Santos, 17 de abril de 1908. Passava das cinco horas da tarde de uma sexta-feira de calor escaldante no pé da Serra de Cubatão. Os poucos moradores do velho e pequeno distrito santista já começavam a se recolher para o descanso quando ouviram um barulho absolutamente estranho à bucólica paisagem local. Curiosas, algumas crianças aproximaram-se das margens do antigo caminho das carruagens, a chamada Estrada do Vergueiro, que absolutamente ninguém mais usava para alcançar o planalto paulista. Afinal de contas, havia o trem para isso, e desde 1867! De repente, uma nuvem de poeira surgira no horizonte, aproximando-se assustadoramente, à medida que o estranho som aumentava. Em fração de minutos, a origem o terrível barulho se revelava, da maneira mais inusitada aos simplórios habitantes cubatenses. E não havia como censurá-los, pois quase nenhum deles conhecera de perto uma daquelas máquinas modernas de transporte, a “carruagem sem cavalos”, que os cavalheiros da grande cidade chamavam de “automóbile”. Era, sem sombra de dúvida, uma daquelas engenhocas que os encantava!
Outro fator que chamou a atenção das pessoas que corriam à margem da estrada de Cubatão, para assistir a passagem do estranho veículo, era a alegria incontida dos homens que montavam aquela “criatura feita de ferro, couro e borracha”. E ninguém, daquele cantinho do pé da Serra do Mar, poderia supor que os quatro aventureiros ali, de passagem, estariam escrevendo seus nomes na história do país, como os primeiros brasileiros a promoverem uma viagem de automóvel no Brasil. Antonio Prado Júnior, Mário Cardim, Bento Canabarro e Clóvis Glicério, autodenominados “bandeirantes sobre rodas”, concluiam, então, uma viagem de quase 37 horas desde a capital paulista até a cidade portuária santista, que os recebeu em grande festa horas mais tarde.
Inveja foi combustível para fato histórico
A histórica viagem terrestre São Paulo-Santos não foi planejada, calculada, arquitetada, muito pelo contrário. Ela aconteceu por mero acaso, ou melhor dizendo, motivada por um dos sete pecados capitais: a inveja. Cerca de um mês antes da partida da histórica excursão, um famoso aventureiro francês, Conde Lesdain, desembarcava no Rio de Janeiro com o objetivo de mostrar ao povo brasileiro as maravilhas que podiam ser feitas pelo automóvel, a incrível máquina que vinha substituindo, sistematicamente, as carruagens por toda a Europa. Lesdain anunciou que empreenderia uma viagem do Rio até São Paulo, atravessando as antigas rotas de tropeiros que ainda existiam no Vale do Paraíba. Muitos duvidaram do êxito da empreitada, enquanto os jornais estampavam a louca aventura do conde europeu, que se lançou à estrada na manhã do dia 10 de março, à bordo de um Brasier (veículo de origem francesa), de 16 CV e 4 cilindros. Passado uma semana, ninguém mais ouvia falar do intrépido estrangeiro.
Trinta e três dias depois da largada, quando todos supunham ter ocorrido alguma espécie de acidente terrível no trajeto, Lesdain surgia em São Paulo, onde foi carregado em triunfo pelos entusiasmados paulistanos, como um autêntico heroi. E não era para menos. Afinal, por conta daquela aventura, o francês se tornara o pioneiro das viagens terrestres no Brasil.
Em meio à festa na urbe bandeirante, um jovem paulistano corroia-se em lamentações. Antonio Prado Junior, filho do então prefeito da capital, era tido na cidade como o maior entusiasta do automóvel, mantendo três máquinas do tipo em sua garagem. Via de regra, ele e seus amigos empreendiam pequenas excursões pelas redondezas, como nos então “distantes” bairros de Santo Amaro ou Penha. Intimamente, Prado Junior desejava ter sido o precurssor das viagens terrestres em seu país.
A viagem para Santos
No dia seguinte de sua chegada à capital paulista, em 12 de abril, Lesdain anunciou na imprensa a intensão de empreender uma nova aventura, desta vez rumo à cidade de Santos, de onde partiria de volta à Europa de navio. Ao tomar conhecimento do plano do “rival”, Prado Junior não se conteve e decidiu juntar-se aos amigos próximos e suplantar as pretenções do “intruso estrangeiro”. Em São Paulo, o pioneirismo teria de ser conquistado por um filho da terra, um autêntico bandeirante, pensou ele.
Assim, em pouquíssimo tempo e sem qualquer plano de viagem, Prado Junior juntou-se aos colegas major Bento Canabarro e Clóvis Glicério, ao irmão Paulo Prado, ao motorista da família, Malé e a um mecânico que trabalhava na Motobloc (a marca do carro do mentor da aventura), a fim de levar à cabo seus planos. O jornal Estado de São Paulo, tomando conhecimento do “reide” que se formava, decidiu introduzir um jornalista na aventura: Mário Cardim.
Horas antes da partida, Prado Júnior até tentou compor uma parceria com o francês, convidando-o à excursão. Porém, o estrangeiro, às voltas com problemas de ordem mecânica em seu Brasier, acabou declinando do convite. Assim, nas primeiras horas da manhã do dia 16 de março de 1908, dois carros, um Motobloc (carro francês) de 30 CV e um Sizaire et Naudin (idem) , de 12 CV, partiram da Barra Funda (rua das Palmeiras) na direção da abandonada Estrada do Vergueiro (o antigo caminho das carruagens para Santos), para cumprir seu glorioso destino.
A excursão iria percorrer os 72 quilômetros da antiga estrada aberta originalmente em 1844, pasando por localidades históricas, como o Riacho Ipiranga, em cujas margens ocorrera o famoso grito da Independência do Brasil. Até o alto da Serra, o caminho se encontrava em estado lamentável, com diversos trechos completamente enlameados, quase intransponíveis. Por duas vezes, os automóveis só avançaram graças à ajuda dos poucos moradores da região, geralmente trabalhadores nas fazendas de extração de madeira do entorno do Rio Grande da Serra. E foram essas mesmas pessoas que acabaram, também, oferecendo pouso para que os aventureiros pudessem dormir, uma vez que a chegada ao topo da montanha atlântica coincidiu com o por-do-sol do dia 16 de abril.
Dinamitando pedras no caminho
Chegada a manhã, uma surpresa. Paulo Prado, irmão do mentor do reide resolveu desistir da empreitada e anunciou que voltaria à capital à bordo do Sizaire et Naudin, levando consigo o motorista Malé e o mecânico da Motobloc. Assim, prosseguiria apenas o carro de Prado Junior, partindo com ele mesmo, além de Canabarro, Glicério e Cardim. No trecho de Serra, abandonado havia quase 40 anos (em função da utilização exclusiva do trem para a locomoção entre São Paulo e Santos), os aventureiros trabalharam duro, tendo que, inclusive, dinamitar várias rochas que haviam se precipitado na velha pista ao longo dos anos. O alento para tanto esforço foi poder testemunhar a paisagem extraordinária da Baixada Santista daqueles pontos, algo que há muito anos ninguém tivera o privilégio. Em Santos, no final da tarde do dia 17, Prado Júnior e seus companheiros brindavam o feito, que acabou sendo o estopim para a mudança de mentalidade das autoridades brasileiras, que começavam a enxergar no transporte rodoviário uma alternativa potencial ao transporte ferroviário.
Curiosidades
Em 1938, Prado Júnior e Mário Cardim foram homenageados com uma placa rememorando o fato histórico, sendo esta afixada na subida do Morro de São Bento.
No centenário da viagem, em 2008, o fato foi lembrado e homenageado com um grande evento, onde quase 100 veículos associados ao Automóvel Clube do Brasil viajaram desde o início da rua Vergueiro, em São Paulo, até a Casa de Frontaria Azulejada, na rua do Comércio, com direito a descida da Serra do Mar pela Estrada Velha de Santos, aberta especialmente para a ocasião. No mesmo dia foi lançado o livro “Pelas Curvas das Estradas de Santos”, da lavra do autor desta coluna.