Terça-feira, 3 de abril de 1923. Eram quase seis horas da tarde quando os três jurados do primeiro concurso brasileiro de beleza feminina resolveram anunciar o veredito. João Batista da Costa, renomado pintor, professor e diretor da Escola Nacional de Belas Artes, olhava serenamente para os seus companheiros, o escultor José Otávio Correia Lima e o ilustrador especialista em anatomia humana, Raul Pederneiras. Costa finalmente teve a certeza de que o grupo havia chegado a um acordo justo e, sorridente, apertou as mãos dos companheiros, ciente da missão cumprida.
Decididamente não poderia haver júri mais gabaritado para avaliar os traços e a graça das 319 participantes classificadas para o concurso “A Mais Bella do Brasil”, promovido pela “Revista da Semana” e Jornal “A Noite”, do Rio de Janeiro, duas das maiores potencias editoriais da época. O pleito, iniciado em meados de outubro de 1921, havia se arrastado mais do que o esperado. A ideia original, de anunciar a vencedora na abertura das comemorações do centenário da Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1922, caíra por terra frente ao estrondoso sucesso obtido pelos concursos municipais e regionais, conduzidos por revistas e jornais parceiros dos organizadores, como a “Flamma”, responsável pelo certame na cidade de Santos. Havia também a dificuldade de logística para a etapa nacional. Reunir na capital federal tamanha quantidade de jovens beldades, junto com seus acompanhantes, era deveras complicado, ainda mais numa Rio de Janeiro que fervilhava de gente em função da festa alusiva aos 100 anos da liberdade pátria.
Diante da situação, as direções de a “Revista da Semana” e “A Noite” determinaram que o processo de escolha se daria através de provas fotográficas, que, afinal, havia sido a opção de quase todos os concursos promovidos nos mais variados municípios brasileiros. Tal escolha, além de não desmerecer a “beleza em pessoa”, isentava de risco o resultado do certame, uma vez que o trio de jurados era composto por renomados especialistas em arte, figuras altamente capacitadas em identificar possíveis alterações manipuladas nas imagens reveladas em papel. Através deste critério, logo de partida, 270 candidatas à Rainha da Beleza foram descartadas em razão do material apresentado. Em muitas fotografias havia nítida adulteração, feita a partir de coloração artificial.
Santistas se destacam
Batista da Costa, Correia Lima e Pederneiras trabalharam exaustivamente por dias a fio, avaliando minuciosamente cada ponto da fisionomia e graça das candidatas à mulher símbolo da beleza brasileira. Detalhes como a simetria dos olhos, formato do queixo e até mesmo a expressão diante das câmeras foram levadas em conta. Na reta final das avaliações, 40 “senhorinhas” foram classificadas: Eunice Mexias, de Vassouras (RJ); Enedina Prudente, de Uberabinha (MG); Eduardina da Silva Prado, de Itu (SP); Orminda Ovalle, de Ipanema (RJ); Maria Antonieta Pereira, de Ceará Mirim (RN); Severina Grimaldi, de Campinas (SP); Maria Noronha, de Petrópolis (RJ); Celeste Thaumaturgo, de Manaus (AM); Iracema Toscano, de São João Del Rey (MG); Maria Dagmar da Rocha Barros , de Jaboticabal (SP); Irene Jardim, de Santa Luzia do Norte (AL); Aracy Zucolo, de Rosário (RS); Hilda Luz Castro Lima, de Salvador (BA); Zezé Leone, de Santos (SP); Regina Lima, de Nossa Senhora do Pilar (AL); Maria Vidal, de Juiz de Fora (MG); Lili Machado, de Santos (SP); Dulce Martins Pizarro, de Taquary (RS); Maria Luiza Paleta, de Juiz de Fora (MG); Irene Defner, de Manaus (AM); Yara Jordão de Oliveira, de Copacabana (RJ); Luiza Barbosa, de Patrocínio (MG); Donizette Leivas, de São Lourenço (RS); Carolina Russo, de Santos (SP); Arminda Arruda Campos, de São Carlos (SP); Jandyra de Aguiar, de Rio Comprido (RJ); Dorothildes Adams, de Porto Alegre (RS); Marina Chaves, de Manaus (AM); Zilota Assumpção, de Santos (SP); Antonina de Figueiredo, de Sobral (CE); Lygia Castilho, de Salvador (BA); Anna Ditzel, de Prudentópolis (PR); Maria Eulina Vieira, de Campo Grande (PB); Bila Ortiz, de Uruguaiana (RS); Maria Eulina de Senna, de Belo Horizonte (MG); Maria Conceição de Azevedo, de Recife (PE); Isaura Fraga de Castro, de Belém (PA); Deolinda Fonseca, de Sorocaba (SP); Dulce Orsini, de Sabará (MG); Stella Doria Ferrão, de Curitiba (PR); Carmem da Luz Collaço, de Florianópolis (SC); Cecy Neves de Oliveira, de Recife (PE); Alisse Perissé, de Alegrete (RS); Maria Ballalai Duarte Fontes, de Salvador (BA); Maria Hugues da Silveira, de Manaus (AM); Carmem Novaes Haldrigh, de Santos (SP); Silvia de Campos Continentino, de Oliveira (MG); Constança do Serro Azul, de Curitiba (PR); e Stella Doria Valente, de Salvador (BA).
Santos foi, como pode-se notar pela relação, a cidade que mais classificou candidatas à segunda fase, cinco, ao total, à frente de Salvador (4), Manaus (4) e Rio de Janeiro (2), locais onde o concurso se tornou uma febre, com centenas de participantes.
Depois deste filtro seletivo, de caráter técnico, o júri voltou à mesa de trabalho para analisar com mais afinco a questão da beleza em si. A situação se tornava mais complicada, uma vez que, agora, as decisões corriam risco de serem “contaminadas” pelo gosto pessoal de cada jurado. No entanto, Correia Lima sugeriu aos companheiros que se despissem das crenças e conceitos pessoais de beleza e concentrassem as avaliações na questão anatômica. É claro que a graça e simpatia contariam pontos, mas com um peso menor na nota final.
No final de março, apesar da exaustão mental e do cansaço nos olhos, Batista da Costa, Correia Lima e Pederneiras finalmente chegavam a uma decisão, extraindo quatro candidatas, das 40 classificadas, para a batalha final pela Coroa da Beleza Brasileira. Foram elas: Orminda Ovalle, de Ipanema (RJ); Dorothildes Adams, de Porto Alegre (RS), Hilda Luz de Castro Lima, de Salvador (BA) e Zezé Leone, de Santos (SP).
Felizes por terem a certeza de que haviam escolhido bem o quarteto finalista, o júri determinou a data para o embate decisivo: 3 de abril de 1923.
O triunfo de Zezé
O salão nobre do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro estava repleto de jornalistas ávidos por saber, enfim, qual seria a mulher brasileira, a mais bela entre todas do país. Batista da Costa e seus companheiros haviam olhado com especial atenção para o semblante das mais formosas entre as 319 que avaliaram desde o início do julgamento. Fisionomias límpidas, serenas e que emanavam graça e pureza. Pederneiras, conhecido anatomista, atentou-se à leveza dos traços da candidata santista. Para ele, Zezé, definitivamente, era dona da aparência mais delicada, ao mesmo tempo que sedutora. Correia Lima se apaixonou pelas poses com que a jovem Leone se deixou fotografar. Parecia à vontade e exalava uma aura majestosa. Definitivamente, não havia mais o que dizer. Zezé era a mais bela, mais graciosa e honraria o cetro real da beleza brasileira. A representante santista possuía, em maior número do que as outras formosas patrícias, os predicados estéticos, admiravelmente combinados, presteza de linhas, graça de contornos, delicadezas de expressão e, sobretudo, completa proporcionalidade em todos os detalhes da face.
O líder do júri, então, levantou-se e anunciou sua decisão pessoal, corroborada pelos companheiros. Zezé Leone, candidata da cidade de Santos, era eleita como a mulher mais bela do Brasil. Veredito consolidado, o próximo passo era anunciá-lo aos mentores do concurso, como também aos jornalistas que ali esperavam. Eles se encarregariam de espalhar a boa nova pelo país.
A família Leone
Maria José Leone, a Zezé, tinha apenas 19 anos de idade quando participou da etapa santista do concurso “A Mais Bela”, promovido pela revista Flamma. Sua conquista caira como uma benção para a família Leone, cuja história vinha carregada de capítulos de luta e sofrimentos, dignos de um roteiro shakespeariano. Uma história que teve início nos anos findos do século XIX, no Rio de Janeiro.
O pai de Zezé, o imigrante italiano Francisco Vanni Leone, nada mais era do que um modesto oficial de alfaiate, cujos serviços costumavam ser largamente solicitados pelas altas patentes do Quartel dos Barbonos, área militar administrada com rigor pelo tenente-coronel Antonio do Rego Duarte, bravo oficial do Exército Brasileiro, homem duplamente honrado com a insígnia da Ordem da Rosa e com a medalha militar de Monte Caseros. Coronel Duarte era casado com D. Ângela Doria Panfili, herdeira de nobres italianos, antiga senhora do castelo onde morrera Giuseppe Verdi (um dos maiores compositores de ópera da Itália), erguido ao manso sussurro das brisas do Adriático. Com Ângela, teve oito filhos, entre eles a jovem Perpétua, que vez ou outra debruçava-se à janela do solar da família desejando poder, um dia, encontrar um homem que a ajudasse a retomar o castelo dos seus antepassados.
Porém, ao invés do nobre cavalheiro de seus sonhos, a filha do coronel apaixonou-se pelo modesto alfaiate italiano que diariamente caminhava defronte à sua casa, em demanda do seu ofício. Ao ver Perpétua acotovelada à janela, o estrangeiro sentia algo de estranho a roer-lhe o coração, uma sensação reprimida tão somente pela barreira inexpugnável das convenções sociais existentes entre os dois. Mas, à senhora fidalga, não era estranha a figura do jovem italiano. Achava-o extremamente simpático, atraente mesmo. Um belo dia, em que todos os representantes da família Duarte se achavam recolhidos para o interior da casa, o jovem passou e, num golpe de audácia, vendo na janela a fada dos seus sonhos, a cumprimentou timidamente.
A família da fidalga moça, porém, sabedora do que se vinha passando, e consciente das suas responsabilidades perante à sociedade maledicente, tratou de averiguar qual a origem do rapaz, o seu modo de vida e as suas posses. O resultado das pesquisas, como era de se esperar, foi contraditório. O moço não satisfazia em absoluto à complicadíssima árvore genealógica de Perpétua. Com a oposição erguida na casa contra o seu eleito, o amor da senhorinha Duarte pelo alfaiate se intensificou. Iniciaram-se, então, toda sorte de conversas angustiosas, recados aflitos e bilhetinhos lacônicos, porém expressivos. Mas Deus, com toda a sua bondade, acabou por reunir os dois, ocasião em que trocaram juras de amor e fidelidade. Os laços da oposição foram rompidos, o que lhes significou a inimizade do mundo todo. Ambos se amavam com todas as forças de suas almas. Afinal, contra as leis do coração há preconceitos? Houve, a partir de então, uma luta de forças invisíveis. De um lado, a oposição acirrada da família; do outro, duas almas imbuídas de pensamentos puríssimos.
Francisco Vanni Leone e Perpétua se casaram em meio a uma tempestade de insultos e incriminações por parte da família Duarte.
A luta pela vida
Sem clima e condições de convivência nos arrabaldes da família Duarte, Francisco e Perpétua foram buscar a sorte e a felicidade na cidade de Campinas, interior de São Paulo. Ali, o que poderia esperar o casal senão um mundo imenso diante de si, senão as duras contingências da batalha da vida a embargar-lhes os passos? O amor, este sim, superou os obstáculos. Possuidora de esmeradíssima educação, D. Perpétua Duarte Leone passou a lecionar piano, servir de dama de companhia, trabalhar como preceptora. Francisco, até que Deu tivesse compaixão do casal, continuaria sua vida de outrora. Acaso era o seu trabalho desonroso? E assim viveram muitos anos, até que Deus proporcionou-lhes uma de suas maiores bênçãos: o nascimento da linda Zezé.
Numa radiosa manhã de 1º de dezembro de 1902, nascia Maria José Leone, uma boneca, um verdadeiro anjo, em cujos olhos brilhavam a mesma cor do céu azul daquele dia. A família viveu feliz durante algum tempo, até o ano em que Zezé completou seu 3º aniversário. Foi quando sobreveio uma crise espantosa para a família Leone. As alunas de D. Perpétua escasseavam e as oficinas onde seu marido costumava arranjar trabalho fecharam as portas. Sem perspectivas de novos trabalhos em Campinas, Francisco acabou atraído pela sugestão de um colega que vivia em Santos. Vendo a necessidade bater-lhes à porta, o casal discutia a grave situação da família, enquanto a linda garotinha dormia o seu sono de inocência num colchão de penas. Decidiram, por fim, tentar a sorte na cidade portuária.
Os Leone em Santos
Em 1905, Santos teve a sua população aumentada com três boas almas. Os Leone recomeçaram, então, a vida na velha cidade litorânea paulista, berço de inúmeras lutas e glórias para o país. Haveria campo mais fértil para inspirar uma retomada na vida? “Deus é bom minha querida. Sejamos também bons e fortes”, dizia Francisco à sua companheira.
E, assim, os anos se passaram, e tudo foi conduzido conforme esperavam. Dona Perpétua se notabilizou nas aulas de piano que passou a oferecer às moças ricas da sociedade santista. Também se tornou a organista oficial da Beneficência Portuguesa, onde tocava nas missas que ocorriam na capelinha da antiga instituição. Francisco trabalhou no ofício ao qual se tornou reconhecido desde que chegara ao Brasil, em alfaiatarias, na confecção de belos ternos e vestidos para damas. Mas, em 1920, decidiu ir em busca de algo mais vantajoso financeiramente, e arranjou emprego na Companhia Docas de Santos, como auxiliar do fiel do armazém nº 1, onde passou a receber 250$000 (duzentos e cinquenta mil réis) mensais. A vida era dura, mas era possível levá-la adiante.
A adolescência de Zezé
Mimada segundo o poder e a posse de seus pais, Zezé Leone, que agora já possuía uma irmãzinha, Leonor, passou a juventude e a adolescência mais ou menos folgada. Sua mãe, no intervalo das aulas e das execuções de órgão, nas missas, ensinava a ela e à irmã um pouco de música. Francisco, por sua vez, incutia-lhe ideias sobre a moda, ministrando-lhe ensinamentos sobre confecção de vestidos e lições de costura.
Aos dezesseis anos, Zezé já executava noturnos de Chopin, rapsódias de Liszt e sonatas de Beethoven. Também dava gosto vê-la produzir “filets” e bordados difíceis, trabalhos lindíssimos. Por algumas vezes era requisitada pelas amigas e as alunas da mãe, para que fizesse trabalhos de agulha.
O preconceito da “sociedade”
Apesar de todos os predicados da família Leone, a sociedade santista os mantinha apenas como subservientes do sistema. Foram várias as lutas surdas e os embates titânicos travados para tentar, ao menos, rachar a muralha imposta pela barreira social.
Um dia, já moça, Zezé Leone, dada a sua formosura e às relações de sua mãe com as filhas pertencentes às “boas famílias”, acabou sendo solicitada a frequentar a “sociedade”. Contudo, tanto ela, como seus pais, se opuseram aos convites. No entanto, os mesmos foram se tornando cada vez mais insistentes, e convincentes, até que, um dia, Zezé frequentou um salão de baile.
Com sua beleza fascinante e modéstia encantadoramente natural, a jovem Leone conquistou rapidamente uma lista imensa de admiradores, assim como uma legião de rivais despeitadas.
– Fulana é filha de sicrano! Não sei como frequenta isto aqui!
– Dizem que seu pai é operário, e que na casa deles há muitas privações…
Essas eram as conversas que a todo o momento, sob qualquer pretexto, faziam em torno da mulher que, para surpresa de todos, acabaria se tornando a “Rainha da Beleza do Brasil”. Muitas vezes, chegavam à casa de Zezé cartas anônimas insultuosas, telefonemas insolentes. Porém, pretendendo mostrar-se superior a tantas misérias, a jovem fazia ouvidos de mercador às baixezas e ingratidões da “sociedade”. Olhava para todos os olhos puros, bondosos, e procurava cativar com sorrisos repassados de candura, a alma egoísta daquela gente. Um dia, em 1921, Zezé, reunindo num esforço mental digno de menção às forças de sua inspiração, escreveu uma lindíssima valsa, a qual batizou com o nome de “Jockey-Club”, oferecendo em seguida à requintada agremiação santista.“O presente – dizia ela na oferta ao presidente do clube – é insignificante e de nada vale. Todavia, faço-o com a maior espontaneidade possível, como sinal de admiração a esse fidalgo grêmio”. Incrivelmente, Zezé jamais recebeu sequer um ofício ou cartão de agradecimento. Pelo menos no período em que ainda não fora coroada como a mais bela do Brasil. “Jockey Club”, escrita por Zezé, após sua notoriedade, passou a ser exaustivamente tocada nas “soirées” e “sauteries” da sociedade santista.
O concurso de beleza
Com o coração amargurado por tantas decepções, Zezé Leone e sua família recolheram-se. Resolveram não mais frequentar a “sociedade”, onde tudo era fictício, desde os olhares até o mais imperceptível sorriso.
Ainda no final de 1921, chegava a notícia da abertura de um concurso, promovido pelo jornal “A Noite” e “Revista da Semana”, ambos da capital brasileira, dando conta do pleito que iria escolher a mulher mais bela do país. Em Santos, a revista “Flamma” acolheu o chamado das grandes publicações cariocas e promoveu um certame entre as senhorinhas santistas. A ideia foi aceita com simpatia e causou polvorosa em dezenas de garotas que procuraram a redação da “Flamma” a fim de se inscreverem. Numa sociedade ainda ditada por costumes rígidos em relação às mulheres, muitas não puderam avançar em suas intenções por conta das proibições paternas. Não foi o caso de Zezé, que teve todo o apoio de Francisco.
Para apimentar ainda mais o pleito, uma joalheria ofereceu como prêmio à vencedora do concurso, a mais bela santista, um modesto, mas lindíssimo “pendentif” (pingente). Outros estabelecimentos comerciais foram na esteira e resolveram, também, oferecer a mais variada sorte de “mimos”.
A escolha santista, ao contrário da nacional, era popular. As candidatas deveriam enviar suas fotos para a revista, que, por sua vez, a publicaria, com um aviso de votação. Com a ajuda de Leonor e a orientação do pai, Zezé costurou seus próprios vestidos para as sessões fotográficas que seriam realizadas nos estúdios da “Photographia Suissa”, na Praça José Bonifácio, não muito longe de sua casa. Zezé residia com os pais e a irmã num modesto sobrado localizado na rua Senador Feijó, 364, quase na esquina da rua Rangel Pestana.
Ao contrário de várias outras concorrentes, a jovem Leone não se inibiu diante do fotógrafo. No dia da primeira das duas sessões que contratou, Zezé estava deslumbrante. As sobrancelhas, devidamente alinhadas. A maquiagem, impecavelmente sóbria, em especial ao redor dos belos olhos, que se tornaram verdes, cor do mar, com o passar dos anos. Todo esse conjunto facial encantava com ternura as lentes que iriam, em breve, lhe eternizar. Ao final das sessões, Zezé teve trabalho para escolher as imagens, mas soube pinçar as melhores, encaminhando-as para os promotores do concurso santista.
Durante algumas semanas, as fotos das candidatas foram publicadas nas páginas da “Flamma”. Seus leitores, então, foram conclamados a fazerem suas escolhas. O pleito santista foi decidido com votos devidamente depositados numa urna posta diante da entrada principal do prédio onde estava instalada a empresa jornalística.
Por semanas, a população santista interessada no pleito manifestou sua vontade. A princípio, a votação sobre Zezé Leone foi cerradíssima. Com o tempo, apareceram outras concorrentes também temíveis, tornando a luta empolgante, entusiástica. Houve momento em que a votação de Zezé chegou a igualar-se e até tornar-se inferior à de outras competidoras. Tais e tantos eram, porém, os seus admiradores que, findo o concurso santista, verificou-se que a jovem filha do casal Leone arrebatara com propriedade o primeiro prêmio, e consequentemente, o mimo mais valioso.
Assim, em meados de setembro de 1922, em plena comemoração aos 100 anos da Independência do Brasil, os santistas haviam proclamado sua Rainha da Beleza. Com 3.256 votos, Zezé Leone foi a eleita, seguida da senhorinha Lili Machado e de Carolina Russo.
A notícia sobre a vitória de Zezé Leone, porém, não causou boa repercussão na “sociedade” santista. Muitas das jovens concorrentes, invejosas, passaram a azucrinar a moça e manifestar seus descontentamentos publicamente. Havia comentários caluniadores por toda a parte, zum-zuns condenáveis…
– O pai dela, aquele pobretão, foi quem lhe comprou os votos!
– Não, foi D. Perpétua. Era ela quem andava pedindo votos para todo mundo!
Foi notório que Zezé não recebera seu “pendentif” sem derramar lágrimas e sofrer muito.
A surpresa da vitória nacional
Alguns meses haviam se passado quando, no dia 3 de abril, estourou como uma bomba a notícia que dava conta da vitória de uma jovem beldade santista no maior concurso de beleza nacional promovido no país. O certame da revista Flamma já estava praticamente apagado da memória do povo local e até mesmo Zezé Leone não curtia mais sua conquista do ano anterior, tornando a viver sua vida simples ao lados dos pais e da irmã, Leonor. A família Leone estava completamente desatenta às novas que chegavam do Rio de Janeiro, e mal se lembrava das fotos de Zezé que para lá haviam sido despachadas pelo pessoal da Flamma. De repente amigos mais próximos passaram a procurá-los. Da mesma forma, o telefone não parou de tocar.
– Dizem por aí que Zezé ganhou o prêmio nacional!
– Não pode ser. Deve ser chacota de uns e outros, dizia Dona Perpétua, incrédula da possibilidade de ser verdade tal boataria.
– É o que dizem: Zezé Leone, primeiro prêmio da beleza brasileira!, insistiam os amigos
No dia seguinte pela manhã, os jornais, em grossas letras confirmavam a veracidade do boato. Zezé mal podia acreditar no que estava acontecendo. Ela, a mulher símbolo da beleza de todo aquele imenso país?
Zezé diria mais tarde, em entrevista aos jornais da capital paulista: – A princípio fiquei emocionada. Cheguei mesmo a supor que estavam caçoando comigo. Depois, fiquei tão alegre que me pareceu ter que sofrer alguma pena. Pensei nos meus pais. Poderiam ter um pouco de descanso, não acham?
A euforia da vitória, entretanto, logo se tornou numa espécie de martírio, dado o intenso assédio sobre a família Leone. Choviam telefonemas, cartas, cartões, telegramas, “corbeilles” de flores, além de repórteres, fotógrafos, amigos e curiosos de todos os tipos. À porta do modesto sobrado da Senador Feijó, uma multidão com dezenas de pessoas tomava as vias, sufocando o trânsito dos bondes e dos poucos veículos automotor que por ali circulavam. Todos queriam ver de perto e saudar a mulher mais linda do Brasil. Zezé, com um sorriso que não lhe saía da boca, foi à janela cumprimentar a legião de “súditos”. Vestida de branco, cabelos compridos soltos e enfeitados com um pequeno pente, a jovem Rainha deixou o povo encantado, de boca aberta.
Com o coração a transbordar de alegria, esquecendo todas as mágoas, todos os sofrimentos passados, Zezé agradecia, perturbada, as felicitações. Umas eram sinceras e francas. Outras, ou a maioria delas, simples bajulação, obra do arrependimento, “mea culpa” dolorosa.
A moça santista, proclamada rainha para todos os efeitos, atendia todas as solicitações, todos os incômodos. Esse esforço, entretanto, acabou por esgotá-la. O seu organismo, já por sua natureza débil, sucumbiu em poucos dias. E como o vírus da gripe rondava sinistramente a cidade de Santos, Zezé Leone caiu de cama. Os seus médicos, Drs. Clóvis de Lacerda e Othon Feliciano, empregando bastante esforço, felizmente evitaram que o mal tomasse proporções mais graves.
Mesmo doente, Zezé continuou assediada pela imprensa local, que ansiava publicar suas impressões a respeito da sensacional conquista. Um dos que tiveram acesso à jovem foi Oswaldo de Andrade, redator de A Tribuna, responsável pela produção da primeira e mais completa entrevista com a recém eleita Rainha da Beleza Nacional. Considerado amigo pessoal de Zezé, uma espécie de “secretário particular” a partir daquele momento, Andrade atendeu uma solicitação do jornal A Noite, um dos promotores do concurso, e encaminhou uma ampla entrevista para o Rio de Janeiro, publicada esta em 16 de abril, dias antes da reportagem exibida nas páginas da Revista da Semana, a outra promotora do pleito. Os cariocas estavam ávidos por saber quem era a tal “santista de beleza indescritível”. Ao contrário de A Noite, que “comprou” a matéria do redator santista, a Revista da Semana enviou dois jornalistas desde a capital federal, para Santos, a fim de produzir algo personificado, com direito a fotos exclusivas. A publicação do Rio de Janeiro confiou a tarefa de conhecer de perto a mulher mais bela do Brasil ao repórter Paulo Cleto, um dos mais festejados jornalistas da imprensa carioca, discípulo de João do Rio, e ao fotógrafo J. Alberto Vieira, referência no fotojornalismo da época. Ambos ficaram encantados com a santista que, mesmo convalescente, os atendeu com toda atenção, o que lhe valeu inúmeros elogios, pelo gesto: “Quis a nossa ventura, que tão lindamente acaba de coroar de louros e de rosas o pleito sensacional da beleza, que a senhorinha Zezé Leone, símbolo também da bondade e da finura de sentimentos, nos recebesse à maneira das rainhas antigas, depositária das sobre-humanas prerrogativas do direito divino, palestrando longamente conosco no seu pequeno aposento modesto e gracioso, onde paira sobre a quase nudez da simplicidade, a mágica sutileza das finas mãos de anéis.”
Paulo Cleto, um verdadeiro poeta das letras jornalísticas, não poupou palavras para louvar a gentileza e doçura da rainha. “Estacáramos à porta, indecisos, esboçando uma saudação. O sorriso de Zezé Leone acolhia-nos, fio branco de pérolas, colar rebrilhante de pedraria, sorriso incomparável e divino. Não há, sem exagero, frase de escritor ou verso de poeta que bem possa exprimir aquela celestial emanação de pureza e de graça. Dir-se-ia que as estrelas, antes que a mais bela nascesse, andaram em coleta pelo céu, umas pedindo às outras, para que alguém pudesse ter um sorriso assim sobre a terra.”
A reportagem da Revista da Semana, publicada na edição de 21 de abril de 1923, foi um estrondoso sucesso e só causou mais ansiedade nos cariocas, que clamavam pela visita da soberana da beleza na capital do país. Zezé, por sua vez, estava deslumbrada e mal podia esperar pela melhora para poder visitar o Rio de Janeiro e lá ser ovacionada pelos cariocas.
Tentativa de impugnação e nova vitória
Mas a jovem santista, antes de ser aceita em terras cariocas, teve que encarar uma situação controversa. Tal qual acontecera em Santos na decisão do pleito doméstico, algumas das jovens concorrentes do concurso nacional, apoiadas por forças políticas e econômicas de suas localidades, resolveram protestar e pedir o anulamento da decisão do trio de renomados artistas da Escola Nacional de Belas Artes. Até jornais foram utilizados para dar coro aos protestos das derrotadas. As promotoras do concurso, a Revista da Semana e A Noite, logo rebateram a tentativa de impugnação, bradando revoltosamente em seus editoriais. “O sensacional torneio de A NOITE e da REVISTA DA SEMANA, durante mais de ano disputado em todo o Brasil, com a máxima publicidade, é hoje uma vitória definitiva, absolutamente incontestável, que engrinalda de louros a encantadora fronte da senhorinha Zezé Leone.
Minoria houve, é bem verdade, que discordou dos juízes, batendo-se em público, com lealdade e lhaneza, pela glória de outros tipos de formosura. Os organizadores do certame receberam com o merecido acatamento esse legítimo exercício do direito de crítica. Não escapou sem disputa cerrada o próprio julgamento de Fáis, procedido entre deusas olímpicas, que deveriam ter possuído a serenidade dos predestinados. A graça leve, quase infantil da Mais Bella, trazendo à lembrança as frágeis marquesinhas de Watteau, estaria por certo longe de agradar aqueles que apreciam as mulheres à Rubens, modeladas com traços fortes, de encontros rijos e linhas quase varonis. Em beleza, como em todos os demais assuntos, não há entre os homens critério absoluto, que possa exigir unanimidade de aplausos.
Não podemos admitir, entretanto, que se processe agora, como pretendem anúncios de alguns jornais, a novo julgamento do nosso grandioso pleito, que tanto trabalho nos custou e cuja apuração só conseguimos realizar, auxiliados pelos nossos prestimosos confrades do interior, em número de quase quatrocentos jornais brasileiros. A espetaculosa notícia divulgada nas colunas renumeradas da imprensa, não passa, por certo, de uma blague sem consequências, que cada leitor analisará de acordo com a elevação do seu espírito e consoante a nobreza dos seus sentimentos. O que desde logo parece claro, transparente, cristalino é que não pode aceitar-se como assunto digno de apreço esse julgamento resolvido de um momento para o outro, sem a publicidade e as autorizações indispensáveis, e até sem o concurso de mais numerosa corrente de opinião.”
Pressionados por boa parte da opinião pública, os promotores acataram uma sugestão vinda da Comissão dos Festejos do Centenário da Independência. Zezé Leone seria novamente “julgada” nos dias finais de abril, assim como suas concorrentes finais: Orminda Ovalle, Dorothildes Adams e Hilda Luz de Castro Lima. Os promotores do concurso, a Revista da Semana e A Noite, resolveram ouvir a opinião das mulheres mais representativas da sociedade carioca, que acabaram por ratificar a escolha feita pelo trio de renomados artistas da Escola Nacional de Belas Artes. Um alívio para os mentores do certame, que assim anunciaram o fato: “Correu quase todos os jornais, há quase duas semanas, o anúncio publicado pela Comissão de Festejos da Exposição da Independência propondo submeter à valiosa opinião das senhoras cariocas, quinta-feira transacta, o veredicto lavrado pelos artistas no julgamento do Concurso Nacional de Beleza. A estranha iniciativa, como deve estar na memória dos leitores, mereceu-nos reparos imediatos, bastante carregado nas tintas. Todas as previsões, partindo do velho chavão da vaidade feminina, classificavam a impugnada eleição como auto de fé da Rainha da Beleza. Ninguém julgava que uma senhora, por mais idosa, por mais educada, por mais despretensiosa que fosse, pudesse dar seu voto àquelas que já prelibara as delícias do triunfo e em cuja fronte se ostentava o mais cobiçado dos diademas da mulher.
A psicologia feminina é, contudo, cheia de extraordinárias surpresas, desorientando a cada instante os que se jactam de a conhecer e interpretar. O que se passou no grande salão dourado e branco do Palácio das Festas, apesar de anteriormente criticado por nós, obriga-nos à ligeira incoerência desta notícia desvanecida e jubilosa.
Que raro acontecimento poderia transportar-nos a esta coluna, com a clangorosa trombeta da vitória ajustada à boca?
É que a senhorinha Zezé Leone, comparecendo em efígie perante o tremendo areópago, logrou triunfar novamente das suas formosas competidoras, que foram, tal como na derradeira seleção do certame, as senhorinhas Hilda Luz Castro Lima, Dorothildes Adam e Orminda Valle.
A REVISTA DA SEMANA sente-se duplamente venturosa com os resultados do combatido julgamento: primeiro por ver que a respeitável decisão dos artistas conseguiu satisfazer a todos, da melhor forma possível; segundo, por constatar na elevada resolução das senhoras cariocas de quanta propriedade se revestem os seus transbordantes e sempre repetidos louvores à nobreza de sentimentos das nossas patrícias”.
A fama
Zezé, duplamente vitoriosa, agora finalmente poderia usufruir de sua fama e prêmios. Uma das mais respeitadas lojas de roupas masculinas do Rio de Janeiro, já vinha publicando desde no dia 14 de abril, anúncios de expectativas acerca da chegada da Rainha da Formosura em terras cariocas. A ideia era vender ternos aos moços interessados em cortejar a mais bela entre as brasileiras: “Os preparativos dos nossos elegantes. A vitória da senhorita Zezé Leone no grande concurso de beleza realizado por esta folha, no qual brilhantemente tirou o primeiro lugar, tem causado uma viva sensação nos meios elegantes desta capital. Sabemos que a nossa mocidade elegante, desde o primeiro dia em que se reconheceu o resultado do concurso, não mais cessou de se preocupar com o caso, verdadeiramente importante. E, assim, é que todos se aprestam para o grande dia do aparecimento da deslumbrante formosura nesta capital, o que se vai verificar dentro de poucos dias. Será realmente um extraordinário sucesso, principalmente porque todos os nossos gentis almofadinhas se empenham em se mostrarem mais belos e mais elegantes à rainha da formosura brasileira. Havia, porém, uma imensa dificuldade em conseguir esse intento.
O de confeccionar lindos ternos, com belos padrões e talhes irrepreensíveis?
A grande dúvida não demorou em ser resolvida e com felicidade para os elegantes. Encontraram a salvação na conhecida e popular alfaiataria – A NACIONAL – à rua Uruguaiana, número centro e trinta e seis. Ali puderam dar as suas encomendas que são numerosas. Os ternos, como ninguém fazem, são lindos e sairão baratíssimos. Não percam tempo, portanto, os elegantes. Corram – A NACIONAL – e façam suas roupas. Tudo ali é bom e por preços baratíssimos.
Zezé ganha prêmios e homenagens
Zezé iria ao Rio de Janeiro, mas acabou não indo. Tinha receio de ser ultrajada assim como vinha sendo em Santos. Desta forma, abriu mão de prêmios como uma hospedagem por dois meses, completa, no mais luxuoso hotel do Rio de Janeiro, o “Magnífico”. O dono do hotel, então, para manter sua palavra, converteu o crédito da hospedagem em duas apólices federais, no valor de um conto de réis cada uma, no que mandaram entregar à Rainha da Formosura. Zezé também recebeu em casa joias, roupas, maquiagem e mais de 50 contos de réis em dinheiro.
A mais bela também foi homenageada por vários artistas da música, com composições em sua reverência, como o fox-trot “Vênus”, de José Francisco de Freitas, o Freitinhas. Cantada com entusiasmo, a melodia era ouvida por toda a cidade carioca durante a estada da santista por lá:
Zezé Leone
Tua beleza
Não tem carmim
Todo mundo diz assim:
– É natureza…
Outra música produzida em sua homenagem foi “Rosa dos Trópicos”, uma valsa composta pelo maestro Epaminondas Ribeiro, com letra do renomado poeta Hermes Fontes. Uma curiosa homenagem foi feita pelo escultor francês Charles Hermann, que produziu uma imagem de Zezé em tamanho natural feita a partir de madeira carnaúba, ficando a mesma exposta na Casa Colombo, para deleite dos admiradores da arte e da beleza. Zezé foi também homenageada por membros do exército, das escolas cariocas e até mesmo de heróis da aviação, que fizeram um reide aéreo em sua homenagem.
Zezé, estrela de cinema
O maior prêmio para a nova Rainha da Beleza não fora a jóia, o dinheiro ou a coroa, mas a possibilidade da fama. Durante sua permanência na Capital Federal, Zezé Leone foi procurada por representantes de uma das maiores produtoras de cine-documentários em 35 mm do país: a Botelho Films. Os diretores da empresa ofereceram à bela santista a produção de um filme sobre sua história pessoal e a épica vitória no concurso nacional de beleza. Assim que aceitou os termos da proposta, Zezé passou a posar para as lentes da Botelho já durante um ensaio fotográfico realizado nos belos jardins do Magnífico Hotel. A jovem Leone se tornava, assim, a protagonista de uma superprodução de 72 minutos, cuja película viajaria em breve por todo o país. O filme, batizado como “Sua Majestade, a Mais Bela”, foi divulgado já nos dias iniciais de maio como uma das maiores e mais sensacionais produções do cinema nacional, e iria gerar imensa repercussão no Brasil. Os diretores da Botelho Films, em especial Alberto Botelho, no entanto, fizeram questão de celebrar um contrato de exclusividade, porque viam um excelente negócio nesta produção e não queriam dividir com nenhum concorrente. Zezé gravou cenas para o filme no Rio ao lado da irmã, Leonor, e do pai, Francisco. Na mesma película, imagens dos jurados do concurso, Batista Costa, Raul Pederneiras, Correa Lima e das outras finalistas do certame, Dorotildes Adams, Hilda Lima e Orminda Vale. Também fazem parte do filme os aviadores Aroldo Borges Leitão e Adyr Guimarães, que lhe renderam homenagens durante o reide aéreo entre o Rio de Janeiro e a cidade paranaense de Curitiba.
Em meados de maio, várias revistas e jornais anunciavam a chegada do filme “Sua Majestade, a Mais Bela” nas principais salas de cinema do Rio de Janeiro e São Paulo. O filme foi destaque especial da revista “Scena Muda”, a mais conceituada publicação sobre cinema da América Latina, o que só ratificou a expectativa da Botelho Films. Os brasileiros estavam ansiosos por conhecer a mulher símbolo da beleza do Brasil em imagens vivas, embora sem som (já que o cinema era mudo na época). O filme tinha estreia prevista para os primeiros dias de junho, mas uma grande confusão ainda iria acontecer antes disso.
Furor publicitário
Zezé se tornara também uma espécie de Midas para o segmento de propaganda. Muitas empresas a procuraram para colher sua opinião a respeito dos produtos fabricados por elas. A Rainha da Beleza tentou fugir o quanto pode da maioria, que pouca coisa oferecia em troca. Uma das que explorou o momento midiático de Zezé foi o “Biotônico Fontoura”, que aproveitou-se da convalescência da Rainha da Beleza antes de sua ida ao Rio de Janeiro, para faturar em cima. No dia 27 de maio de 1923, o farmacêutico Cândido Fontoura publicava uma nota na imprensa paulista: “A magnífica película “Sua Majestade, a Mais Bella”, da esforçada fábrica Botelho Film, que está sendo exibida em vários cinemas desta capital, foi posada pela senhorita Zezé Leone depois de convalescer da gripe que a havia submetido. A convalescença foi rápida graças ao uso do Biotônico Fontoura, o fortificante consagrado pelas maiores notabilidades médicas, em virtude de sua fórmula, um dos maiores triunfos da indústria farmacêutica brasileira. Manifestando sua gratidão, a rainha da beleza fez a seguinte declaração: “Fazendo uso do Biotônico Fontoura, aconselho-o como ótimo fortificante” – Zezé Leone”. No jornal O Estado de S. Paulo, foi publicada, inclusive, uma foto da Rainha da Beleza, com seu autógrafo e a declaração favorável ao Biotônico.
Outro produto que explorou a imagem de Zezé Leone, por um bom tempo, foi o Pó de Arroz Triam que, em sua publicidade, fazia questão de destacar a predileção da Rainha da Beleza pela maquiagem da empresa, tida como “o pó de arroz da elite”.
Referência de beleza
A fama de Zezé rapidamente se espalhou pelos quatro cantos do Brasil, sendo seu nome transformado em sinônimo de beleza, perdurando tal situação por alguns anos. Não era raro observar nas seções de cartas em diversos veículos de comunicação, referências à santista com esta conotação. “Porque estás tão convencida? Julga-te a rival de Zezé Leone?”, escreveu uma leitora para o Jornal das Moças, do Rio de Janeiro (edição de 28 de agosto de 1924), cutucando uma amiga. Um leitor escreveria no mesmo jornal em dezembro de 1924. “Dulce, estás pensando que és a Zezé Leone de Bangu? Mal sabes que se a beleza dominasse o mundo, tu serias a rainha do Jardim Zoológico. Melindroso. Bangu”. Meses mais tarde, outra carta referia-se à jovem Leone. Desta vez, uma leitora em busca de namorado: “Aos almofadinhas: Uma jovem de cor preta, de olhos castanhos, de cabelos louros e ondulados, deseja encontrar um rapaz de cor branca, cabelos carapinhas e olhos azuis. Resposta urgente para Segunda Zezé Leone, Rio”.
Via de regra, porém, o nome de Zezé Leone era utilizado pelos que queriam criticar as mulheres que se “achavam” mais belas do que realmente eram: “Às senhoritas Ofélia e Carminda. Julguei que fossem mais belas que Zezé Leone. Príncipe da Morte, Olaria”; “A uma que se julga Zezé Leone. Senhorita, quem muito escolhe, pouco acerta. Por ser muito convencida, vai ficar para ser incluída na lista das titias. Tom Mix, Ilha dos Pombos”
Festa em Santos, primeiro romance e escândalo cinematográfico
Em meados de maio de 1923, a cidade de Santos aguardava a volta de Zezé Leone com ansiedade e entusiasmo. A moça já havia cumprido todos os compromissos na capital federal e marcara sua viagem de volta. Uma grande recepção havia sido planejada para exaltar sua conquista, organizada por uma comissão de jovens rapazes da sociedade santista, como Antonio Feliciano, Tennyson Ribeiro, J.Souza Dantas, Jayro Franco e Francisco Silva. O Cassino Miramar, elegante e aristocrático centro de diversões da cidade, localizado na aprazível avenida Conselheiro Nébias, seria o palco do baile em louvor à Rainha da Formosura. Entre os encarregados do evento, estava um jovem e promissor advogado da cidade, Lincoln Feliciano da Silva, que havia manifestado especial interesse pela jovem Leone, desde à época em que Zezé frequentava os bailes promovidos nos clubes mais elegantes de Santos. Lincoln cortejou a moça e, assim que ela desembarcou, não desgrudou dela tão facilmente. Foi Lincoln quem a convenceu a fazer um ensaio no estúdio de fotografia “Selecta”, conduzido por Silva Patoilo, sendo essas imagens remetidas para o Rio de Janeiro e imediatamente publicadas na Revista da Semana.
A esta altura, o filme “Sua Majestade, a Mais Bela”, da Botelho Films, já estava quase pronto para estrear na capital federal e também em São Paulo, e prometia estrondoso sucesso. Porém, um grande escândalo balançou as estruturas do cinema nacional, justamente por conta da festa promovida por Lincoln e seus companheiros. Eles haviam permitido a entrada de uma outra empresa cinematográfica no evento, a paulista Independência Film, que ali tomou várias imagens de Zezé e seus amigos. A empresa de São Paulo era conhecida no circuito nacional por conta de suas coberturas das atualidades sociais, literárias e esportivas, exibidas quinzenalmente nas principais salas paulistanas. A filmagem da festa de Zezé em Santos foi editada para o cinejornal “Sol e Sombra”. Antes mesmo de ser exibido, o material da Independência já era conhecido pelos diretores da Botelho Films, que imediatamente publicaram na imprensa avisos sobre a “ilegalidade” das ações da rival. A Botelho Films ratificou que havia um contrato de exclusividade assinado entre a eles e Zezé Leone, no qual a Rainha da Beleza só poderia posar para filmes cinematográficos da empresa carioca.
No entanto, a Independência justificou que suas tomadas tinham caráter jornalístico e não artístico, como era o intuito de “Sua Majestade, a Mais Bela”, e exibiu o cinejornal no dia 23 de maio, no Rio (através do Cine Odeon, pertencente à Companhia Cinematográfica Brasileira) e em São Paulo, apesar dos protestos e ameaças judiciais. Zezé Leone, estimulada pela Botelho Films, contratou advogado e moveu processo contra a Independência, para que fossem confiscados o original de “Sol e Sombra” e as cópias disponibilizadas nas salas de cinema. No Rio de Janeiro, o juiz da 2ª Vara Federal, Otávio Kely, acionou a polícia e mandou confiscar a película que era exibida no Cine Odeon sob o título “A Rainha da Beleza”, fato que foi comemorado pela Botelho Films, que chegou a publicar comunicados pagos em vários jornais. “Conforme denunciamos ontem, furando assim um pretendido furo de um colega, aparecendo à tarde, às escondidas, sem anúncio meio encabulado, os clandestinos minutosinhos de filme que certo operador furtivo conseguira apanhar em Santos, e nos quais a senhorita Zezé Leone – vencedora do concurso de beleza – surpresa e quase sempre pelas costas, foi apanhada em escura objetiva oculta. Os desprevenidos que passaram nas primeiras horas, iludidos pelos cartazes, caíram. Mas a polícia logo tomou as providências que o caso requeria e, A PEDIDO DA SENHORITA ZEZÉ LEONE, apreendeu ontem o jornalsinho em questão, que não mais foi exibido.
Paz à sua alma! Amem. Aguarde, pois, o público ansiosamente, o lindo filme em 5 PARTES, que ZEZÉ LEONE posou especialmente para a BOTELHO FILM e cujas admiráveis fotografias coloridas, verdadeiras obras d´arte, se acham expostas na sala de espera do Parisiense”
A estreia de “Sua Majestade, a Mais Bela”, no Cine Parisiense, que detinha a exclusividade de exibição no Rio de Janeiro, foi cercada de muita expectativa. Por conta dos embates judiciais, o início das exibições foi protelado para o dia 9 de junho.
Artigos provocantes
Naqueles meses iniciais de 1923, não se falava de outra coisa, em todos os rincões do país, que não de Zezé Leone. O assunto mereceu atenção especial do polêmico jornalista e romancista Benjamin Costallat, uma das maiores autoridades da crítica artística nacional. Ele escreveu no início de junho um artigo que acabou reproduzido em centenas de jornais por todos os cantos do Brasil, e considerou Zezé Leone uma espécie de “salvadora da pátria” dos brasileiros, em relação à imagem do país no exterior. Por outro lado, provocou a Rainha da Formosura com críticas sutis e até chegou a dizer que “temia” ser processado pela santista.
“Não posso, positivamente, deixar de escrever sobre Zezé Leone. A mulher mais bela do Brasil é o assunto do dia, é mesmo e monotonamente o assunto de todos os santos dias que correm. Zezé Leone é uma espécie de Saccadura* nacional. Só se fala, só se comenta, só se discute e só se escreve sobre Zezé Leone, como só se falou, só se comentou e só se escreveu, durante meses, sobre o fato de o Sr. Saccadura ter se lembrado de vir de hidroplano, de além mar para estes mares de cá. Como há falta, senhores, de um assunto no Brasil!
Um aviador e uma mulher bonita enchem durante um ano inteiro a imprensa do país! Não quero, pois, escapar à regra. Confesso que só o fato de citar o nome da senhorita Zezé Leone me enche de receios. Esse nome lindo, de uma linda criatura, vale hoje dezenas de contos para qualquer produtor de pasta de dentes e pó de arroz. Apesar de não ser produtor nem de uma coisa, nem de outra, receio que meu artigo tenha o mesmo destino da fita que um cavalheiro tirou sem o consentimento, e principalmente sem o respectivo recibo, da senhorita Zezé Leone, em Santos, quando ‘Sua Majestade, a Mais Bela’ passava exibindo a sua formosura à turba ajoelhada.
Não vá a senhorita Zezé Leone também me processar, sob a alegação de que, não sendo eu vendedor de pasta de dente, nem fabricante de pó de arroz, nem cinegrafista, sou, entretanto, escritor e que, escrevendo sobre ‘Sua Majestade, a Mais Bela’, estou fazendo à sua custa, reclame dos meus livros e que, portanto, para uso comerciais, estou me servindo do nome glorioso (e também rendoso) da Rainha da Beleza.
A propósito de Rainha da Beleza. Nunca vi uma rainha tão discutida e tão negada com esta. As outras mulheres, então, nesse assunto, são de um bolchevismo exaltado. Negam tudo à linda santista. Revoltam-se com o seu nariz, o seu tamanho, com a expressão morta de seus olhos, com o seu penteado, com as suas toilletes, com tudo, enfim, de tal forma, que se nos dermos trabalho de reunir, um a um, todos os defeitos de Zezé Leone, apontadas pelas outras mulheres – a mulher mais bela do Brasil passa a ser a mulher mais feia!
Não é, pois, só entre os bolinas de cinema que há falta de solidariedade. As mulheres são ainda piores.
Mas, brevemente, Zezé Leone não fará só inveja às mulheres, fará inveja aos homens, mesmo aos maiores homens do Brasil. Sim, porque a celebridade de sua beleza atravessará os mares e chegará a outras terras. E o Brasil, que na Europa é uma pobre coisa totalmente ignorante, será finalmente conhecido, não pelos seus homens notáveis, que, coitados, continuarão aqui a viver anônimos, como se fossem filhos da Lua, e sim pela beleza de Zezé Leone, beleza que o cinema espalhará pelo mundo inteiro.
Objeto da inveja até dos barbados, vítima da maledicência feminina, supliciada por tudo que é fotógrafo e repórter, Zezé Leone é uma linda e simpática criatura digna de toda a lástima. Não seria melhor que seu nome gentil não saísse de Santos, onde ela era uma menina como as outras, pelo menos tão feliz quanto as outras?
Benjamin Costallat”
(*o autor se refere a Saccadura Cabral, aviador português, cuja façanha havia parado o Brasil em junho de 1922, depois de terem realizado a primeira travessia aérea do Oceano Atlântico, de Portugal Lisboa até o Rio de Janeiro)
Zezé cansada de tanto foco
Não foi necessário muito tempo para que Zezé Leone ficasse esgotada em ser o centro das atenções do país. Desde a sua vitória no concurso nacional de “A Mais Bela Mulher do Brasil”, a jovem santista praticamente não teve mais sossego. Além dos milhares de olhos voltados para si, jornalistas de todos os cantos suplicavam por uma entrevista e a enchiam de perguntas constrangedoras. Porém, o que mais a incomodava eram os ataques promovidos pelas rivais femininas de Santos, que insistiam em dizer que Zezé era uma moça “sem requinte”, e as cariocas, que não se conformavam de ver uma mulher que não fosse do Rio de Janeiro coroada como a Mais Bela do Brasil. Alguns articulistas da imprensa nacional, testemunhando tamanha “dor de cotovelo”, correram em seu socorro. “Que culpa lhe assiste de o júri ter lhe proclamado a Rainha da Beleza? Ao concurso concorreu, como todas as patrícias, enviando o seu retrato, e nada mais. Nem ao menos, pode se dizer que, filha de família abastada, influenciasse no veredito do júri. Modesta e pobre, para a sua vitória no concurso de beleza, tão somente a perfeição dos seus traços influiu”
Mesmo tendo a defesa de alguns setores da imprensa nacional, Zezé estava realmente cansada dos holofotes. Mesmo em Santos, acabava atendendo a convites oficiais da Prefeitura, presidindo almoços receptivos a grupos importantes que vinham de fora da cidade, como os quartanistas de Direito do Rio de Janeiro. Estressada também por conta das brigas judiciais em torno dos direitos de imagem do filme “Sua Majestade, a Mais Bela” e da produção “pirata” exibida pela Independência Films, Zezé decidiu que era hora de diminuir o ritmo dos compromissos. No início de setembro ainda viajaria à sua terra natal, Campinas, onde foi recepcionada com glamour e sorrisos. Sua passagem pela cidade interiorana paulista foi registrada nas páginas de várias revistas do país. A Revista da Semana escreveu: “Eleita a Rainha da Beleza Brasileira, Zezé Leone, num requinte de graça, escolheu a cidade de Campinas, sua terra natal, para ter as primícias encantadoras da sua visita majestática. Retribuindo este gesto da Rainha, a Princesa do Oeste recebeu Zezé Leone entre festas suntuosas, prestando-lhe todas as devidas homenagens, entre as quais um grande baile promovido pelo C.S. de Cultura Artística, realizado no dia 8 do corrente.”
Este seria um dos últimos compromissos da Rainha da Beleza em 1923, o ano que transformara sua vida. Mal sabia ela que o ano seguinte seria igualmente transformador, desta vez na questão do amor.
O casamento de Zezé Leone
O jovem e promissor advogado Lincoln Feliciano da Silva, natural da pequena cidade de Paraibuna, no Vale do Paraíba, vivia em Santos desde 1915, estabelecendo-se num escritório de advocacia próprio localizado na rua XV de Novembro, 166, em sociedade com o irmão, Antonio Ezequiel Feliciano da Silva, um hábil orador do tribunal do júri. Os irmãos Feliciano eram rotulados como “bons partidos” pelas moças da sociedade santista, mas ambos não sentiam-se à vontade para cortejar as filhas da terra, um vez que não se consideravam plenos da confiança das tradicionais famílias locais. Lincoln conhecia Zezé Leone apenas de vista, dos raros bailes no Clube Éden e Jockey Clube que chegou a frequentar. Apesar de tê-la visto uma ou duas vezes, encantou-se com sua deslumbrante beleza e soube, através de amigos, que a linda moça de olhos verdes também não era santista de nascimento, tal como ele. Este detalhe o deixou animado e encorajado a lhe cortejar. Porem, Lincoln resolveu esperar uma melhor oportunidade para a aproximação.
Lincoln ficou inicialmente intrigado quando da participação de seu flerte no certame promovido pela revista Flamma. Mas a vitória de Zezé, que lhe conferiu o título de “A mais Bela de Santos”, foi comemorada intimamente pelo jovem advogado. Lincoln lutava contra seu desejo de abordar aquela moça que dividia opiniões na cidade. Os gracejos que boa parte dos rapazes e moças do seu círculo de convívio faziam a respeito de Zezé, definitivamente o intimidava. Assim, o tempo passava sem que Lincoln desse o passo que desejava. Veio, então, a bombástica notícia da conquista nacional e da superexposição que a jovem filha dos Leone passou a ter na mídia brasileira. Quando soube que alguns rapazes planejavam promover uma festa em homenagem à rainha, rapidamente se colocou à disposição para ajudar. Era a deixa que precisava para, enfim, aproximar-se da linda jovem e iniciar uma relação mais afetuosa.
Zezé Leone, por sua vez, era uma sonhadora inveterada. Sua maior inspiração era a história de amor dos seus pais, que romperam as barreiras do preconceito em busca da felicidade. Da mesma forma que Perpétua, Zezé desejava encontrar o amor verdadeiro. Por outro lado, de forma mais consciente, almejava ajudar mais os seus pais. A escolha de um bom marido era um caminho a considerar. Quando lhe surgiu pela frente o garboso Lincoln Feliciano da Silva, Zezé enxergou uma chance de ser feliz em todos os sentidos. E aceitou o cortejo do jovem advogado.
Os compromissos da Rainha da Beleza chegaram a atrapalhar um pouco o romance, principalmente quando do escândalo judicial acerca do filme “Sua Majestade, a Mais Bela”. Lincoln chegou a oferecer ajuda para tratar do caso, mas Zezé não permitiu que se misturasse as coisas. No princípio de 1924, quando a jovem Leone resolveu abaixar o ritmo de seus compromissos, o relacionamento, enfim, deu um salto. Lincoln foi introduzido à casa dos Leone e apresentou-se formalmente à família, com direito ao pedido de benção a Francisco e Perpétua. Homem de gestos finos, o advogado conquistou rapidamente o coração da matrona dos Leone. Na esteira de Zezé, Leonor, sua irmã, se engraçou com um amigo de Feliciano, o jovem médico Sylvio Lobo Viana, filho do ilustre cirurgião João Lobo Viana, que atendia na capital paulista. Com suas duas filhas encaminhadas em relacionamentos com homens promissores, Francisco Leone começou a sentir que as coisas iriam melhorar. Afinal de contas, agora Zezé tinha mais um homem ao seu lado, para defender-lhe das injúrias proferidas pelas invejosas da cidade.
O namoro duraria pouco. Zezé e Lincoln marcariam o casamento para o mês de março de 1924. Mas, problemas de saúde com uma das tias de Zezé fez com que o evento fosse adiado para 8 de maio, uma quinta-feira. O casamento ganhou destaque na imprensa nacional. A Revista da Semana enviou uma equipe especial para acompanhar o enlace e produziu grande reportagem sobre o assunto, transcrito abaixo para melhor entendimento do fato (a ortografia original do texto foi mantida):
No palacete do sr. dr. Ullyses Lobo Vianna, à avenida Anna Costa, perto da praia do José Menino, realizou-se na quinta-feira passada o casamento da senhorinha Zezé Leone, com o jovem, estimadissimo e já ilustre advogado do fôro de Santos, sr. dr. Lincoln Feliciano da Silva. Não podia ter melhor scenario o casamento da Rainha da Belleza. É uma construção de linhas sobrias, simples, mas encantadora dentro do seu jardim caprichoso e já guarnecida pela hera que tão poeticamente lhe borda as arcadas e lhe vae conquistando as columnas da larga varanda lateral.
Estava uma tarde limpida, macia, com um sol muito alegre no céo, por onde corriam farrapos de nuvens claras. A chegada do inverno acusva-se em belleza e doçura. A aragem vinda do mar largo passava como uma caricia muito leve. Havia um jubilo no ar. Respirava-se uma especie de consolação. Tarde suave, sorridente, pura. Uma tarde… Zezé Leone.
Às duas e meia, exactamente, chegou ao vestíbulo da deliciosa vivenda a noiva, linda de certo como nunca no seu vestido de trama de seda e prata, o véo amplo, leve, ondulante, como feito de espuma. Na mão o grande ramo de rosas e cravos brancos que substituia o sceptro de Rainha da Belleza por um symbolo casto de amor. Seguem-na algumas dezenas de moças e senhoras, com o enternecimento de amigas que assistem á consagração da ventura, concedida pelo Destino á sua irmã de coração. A senhora Leone, pequenina, de rosto magro e em linhas fortes, os olhos muito claros, limpava furtivamente as lagrimas da sua commoção. A noiva acceitou o braço do nosso companheiro João Luso, e noivos e sequito passaram para a saleta, onde se decia realizar o acto civil. O dr. Estacio Correia, juiz de paz, disse que, sabendo ter João Luso a intenção de proferir, em momento que lhe designassem, algumas palavras o convidava a fazer já essa allocução, abrindo assim as formalidades da ceremonia. E o nosso confrade leu a curta saudação que se segue:
“Minhas senhoras e meus senhores
Nem por me verder de tirar de papel em punho, me deveis atribuir a intenção, sempre mais ou menos delictuosa, de me alongar. Tomei a deliberação de escrever este brinde, unicamente porque não sei falar. Verdade seja que, na minha opinião, também não sei escrever. Emfim, sempre escrevo alguma coisa – ao passo que falar, no sentido oratório do termo, não falo absolutamente nada.
E é em nome da REVISTA DA SEMANA e do nosso excellente e queridissimo director, sr. Aureliano Machado, que vou saudar a noiva e exprimir-lhe os votos mais vehementes pela sua felicidade. Zezé Leone dalgum modo faz parte da nossa família e da nossa casa. É quasi uma filha adoptiva da REVISTA. E temo-la na conta duma preciosissima collaboradora.
Intensa e ardentemente votada ás coisas de pensamento e de arte, a REVISTA DA SEMANA institui o concurso da Belleza Brasileira, não para alargar a popularidade, mas para offerecer ao paiz uma lição que não podia deixar de ser proveitosa. Para dar ao certame toda a amplitude possível e terna-lo de interesse diário, pedimos o auxilio da NOITE, que nol-o prestou generoso e efficaz. E o Concurso de Belleza teve a notoriedade e attingiu a feição nacional que ninguem ignora – para dar um resultado perfeito. Com elle, repito, a REVISTA DA SEMANA deu ao paiz não só uma lição de esthetica, mas também uma lição de virtude. Direis talvez que as photographias que nos foram enviadas não levavam nas costas o attestado moral das concorrentes. Não deu certo. Havia, porém, um documento mais eloquente e digno de fé: a propria physionomia das retratadas. É erro grave, ou triste cegueira, não vêr ou não querer ver, na expressão do Bello, o reflexo essencial do Bem. Da perfeita formosura physica jamais a graça espiritual se arreda. O que, ás vezes, parece verdade e primor, pode, realmente, não passar de artificio e engano; mas num momento de atenção, se estabelece a perfeita relação do rosto e da alma. A figura humana constitui sempre uma obra impeccavel de coherencia. Deus não se engana – nem nos engana. E, creando Zezé Leone, o que Elle quiz foi mandar ao mundo um dos seus sorrisos – para ventura nossa bem frequentes entre as mulheres – de doçura e de perdão. Esta noiva graciosissima reune, todos vós o sabeis, os encantos mais peregrinos. Como o seu perfil, esmerado e fino, é o corte privilegiado de sua alma; como os seus olhos sorriem, vibra de bondade e de affecto a intimidade do seu coração; e toda ella é uma flor do céo, destinada a embellezar e perfumar o pedaço da terra e a parcella de humanidade que a vissem medrar, expandi-se, trumphar serenamente ao sol!
Eis o que a REVISTA DA SEMANA entendeu, sentiu, proclamando a victoria desta belleza que tes dos maiores artistas do Brasil elegeram soberana. E, em nome dessa comprehensão e dessa sinceridade, é que eu vim trazer a Zezé Leone e ao homem que ella, soberana, por sua vez elegeu a nossa admiração, o nosso familiar carinho e desejo fervoroso de uma ventura que Deus não deixará de lhes conceder”
Em seguida, tomou o dr. Estacio Correia a palavra e começou por referir á rapida allocução de João Luso, nos termos mais generosos. Fallou depois do casamento e das venturas do lar, com elevação de conceitos e uma elegancia de expressão egualmente admiráveis; e a singeleza e naturalidade de que as suas palavras se revestiam mais lhe realçavam a eloquencia modelar.
Procedeu-se depois ás formalidades legaes. Houve a primeira serie de abraços de parabens. E passou-se para a outra sala, armada em oratorio, com finissimo gosto. Ao redor do tapete, alinhavam-se as cestas de flores enviadas á noiva; era um canteiro seguido de opulencia e graça; ali se ostentavam as mais bellas flôres dos jardins de Santos e São Paulo, arranjadas com a arte dos mais eximios floristas. Celebrou o acto religioso o vigario da paroquia de Villa Mathias, que depois tambem proferiu uma bella e commovente oração.
A mesa do lunch era um encanto de louças finas, crystaes scintillantes, pratos de guloseimas irresistiveis e flôres em profusão. Houve ainda um serviço volante de sorvetes, doces, refrescos, champagne. Trocaram-se brindes effusivos. O photographo sr Hubert interveiu, para tirar as chapas destinadas á REVISTA DA SEMANA. A tarde passou rapida, como todas as verdadeiras festas, todas as horas verdadeiramente felizes. Ás 5 horas tomavam os noivos o automovel que os havia de levar a S.Paulo; adeuses, as moças atiravam beijos á sua ditosa amiguinha; o carro largou soberba, triumphalmente. E assim terminou essa festa duma formosura e dum regojiso realmente inolvidaveis.
Zezé Leone, depois da fama
Se por um lado, o concurso “A Mais Bela do Brasil” livrou Zezé Leone e sua família da dura realidade financeira que se encontravam, por outro trouxe uma série de dissabores, entre os insultos constantemente lançados pelas mulheres invejosas de todo o país, o interminável processo por conta do filme “Sua Majestade, a Mais Bela” e o contínuo assédio da imprensa, que não permitia um só momento de paz para a jovem Rainha da Beleza nacional. Zezé também ficava bastante incomodada com o fato de as pessoas tratarem seus familiares de forma impessoal. Leonor, por exemplo, era apresentada nos bailes da cidade sempre como a “irmã da Zezé Leone”, sendo assim chamada por todos. Desgastada diante da enxurrada de aborrecimentos, a agora senhora Leone Feliciano resolveu sair de cena e assumir o papel de dona de casa, atendendo apenas, e esporadicamente, alguns poucos pedidos selecionados de participação na sociedade e entrevistas. Houve quem dissesse que seu casamento com Lincoln Feliciano servira como uma espécie de fuga, ao mesmo tempo que a garantia de um futuro melhor para si e para os seus pais. O certo é que sua fama ajudou inclusive Leonor, que também acabou por se casar (em 20 de dezembro de 1924), com um jovem membro da elite, o médico Sylvio Lobo Vianna, de influente família santista.
Demorou para que Zezé conseguisse ver o foco de sua conquista desviado da atenção de todos os brasileiros. Isso porque a Revista da Semana e sua parceira, o jornal A Noite, não conseguiram repetir o concurso em 1924, tampouco nos quatro anos seguintes, o que significou que Zezé se manteve diante da mídia como a autêntica representante da beleza nacional. O reinado da santista só terminou no ano de 1929, quando o jornal A Noite finalmente conseguiu organizar um novo concurso, desta vez instituindo o título de “Miss Brasil” pela primeira vez, em um pleito vencido pela carioca Olga Bergamini de Sá, a representante do estado do Rio de Janeiro. O termo “Miss” já vinha sendo utilizado no exterior, principalmente nos concursos que buscavam encontrar as mulheres mais belas de alguns países europeus e os Estados Unidos, onde começou a ocorrer, ainda na década de 1920, o concurso Miss Universo, responsável por apontar a mulher mais bela do planeta. Zezé Leone, no ano de sua vitória, não chegou a ser cogitada para a disputa internacional, uma vez que o projeto norte-americano ainda engatinhava. Mas, em 1929, Olga Bergamini se tornou a primeira brasileira a encarar a disputa internacional, mas acabou desclassificada logo de início, o que gerou grande revolta entre os brasileiros. Zezé Leone assistia a tudo isso de longe, sem muito interesse. Havia dois anos perdera a mãe, Dona Perpétua, falecida em 1º de fevereiro de 1927. O casamento também não andava às mil maravilhas. A primeira das Rainhas da Beleza brasileira descobriu que não podia engravidar, o que acabou corroendo ainda mais a relação com Lincoln. Zezé vivia no final da década de 1920, um grande inferno astral.
Separação e vida em São Paulo
A década seguinte, os anos 1930, apontavam um destino nada feliz para a Rainha da Beleza. Seu marido, cada vez mais influente na sociedade santista e paulista, intensificou seu interesse pela política e isso acabou resultando em ausências intermináveis na casa dos Leone Feliciano. Sozinha, Zezé não podia mais contar com a irmã, Leonor, que havia se mudado para São Paulo, onde o marido tinha consultório, e também raramente via o pai, Francisco Leone, que também tomara o rumo da capital bandeirante depois de ter largado o serviço na Companhia Docas de Santos. A família, antes unida, agora estava fragmentada e sofrendo com a ausência de Perpétua.
Antes mesmo de Lincoln ser nomeado prefeito de Santos, entre 31 de agosto e 30 de outubro de 1945, durante o período final do Estado Novo de Getúlio Vargas, Zezé e Feliciano haviam se separado. A eterna Rainha da Beleza acabou tomando o rumo dos seus entes queridos e se escondeu de todos em São Paulo. Na capital paulista, alguns anos depois, casou-se novamente, desta vez com o advogado Marcos Ribeiro dos Santos, que era filho de um secretário do Governo do Estado de São Paulo.
Durante os anos 1940 e 1950, Zezé Leone dedicou sua vida aos afazeres domésticos e à música (aprendeu a tocar violão). Apesar do passado glorioso, a primeira rainha da beleza brasileira não costumava maquiar-se, o que até poderia ser considerado por muitas mulheres como uma ausência de vaidade. Zezé se limitava a passar um batom de cor sóbria e, ainda assim, ficava deslumbrante. Mesmo com o passar dos anos, a primeira rainha não perdia a majestade.
Morte na véspera do aniversário
Da mesma forma que o primeiro casamento, Zezé também se separou do segundo marido, voltando a ficar sozinha e cada vez mais resistente à vida social. Completamente avessa à publicidade, era raro quando atendia a imprensa, que sempre a procurava nas ocasiões dos concursos de misses. Quando aceitava uma entrevista, falava da admiração que tinha por Martha Rocha, a Miss Brasil de 1954, a primeira do modelo de concurso que existe até os dias de hoje. Para Zezé, Martha era a mais linda e impressionante de todas. Mas também citava Teresinha Morango, Iêda Vargas, Adalgisa Colombo e Vera Ribeiro. Zezé confessava que não perdia um concurso, assistindo aos desfiles pela TV.
Levando esta vida simples, Zezé encontrou o fim de sua jornada na manhã de 30 de novembro de 1965, na véspera de completar 63 anos de idade. Estava tomando banho na casa da irmã, Leonor, quando foi acometida por um segundo derrame cerebral. Havia sido vitimada por um primeiro derrame um mês antes, em sua residência, na rua Albuquerque Lins. Depois de convalescer no hospital, recebera alta e estava hospedada na casa de Leonor, na Barra Funda. Nonô tinha saído de casa, a fim de comprar os ingredientes do bolo de aniversário que faria para a irmã famosa. Ao retornar, encontrou Zezé morta, nua, ainda no chuveiro.
A primeira das Misses do Brasil, a representante de Santos no pioneiro dos concursos de beleza, foi sepultada no dia 3, no Cemitério da Ordem Terceira do Carmo, na capital bandeirante. Deixou uma história rica, de lutas, alegrias, tristezas e muita vivacidade, como não poderia deixar de ser a história de uma autêntica Rainha.