Esta foi a afirmativa do repórter da influente revista O Cruzeiro, que pela primeira vez produzia uma reportagem, em fevereiro de 1950, sobre a mais tradicional festa pré-carnavalesca santista, projetando-a nacionalmente.
Se na linha do tempo histórico do Carnaval de Santos, tivéssemos a oportunidade de escolher qual o mais significante dentre todos os eventos, fatos ou momentos já ocorridos na folia santista, certamente a patuscada saldanhista* “Dona Dorotéia, Vamos Furar Aquela Onda?” figuraria em lugar de destaque.
Esta afirmação se argumenta no fato de a festa pré-carnavalesca santista, criada em 1923, ter conquistado espaço privilegiado junto à grande mídia nacional, e por muitos anos. O banho de mar à fantasia realizado na cidade de Santos atraia a atenção de todo o país, assim como os blocos cariocas, a exemplo do famoso Bola Preta (que este ano de 2018 completou 100 anos).
Nesta postagem, regressamos ao Carnaval de 1950, quando a famosa revista O Cruzeiro esteve na cidade santista para registrar, pela primeira vez, o que os cariocas chamariam de “Casamento de Dona Dorotéia”. Naquele ano, o eterno Rei Momo santista, Waldemar Esteves da Cunha (veja outras postagens sobre ele), havia iniciado o seu longo reinado e, para adaptar-se à festa, desfilou como uma suntuosa “rainha”.
Assim, o Blog Memória Santista resgata esta curiosa e pioneira reportagem, publicada na edição 19, de 25 de fevereiro de 1950, com texto do jornalista Arlindo Silva e registro fotográfico de Peter Scheier.
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Essa festa carnavalesca que a população de Santos conhece por “Casamento de Dona Dorotéia” é algo de tão fabuloso e grande que precisa ser mostrada ao resto do país. Realiza-se uma semana antes do tríduo oficial momesco, e é o grito de Carnaval para a bela cidade fundada por Braz Cubas.
A cidade explode numa onda de alegria. A capital paulista fica vazia de gente, porque todo mundo desde a Serra para ir ver o divertidíssimo enlace de Dona Dorotéia, lá embaixo, em Santos.
Quem organiza a tradicional festança são os rapazes do Clube de Regatas Saldanha da Gama. Dona Dorotéia é um campeão de remo do clube. O noivo de Dorotéia é um rapazote espadaúdo, campeão de saltos ornamentais. Só trabalham moços nesse curioso e sensacional desfile de alegria. Por sinal que este ano de 1950, o casamento de “Dona Dorotéia” completou 25 anos de existência. E as “Bodas de Prata” da popular personagem foram celebrados com fausto excepcional.
Os criadores do festival foram uns atletas do C.R. Saldanha, os quais todos os anos, alguns dias antes do Carnaval, percorrias as ruas de Santos fazendo grande alarido, encenando uma história de amor, em que a sogra corria atrás do noivo da filha pela praia, apanhava o moço, atirava-o ao mar, depois pegava a filha e dava-lhe uma sova. O episódio foi ganhando público e no fim das contas tornou-se a abertura triunfal do Carnaval em Santos.
É de pasmar a multidão que se aglomera na Avenida Presidente Wilson (Rua da Praia) e na Avenida Ana Costa: tanta gente como nos melhores desfiles da capital paulista. Hoje, o ritual antigo foi mudado. Ao invés da mãe da noiva correr atrás do noivo, é a própria sogra que se casa, ou seja, a Dona Dorotéia. Dizem os santistas, que com o decorrer dos anos, Dona Dorotéia foi ficando mansinha e acabou roubando o noivo à própria filha.
Hoje, a cidade de Santos inteira aguarda com ansiedade o domingo do casamento, porque é um dia de folia aberta, com os rapazes do “Saldanha da Gama” fazendo humor em plena rua, encarnando figurões da política, imitando Barreto Pinto, fazendo placas formidáveis com os assuntos do dia. Do desfile colossal participam os ranchos que descem dos morros santistas (porque Santos também possui morros em quantidade) e que levam os nomes mais arrevesados, tais como: “Bezerros desmamados”, “Dengosas do Marapé”, Irmãos Sofredores”, “Lilis do 47”, “Brotinhos da Continental”, “Favoritas do Sultão” ou “Inocentes da Vila Henedina”. Durante os desfiles, os foliões homenageiam as autoridades, a imprensa, os espectadores. E Santos vibra desde a manhã até à noite.
Depois que passam todos os clubes, ranchos e escolas de samba, passa, então, o automóvel de Dona Dorotéia, de braço dado com o noivo. É um fordinho de bigode, um desses calhambeques usados pelas “escolas de trânsito”, aberto, revestido de caretas carnavalescas e coberto de serpentinas. É o momento culminante da celebração. Dona Dorotéia (não se esqueçam que é um rapaz atleta do Clube Saldanha da Gama) ao lado do noivo (outro atleta) saúda o povo, de pé no carro, atira beijos aos punhados para todos os lados.
E qual é o epílogo do espetáculo? – Ora, os noivos vão para a Ponta da Praia, defronte ao Saldanha da Gama, tomam um barquinho e vão remando até um trampolim montado sobre uma boia. Sobem ao trampolim, fazem grande encenação para o povo que se aglomera junto à amurada da praia, e atiram-se os dois de braços dados, na água, tomando o “banho nupcial”. Um frêmito de gargalhadas sacode toda a assistência, enquanto os clarins enchem o ar com as marchinhas e sambas.
É o melhor dia do ano, na histórica e bonita cidade de Santos.