas, próximas à cozinha. Ainda nos fundos havia um grande cercado e um pequeno lago para deleite das aves aquáticas.
As grandes estrelas da coleção eram os corrupiões, que emitiam os primeiros acordes do Hino Nacional Brasileiro; e a grandona e desengonçada ema, cujos ovos enormes atraiam a curiosidade das crianças. O lugar era multicolorido, dada a variedade de aves exóticas: araras, tucanos, gaviões, passarinhos das mais variadas procedências.
O auge da Vila dos Pássaros foi na década de 1940, tendo ela sido, inclusive, tema de reportagem especial da badalada revista O Cruzeiro (veja transcrição mais abaixo). Nos anos 1950, o espaço ainda continuava com seu glamour, mas já começava a encontrar suas primeiras dificuldades.
Jordão percebeu que muitas das espécies encontravam adversidades para aclimação, assim como ele mesmo enfrentava problemas para encontrar os alimentos mais apropriados a determinadas espécies, o resultou na perda de alguns exemplares preciosos.
Nos anos 1960, após mais de 20 anos dedicados ao espaço, Jordão começou a sentir o peso de sua própria idade e, por não contar com qualquer tipo de auxílio governamental, o criador da Vila dos Pássaros resolveu extingui-la, encerrando um capítulo de muito orgulho para a cidade de Santos. Algumas aves foram doadas ao Orquidário Municipal de Santos. Outras, segundo constam em alguns escritos, foram vendidas ao governo de Portugal. Independentemente do destino dos pássaros, os santistas nunca mais esqueceram este lugar mágico e colorido, que alegrou várias gerações de crianças em nossa cidade.
Na edição nº 30 da revista “O Cruzeiro”, lançada em 18 de maio de 1946, a Vila dos Pássaros, de Santos, é tema de uma interessante reportagem, escrita em forma de conto, a partir da história de um corvo que, por ser unicolor, parece não se encaixar num mundo multicolor proporcionado pelas outras aves de seu convívio. O Memória Santista transcreve, na íntegra, esta interessantíssima matéria, assinada por Nelson Motta e com fotografias de Peter Scheier.
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UM CORVO NA CIDADE DOS PÁSSAROS
Cada vida tem uma história.
Esta reportagem, porém, não tem nenhuma história de vida. O único personagem de gravata que nela aparece é Raul Jordão de Magalhães, que foi pai da pátria da República Velha e que agora vive sossegadamente na cidade de Santos. Ele entrou na casa dos sessenta anos com o passo seguro de quem vinha de longe:
– Eu venho da minha pobreza e das minhas lutas – dizia-nos numa conversa de madrugada. Os alicerces desta abastança – e passeou os dedos finos pelo salão cheio de luxos – lancei-os no chão duro da planície, nos árduos dias do fôro e dos negócios. Prosperei como pude e como Deus quis, entre canseiras e dificuldades. E hoje estou onde estou, satisfeito e sossegado, criando netos e passarinhos.
A história de Raul Jordão, entretanto, é uma outra história. O que nos levou até a sua presença foi a fama do seu grande parque ornitológico, onde se encontra a mais rica e completa coleção de passarinhos de todo o Brasil. Na sua chácara da avenida Conselheiro Nébias ele reuniu, efetivamente, em muitos anos de paciência e de paixão, uma espantosa cidade de passarinhos, na qual se encontra desde o minúsculo calafate japonês até os grandes mutuns de cartola vermelha. A “Vila dos Pássaros” está sempre aberta à curiosidade dos visitantes. É só entrar.
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Um corvo velho, que boiava na manha clara pousou mansamente bem no alto do viveiro dos faisões. Coçou o sovaco com o bico amarelo, compôs a batina de penas feias e ficou olhando com os olhos compridos para cidade festiva dos passarinhos de luxo.
Era um domingo de março. Um sol espalhafatoso apagara todas as sombras e pintava com tintas quentes uma aquarela cheia de verdes na paisagem transparente. A Vila dos Pássaros resplandecia na glória daquela matinada. Havia uma rapsódia de cantos e de cores. Cores de todas as cores.
A ema pescoçuda que se aninhara perto do muro, botou mais um ovo do tamanho de uma laranja. Saiu arrastando a perna, visivelmente encabulada, e foi vaiada pelas gargalhadas cafajestes dos marrecos de boina. Os periquitos miudinhos saudaram o acontecimento com uma gritaria infernal. E a ema, coitada, escondeu a cabeça na plumagem encardida. Dormiu desse jeito.
Se não dormisse, teria visto Margot, a arara sofisticada, rebolando diante de três louros dengosos, numa esquina cheia de flores. E teria notado quando sabiá laranjeira, modulando o assobio, encheu a manhã com a sua música melodiosa, sonora e fresca como a madrugada das florestas.
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O velho corvo cismava. Nascera no lixo e crescera na podridão. Era o bandido crônico nas histórias de passarinho. Ladrão numa fábula famosa. Trapaceiro nos versos de La Fontaine. Na realidade era o fantasma daquele mundo colorido que cantava lá embaixo.
Na República das aves não havia lugar para a sua feiura sem predicados. Cantar não cantava – grosnava. Voar não voava – rondava. Vivia segregado. Sozinho. Silencioso. Depois, aquela roupa preta e pesada, aquelas garras ásperas e insólitas, aqueles olhos duros, aquele bico torto…
Aquele destino doía-lhe como um desterro. No seu coração caiu uma tempestade. Os ressentimentos trovejavam:
– Não, antes ser bode! Antes ser porco! Um abutre é quase um morcego. Pior que morcego: É um verme que voa. Pássaro não. Nunca! Um urubu está mais longe de um canário do que um chimpanzé de uma loura!
Esse exame de consciência mortificou-o como uma cólica de fígado. O corvo quase despencou lá do alto ao peso de tanta amargura e de tanta humilhação. Arrepiou o pescoço. Cuspiu de raiva. E continuou olhando.
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Um bando barulhento de arapongas martelava os tímpanos da passarada. Bigornas estridentes percutiam nos seus peitos brancos e feriam à distância com um eco chato e triste. Em “background” a sinfonia das aves canoras continuou, com os mutuns em contraponto. Tudo acontecia como se não acontecesse nada.
Os calafates cor de carne dançavam de contentes num amplo viveiro azul. Um corrupião de peito amarelo em bico lustroso tocou os primeiros acordes do Hino Nacional para alguns visitantes embevecidos. Começou bonito e seguro, mas engasgou de repente no “…heroico brado retumbante”. Repetiu a estrofe mais de 10 vezes. Em nenhuma delas, porém, alcançou o “…sol da liberdade em raios fúlgidos”.
Raul Jordão, que assistia ao recital com emoção de empresário, explicou com orgulho à plateia atenta e curiosa:
– Tenho aqui na Vila dos Pássaros um coro de corrupiões amestrados, que já foi convidado até para cantar no Rádio. Tenho também…
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Raul Jordão tem de tudo no seu parque maravilhoso. Todas as famílias de pássaros estão ali representadas. Em cada navio que atraca em Santos chegam novos espécimes da fauna mundial para habitar as gaiolas daquela República de Passarinhos. Da Patagônia e da Grécia, de Pirapora e do Crato, da China e do Canadá – dos bosques e das florestas, dos planaltos e das planícies, dos quatro cantos do mundo Jordão recebe, a troca de muito dinheiro, os exemplares da sua coleção.
Em trata-os como se fossem príncipes. Gasta com eles uma verdadeira fortuna. Só para alimentá-los, o diretor do Atlântico tem uma equipe de empregados, que distribui cada dia, pela passarada grã-fina, 15 quilos de peixe fresco, 15 quilos de carne verde, 12 corações de boi, 12 cachos de bananas, uma caixa de mamão maduro, uvas, ovos, mel e pimenta, alpiste e arroz, para não falar numa preciosa larva asiática, que vem especialmente da Índia para alimentar os filhotes de faisão.
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As patativas começaram a dobrar docemente, numa serenata agradecida ao sol claro. Três pica-paus operosos esburacavam um galho de cedro com uma paciência e uma pertinácia de fazer dó. A batidinha deles no tronco enferidado morria no meio da cantoria.
O gavião papa-micos, hirsuto e mal encarado, gritava como um possesso e metia o peito peitudo na cerca de arame. Deram-lhe uma ratazana para comer e ele comeu. Comeu, mas continuou gritando. Queria mais. Deram-lhe outro rato. E mais outro. A sua fome não tinha fim.
Nem os seus gritos.
Ao lado, um falcão carijó, de ares fidalgos e tarsos vermelhos, lambiscava uma sobremesa qualquer com nobre etiqueta. Levantou os olhos amarelos e desdenhosos para o gavião escandaloso que pedia mais ratos para o seu almoço. Mirou com desprezo. E volveu à sobremesa.
No passeio de ladrinhos os flamingos faziam “footing” comboiados pelos mandarins da China e pelos quero-quero do Rio Grande, Raul Jordão apontou para uma ema pachorrenta que descansava na sombra explicou discretamente:
– Essa bicha, em menos de 200 dias, botou cerca de 105 ovos. Recordista de sofrimento, a pobre!
A cara da ema, uma cara desanimada e sofredora, confirmava plenamente heroica façanha. 105 ovos! E que ovos! Oh! bicho infeliz.
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Agora estamos diante dos papagaios anacãs, coloridos como um arco-íris e adornados com um cocar de penas rajadas. Juntos, mas parecem um cordão de foliões. E pintam e bordam. E assobiam marchinhas de carnaval. E dançam samba o dia inteiro.
No bairro deles a população passa o ano fantasiada, exceto as araraúnas azuis, que se trajam com a austeridade de um senador do Império. Lá a conversa está sempre ferrada. O namoro também.
Num quarteirão vizinho moram os cardeais – nacionais e estrangeiros. É um povo simplesmente decorativo, bem educado e distinto, quem não sabe cantar nem uma cantiga. Uns são purpurados, outros escarlates, outros amarelos, outros brancos. Uma família usa penacho vermelho. As outras têm um chapéu mais discreto.
Ao lado dos cardeais residem, numa extensa avenida de gaiolas, as graúnas e as tietingas, uns exóticos pássaros africanos e os sabiás brasileiros. Raul Jordão conhece-os a todos. Distingue um sabiá da praia de um sabiá da Bahia. Aponta um sabiá coleira e traduz em linguagem de gente a cantoria de um sabiá laranjeira. Chama de repente a nossa atenção para um avinhado “bordeaux” que caira com chilique no chão do viveiro.
– Esse, disse, é o avinhado de Cachoeira. Canta tanto, Com tanta alma e tanta força, que acaba sempre desfalecido. Sofre de ataque de música. Mas logo ele desperta, não se impressione, não.
Numa cidade de passarinho, um repórter tem sempre muito o que ver. Raul Jordão insiste em nos mostrar uma família de gralhas de cabeça preta e asas azuis “que tem feito misérias na Vila dos Pássaros”.
– Imagine você – É ele que está falando – que essas gralhas constituíram, aqui no meu quintal, uma verdadeira quadrilha de ladrões. As danadas esperam a noite descer e saem por aí, roubando tudo o que encontram, desde cigarros até joias e dinheiro. Operam na vizinhança com uma habilidade de fazer inveja aos gatunos mais sabidos. Já pensei até em expulsa-las da cidade dos passarinhos. Acabei, entretanto, resolvendo educa-las, na escola dos jacamins.
O jacamin é um pernauta sossegado, vestido de verde, que representa oficialmente a virtude daquele mundo de passarinhos. Cria e educa os pintos órfãos. Separar as brigas de galos. Impede que, por causa de uma minhoca, dois gansos se engalfinhem.
As garças – brancas, azuis, rosadas e verdes – tem também uma história para ser contada. E Raul Jordão contou:
– As minhas garças são cheias de nove horas. Vivem como umas rainhas. E de quando em quando, antes que o sol abrase o dia, aprontam os filhotes e vão juntas tomar o seu banho de mar. Passeiam tranquilamente na praia como se a praia fosse delas. Pescam uns camarões. Lavam a plumagem luxuosa e depois voltam para casa na maior ordem. Ao contrário, aliás, do que costumam fazer as gaivotas, que ao regressarem dos seus piqueniques no alto-mar, chegam sempre acompanhadas por um bando barulhento de pássaros bravios e mal educados.
O corvo velho dormira meditando. Acordou sobressaltado com os gritos enfurecidos do gavião papa-micos. Correu os olhos pela Vila e acompanhou atentamente o banquete dos faisões. Quando sol avisou que o dia já chegara ao meio, o corvo decolou de mansinho e mergulhou o corpo e a tristeza no céu generoso que não tinha nuvens e não tinha donos.