Há pouco mais de dez anos, o Brasil vem testemunhando um fenômeno curioso, relacionado ao consumo de uma das bebidas mais populares do mundo, a cerveja. Trata-se do fortalecimento da produção artesanal, que cresce a olhos vistos e já incomoda as gigantes do setor. Ao verificarmos este movimento, refletimos que o episódio parece apontar ao passado, como um caminho em parábola, constituindo uma ressignificação do modo de produzir e comercializar cerveja.
Este acontecimento remete-nos à primeira metade do século XIX, quando a cidade de Santos, privilegiada por ter uma porta voltada ao Oceano Atlântico, gozava da vantagem de poder experimentar, antes dos outros paulistas, as novidades cervejeiras que vinham de fora do Brasil, em especial após a abertura dos portos, em 1808. Nesta época, e por um longo tempo, a bebida chegava exclusivamente em barris de madeira, trazidas principalmente da Inglaterra.
Produção brasileira e santista
Com a chegada dos primeiros imigrantes ao Brasil (alemães, suícos e austríacos), a partir da década de 1810, o consumo de cerveja disparou. Afinal, os portugueses (e os latinos em geral) e seus descendentes eram mais afeitos ao vinho, em contraponto aos cidadãos de origem germânica e britânica. Com uma demanda em franco crescimento, no ano de 1836 surgia a primeira “fábrica” brasileira da bebida, no Rio de Janeiro, porém sob comando alemão. Dez anos depois, outra cervejaria artesanal era montada em Nova Petrópolis (RS), responsável pela criação da marca Ritter, uma das precursoras no país.
Os santistas assistiam a tudo sem se preocupar muito com o suprimento para o consumo local, uma vez que pelos navios que aqui atracavam a bebida chegava em abundância. O problema é que o preço não era muito acessível ao bolso do povo.
Em 1877, o imigrante alemão Bruno Feder (nascido em 1846 na cidade de Wartenberg), estabelecido em Santos após breve passagem por Joinville, Santa Catarina, montou na cidade uma distribuidora de bebidas e, dois anos depois (10 de fevereiro de 1879), percebendo a oportunidade que se descortinava à sua frente, criou a Cervejaria São Bento, assim batizada em função do local onde mantinha seu estabelecimento (nas proximidades do Morro de São Bento). Começou produzindo dois tipos: Porter e Pale Ale (registradas na Junta Comercial de São Paulo em 1896, sob os números 82 e 83, respectivamente).
A cerveja Pale Ale São Bento chegou a ganhar a medalha de bronze durante a exposição Brasil/Alemanha, ocorrida em 1881.
Bruno Feder retornou para a Alemanha (onde veio a falecer, em 1895, na cidade de Dresden), deixando para o filho mais velho, nascido em Santos, Antônio Augusto Eugênio Feder (que tinha 22 anos à época), a condução do negócio cervejeiro. O empresário, então, além de registrar as marcas da família na Junta Comercial, passou a investir em publicidade.
Nesta época, o barril já era substituído por garrafas de vidro, via de regra fechadas com rolhas (a exemplo dos vinhos). A cerveja santista, então, e de fato, conquistou o paladar local, com suas versões clara e escura, e era presença constante nas mesas dos principais bares não só da cidade de Santos, mas de boa parte das casas comerciais da capital paulista e do interior. A cervejaria São Bento funcionou em Santos até 1915.
Na esteira do sucesso da cerveja São Bento, e “sorvendo” da água do ribeirão de São Jerônimo, surgia, em 1890, outra marca local, a Recreio Santista, cuja sede ficava na Travessa Mauá (atual Rua Cidade de Toledo). Logo depois, em 1902, era a vez da Cervejaria União, cujo centro distribuidor ficava na Rua Xv de Novembro.
Com a concorrência acirrada entre os três cervejeiros de Santos, quem ganhava era o consumidor, que tinha à disposição produtos de melhor qualidade, com preço mais justo.
Santa Cerveja!
Em 1904, alguns pequenos varejistas resolveram montar uma cooperativa com o intuito de produzir uma cerveja que fosse forte, refrescante e barata, para entrar na briga de mercado pelo consumidor de baixa renda. Foi aí que nasceu a marca “Braz Cubas”, em referência ao fundador de Santos. Quando a estátua em homenagem ao pioneiro santista foi inaugurada, em 1908, o rótulo da nova bebida ganhou o desenho do monumento, e fez o maior sucesso.
Outra marca que fez barulho na cidade foi a Penha, produzida pela empresa Pinto & Figueiredo, firma especializada em engarrafamento de água mineral e refrigerantes gasosos. Como costumava trabalhar seu marketing em cima das propriedades saudáveis de seus produtos, a companhia santista, localizada no bairro do Valongo (Rua Marquês de Herval, 54), não economizou ao propagandear na imprensa local as qualidades santificadas da Cerveja da Penha: “Pode-se tomar a nossa cerveja com toda a confiança, sem receio de fazer dor de cabeça, como acontecem com outras cervejas. A cerveja preta da Penha dá extraordinário vigor e purifica o sangue, tendo um paladar agradável por excelência. As pessoas que fazem uso da nossa cerveja diariamente, mesmo as refeições, nunca podem sofrer do estômago, tal a forma porque ajuda na digestão”. Enfim, era, de fato, uma cerveja santa!
Cervejas e Prêmios
Com o passar dos anos, algumas marcas foram perdendo força e desaparecendo, em especial por conta do surgimento de grandes companhias, que se instalaram na capital, como a Antarctica Paulista. Ainda assim, os santistas testemunharam o aparecimento de marcas menores, como a Mossoró e a Anchieta, muito fortes nos anos 1950. Ambas disputavam os consumidores à base de premiações, fosse estampada nas tampinhas das garrafas (a rolha já havia sido aposentada) ou através de programas esportivos nas estações radiofônicas da cidade. A Mossoró, por exemplo, ficou famosa por sortear rádios de mesa (objeto de desejo de muitos lares santistas, numa época em que a TV ainda engatinhava). Já a Anchieta havia se relacionado com o mundo do futebol e oferecia dinheiro para quem acertasse semanalmente, e em cheio, os resultados do Campeonato Paulista. Os vencedores eram anunciados na Rádio Cacique.
A Cia Antarctica Paulista, considerada a maior e mais famosa cervejaria de São Paulo desde a virada do século XIX para o XX, mantinha uma relação afetiva enorme com a cidade de Santos. Os seus principais fundadores e acionistas, o alemão naturalizado brasileiro João Carlos Antônio Frederico Zerrenner e o dinamarquês Adam Ditrik von Bülow, iniciaram suas atividades profissionais no porto santista, como exportadores de café. Eles eram sócios na Zerrenner, Bülow & Cia, antes de fundarem a Antarctica em 1891. Com o passar do tempo, Zerrenner insistiu em implantar a sua companhia cervejeira em Santos, sonho que acabou concretizando na década de 1920, com a construção de uma estrutura gigantesca no bairro da Vila Mathias, situada entre as avenidas Rangel Pestana e Francisco Manoel. Antes disso, em 1918, como uma espécie de cortejo apaixonado, a Antarctica lançava no mercado a cerveja “Santista”, que fez grande sucesso por aqui. A fábrica da Antarctica se manteve na ativa na cidade santista até meados dos anos 80.
Outra marca reconhecida nacionalmente, a Caracú, dona da cerveja preta mais consumida no país, também teve em Santos um capítulo especial. Pertencente à Cervejaria Rio Claro (criada em 1899), a marca do boi zebu, considerada “extra-forte” e um santo vitamínico às lactantes, foi amplamente produzida em uma unidade fabril situada na rua Senador Feijó, 415. Neste lugar, na década de 70, surgiria a primeira cerveja em lata do Brasil, a Skol, produzida a partir de folha de flandres. A exemplo da Antarctica, a Skol-Caracú também paralisou suas atividades em Santos em meados da década de 1980.
Cervejeiros do novo milênio
De lá para cá, muitas coisas mudaram. Santos deixou de ser um centro produtor e até mesmo de entrada em massa de cervejas internacionais. Mas, nos últimos quinze anos, resgatando alguns traços do passado, o hábito de produzir cervejas artesanais, assim como consumi-las, parece ter encontrado um novo caminho. Grupos de aficcionados por cervejas “caseiras” vêm se reunindo em eventos diversos na cidade, como se estivessem incorporando o espírito dos velhos e bravos pioneiros do passado cervejeiro santista.