Era perto da hora do almoço naquele dia ensolarado de sábado, 16 de fevereiro de 1867. Na estação, ainda inacabada, pertencente à companhia de origem inglesa, São Paulo Railway, situada no aprazível Largo Monte Alegre, Valongo (anos mais tarde passaria a se chamar Largo Marquês de Monte Alegre), uma enorme composição ferroviária, formada por um comboio de seis vagões lotados de passageiros, além da locomotiva, encostava mansamente na plataforma central da simbólica construção cuja arquitetura se inspirava nos seus pares da terra da Rainha Vitória.
E ali, ao chegar a Santos, mesmo sem nenhum tipo de cerimônia, festa, corte de fita inaugural, estouro de champagne, música de banda ou presença de autoridades, se iniciavam dois dos mais importantes ciclos econômicos e sociais da história do Estado de São Paulo bem como do Brasil: o da exportação cafeeira e do tráfego de passageiros por ferrovia (vale lembrar que toda a carga exportada em Santos chegava ao porto no lombo de mulas). O primeiro impulsionou o país a um patamar de protagonismo no comércio internacional, abrindo definitivamente as suas portas para um tanto de riqueza, que praticamente varreu a face ainda colonial de uma nação que debutava no que se poderia chamar primeiro mundo. O segundo, além de ajudar a incrementar o item anterior, também alterou a identidade brasileira, tornando-a multicultural, por potencializar a capacidade de transportar milhares de estrangeiros, que para cá vieram contribuir ao desenvolvimento agrário e industrial brasileiro.
A origem da SPR
Construir uma estrada de ferro ligando as regiões cafeeiras paulistas ao seu principal porto era um sonho bastante antigo, iniciado não muito depois da própria invenção da ferrovia, ocorrida em 1825, pelas mãos do inglês George Stephenson (A primeira estrada, com 60 quilômetros de trilhos, ligava as cidades de Stokton e Darlington, na Inglaterra. Ela levou 10 anos para ser construída). Em 1839, um grupo de cafeicultores e membros do governo brasileiro submeteram à apreciação do engenheiro Robert Stephenson (filho de George) um aanteprojeto referente à construção de uma estrada de ferro através da Serra do Mar. Mas, considerado prematuro e tecnicamente equivocado, acabou engavetado.
Vinte anos depois, em 1859, o empresário Irineu Evangelista de Sousa, outorgado com o título de Barão de Mauá, voltou a acender a chama da expectatica em torno de uma estrada de ferro entre o interior paulista (no caso, Jundiaí) e Santos, passando pela capital. Com dinheiro de investidores brasileiros e estrangeiros, mandou, então, promover um estudo completo sobre a obra, chamando um dos maiores especialistas mundiais do assunto, o engenheiro britânico James Brunless. Para a execução do complexo projeto, foi contratado o engenheiro Daniel Makinson Fox, que propôs uma estratégia, para a Serra do Mar, que previa, naquele trecho, a viagem por escalonamentos, em quatro declives, onde, em cada qual haveria uma casa de força para fazer funcionar um sistema de tração por cabos. Ou seja, nas partes planas, o comboio seria conduzido pela locomotiva à vapor. Na Serra, seria amarrado a um cabo e desceria como um sistema “funicular ou locobreque” (muito mais tarde, em 1974, seria substituído pelo sistema de cremalheira).
Atrasos e reclamações
Com o projeto devidamente aprovado no governo imperial, constituiu-se em Londres a empresa São Paulo Railway (SPR), com capital de acionistas brasileiros e ingleses (majoritariamente). As obras se iniciaram em 1860 e se arrastaram mais do que o esperado devido a sua grande complexidade, em especial no trecho da Serra do Mar. Choviam cartas de reclamações nas redações dos jornais e no escritório da empresa inglesa, em especial escritas pelos fazendeiros de café de todo o interior e até de Minas Gerais, que sonhavam com a capacidade de aumento do escoamento das safras.
O acidente de 1865
Em setembro de 1865, com boa parte da estrada concluída (ainda faltava muitos detalhes), o então presidente da província de SP, João da Silva Carrão, resolveu promover uma “inauguração” da ferrovia Ingleza, com toda a pompa e circunstância. Mas, o que era pra ser uma festa, quase virou tragédia. No pequeno percurso entre a Mooca e a Estação da Luz, a composição descarrilhou, na altura da ponte do Rio Tamanduateí, ocasionando um acidente brutal, resultando inclusive em uma morte e vários feridos graves.
Finalmente aberta
Depois do lamentável episódio, tanto os ingleses como o governo brasileiro só admitiriam uma inaguração segura, prevista inicialmente para 1 de outubro de 1866. Porém, com os diversos desbarrancamentos que afetaram a estrada na altura de Cubatão, a data foi adiada para, somente, em fevereiro de 1867, finalmente se concretizar, sem pompa e circunstância, mas com um significado ímpar para o desenvolvimento de Santos e São Paulo.
CURIOSIDADES
Telegrama festivo
A única ação festiva referente à abertura da estrada SPR para o tráfego ocorreu no dia 15 de fevereiro, quando o então presidente da Província de São Paulo, José Tavares Bastos, em viagem de inspeção a Santos, ordenou envio de telegrama, a partir da Estação do Valongo, para a base operacional da empresa, com a autorização oficial para o início das operações. O jornal The Anglo Brazilian Time publicou em matéria de 23 de fevereiro: “Quando chegou a comitiva a esta última cidade, obteve a SPR a permissão para telegrafar informando que a linha seria aberta no dia seguinte – o 16 – evento que se realizou sem nota ou cerimônia. O telegrama foi despachado com aplausos!”
Comércio de mulas não parou
Após o início das operações da estrada de ferro, esperava-se o desaparecimento vertiginoso do sistema de transporte em mulas (tropeiros), mas isso não ocorreu tão rápido. Mesmo com o trem, milhares de muares ainda chegavam a Santos pela estrada do Vergueiro (que se tornaria o Caminho do Mar – hoje poularmente conhecida como Estrada Velha), vindo, principalmente das regiões de Sorocaba.