“O verdadeiro super-herói não é aquele que usa capa, voa, possui visão laser ou qualquer outro poder extraordinário. O verdadeiro super-herói é aquele que se doa pelas pessoas, sendo justo, companheiro e que, muitas vezes, arrisca sua própria vida para salvar a dos outros”
Após o final da Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1945), Santos, a exemplo de outras cidades brasileiras, voltou a despontar para o crescimento, testemunhando a eclosão de novas frentes econômicas, sobretudo na construção civil, no turismo e nas oportunidades que surgiam em razão da formação do polo petroquímico e siderúrgico em Cubatão. Os santistas, aliviados pelo fim do conflito global, além de enxergarem um futuro promissor para si e às gerações futuras, podiam novamente sorrir e aproveitar a vida da melhor maneira.
Destarte, a cidade passou a viver seu cotidiano, dentro de um ciclo de ordem e segurança confortáveis, tendo, no centro de equilíbrio desta malha social, o trabalho da Guarda Civil (o equivalente a Polícia Militar dos dias de hoje), que agia como um protetor da estabilidade alcançada.
Amáveis e respeitosos (e rígidos quando necessário), os guardas civis eram tidos como grandes amigos da população, sobretudo das crianças e das pessoas idosas. Na Santos dos anos 1940 e 1950, eles agiam como verdadeiros anjos da guarda da cidade, dispostos a colocar sua própria vida em risco a fim de proteger as pessoas.
E foi numa situação de risco intenso, ocorrida no início de 1949, que um guarda civil, em especial, alcançou o status não de herói, mas de super-herói, ganhando o coração de todos os santistas. Seu nome: Lupércio Mussi. Seu codinome: Guarda Bigode.
Atentado à vida
Era o dia 6 de janeiro de 1949, uma quinta-feira. Já passava das 9 horas quando o guarda Bigode foi chamado às pressas por alguns munícipes assustados, no momento em que fazia sua ronda diária pelas ruas do Gonzaga. A denúncia era a de que dois milicianos da Polícia Marítima, visivelmente embriagados, promoviam uma verdadeira balbúrdia desde a noite anterior no bar da Casa de Cabines de Banhos “Neptuno”, situada na orla da praia, à avenida Presidente Wilson, 17. Os arruaceiros gritavam, quebravam copos na rua e aliciavam as mulheres que passavam pelo local. Apavorados, alguns moradores locais foram buscar socorro e encontraram o guarda Mussi, que era conhecido por não fugir ao cumprimento de seu dever.
A Polícia Marítima de Santos gozava de péssima reputação na cidade. A maior parte de seus membros respondia a processos e inquéritos. A imprensa, via de regra, cobrava uma postura legal e ética da corporação criada apenas para proceder o serviço de vigilância nas zonas portuárias. Mas, de forma que ninguém conseguia explicar, os milicianos da chamada P.M. (Polícia Marítima) tinham avançado para fora de sua área de jurisdição e atuavam no policiamento de campos de futebol, zonas de baixo meretrício e nas ocorrências nos bairros, sobrepujando a atuação da Guarda Civil. Uma briga no Macuco, um comício em praça pública ou um conflito em qualquer canto da cidade já justificava a presença dos “meninos do Dr. Seco” (Joaquim da Cruz Seco, inspetor chefe da Polícia Marítima).
A despeito de toda a má fama da P.M., o guarda Bigode não se fez de rogado e partiu imediatamente para o bar “Neptuno” a fim de colocar “ordem na casa”. Lá chegando, observou que os dois milicianos, Israel Lucas (fardado) e Paulo Mota (a paisana) estavam armados de revólver, e aparentemente dispostos a fazer estragos no local. O guarda civil, então, em face de sua autoridade, ordenou que os dois se retirassem do local e fossem para suas casas. Mas, soberbos que eram, os milicianos se recusaram a obedecer Bigode. O P.M. Paulo Mota, foi além, e partiu para a agressão física. Em meio à luta corporal, o revólver (Taurus) do miliciano caiu no chão, sendo pego por Israel que, sem nenhum escrúpulo, desferiu vários tiros contra o guarda Mussi. Cinco tiros atingiram o policial, que caiu ensanguentado. Covardemente, Paulo Mota, num gesto selvagem, continuou a agredir a vítima com socos e pontapés, só cessando o espancamento quando supôs que o adversário havia morrido.
“Mas os super-heróis são duros na queda”, como diriam algumas crianças dias mais tarde.
Menção honrosa por bravura
O episódio envolvendo as duas forças policiais chocou a cidade, que passou a ser intolerante diante das ações da Polícia Marítima. Bigode foi removido às pressas para a Santa Casa de Misericórdia, onde passou por delicadas cirurgias. Seu estado era grave e muitos davam como certa sua morte. Porém, o destino não quis alijar Santos de um de seus grandes anjos da guarda. Assim, Bigode sobreviveu, para a alegria de muitos e a preocupação dos “meninos do Dr. Seco”, que começaram a perder força na cidade, até ficarem circunscritos aos seus limites de atuação, ou seja, na zona portuária.
Algumas semanas depois o miliciano Israel Lucas seria condenado a dois anos de cadeia. Paulo Mota já havia sido expulso da corporação. Quando o guarda Mussi voltou à ativa, além do reconhecimento por sua bravura na forma de medalha, dada pelo governo do Estado de São Paulo, Bigode testemunhou o carinho e respeito dos santistas só aumentarem, tornando-o uma espécie de super-herói da criançada. “Nem as balas foram capazes de parar o nosso Bigode”, diziam as pessoas pelas ruas.
Presença marcante
Personagem solidificado na alma santista, o guarda Mussi era presença certa nos grandes fatos ocorridos nos anos 1950 e 1960. Havia um incêndio, lá estava ele controlando a curiosidade do povo. O papai Noel chegava à cidade de helicóptero, era o Bigode a recepcioná-lo. Se o Santos Futebol Clube jogasse clássicos decisivos na Vila Belmiro, era o bravo guarda civil o responsável por botar “ordem na casa”. Quantas vezes ele teve que escoltar o juiz ameaçado após lances polêmicos? Muitas! O Bigode se tornou uma espécie de líder entre os guardas, respeitado por todos. E ninguém se atrevia a “zoar” o guarda Mussi quando da ocorrência do famoso Banho da Dorotéia ou atravessar as linhas de segurança por ele montadas nos desfiles cívicos que aconteciam na orla. Se tentasse, recebiam um “puxão de orelha”. E, via de regra, as broncas eram elogiadas pelos santistas.
Curiosidades
Bigode era o terror dos que insistiam em burlar as leis e regras sobre a prática esportiva na praia. Uma delas proibia o uso de bolas em determinados horários. O guarda Mussi era o campeão em recolhe-las dos “contraventores”. Isso até lhe rendeu uma bem humorada charge na imprensa.
Em dezembro de 1957, durante um jogo entre o Jabaquara e o São Paulo Futebol Clube, na Vila Belmiro (era comum o Santos emprestar seu campo ao time coirmão), o juiz ficou acuado após favorecer o time visitante em lances que deram vitória ao mesmo. Irritada, a torcida rubro-amarela começou a atirar objetos no gramado, fazendo com que o árbitro encerrasse antecipadamente a partida. Não fosse o Bigode, o juiz apanharia da turma do “Jabuca”.
Durante uma greve dos motorneiros de bonde, em meados dos anos 1950, o serviço só não foi totalmente paralisado pela ação do Corpo de Bombeiros e da Guarda Civil. Os “homens do fogo” assumiram a condução dos carris e os guardas, como o Bigode, passaram a trabalhar como operadores de linha.
Síntese biográfica
Lupércio Mussi, o Bigode, nasceu na cidade interiorana de Amparo, em 12 de novembro de 1914, filho de imigrantes sírios (José Mussi e Sad Mussi) que para o Brasil vieram construir suas vidas. Casou-se com Olímpia Pereira Mussi, com quem teve dois filhos: Lupércio e Maria Aparecida. Mais tarde casou-se com Angélica Concílio Mussi, que já tinha uma filha do primeiro relacionamento, Janete.
Mecânico de formação técnica, ingressou na Guarda Civil do Estado de São Paulo em 4 de novembro de 1940, aos 25 anos de idade. Foi destacado para a cidade de Santos em 1º de março de 1941. No ano seguinte, passou a ser o guarda civil responsável pelo policiamento nas praias do Gonzaga, onde alcançou a popularidade que o tornou o “Bigode”.
Em 1949, após o episódio em que quase morreu na função do dever, Mussi ganhou a “Menção Honrosa” do Governo do Estado de São Paulo, pelas mãos do então secretário de Segurança Pública, Coronel Nelson Aquino. Na ocasião, foi promovido ao posto de guarda-civil de 1ª classe.
Em 1956, por sua atuação marcante no episódio das tragédias provocadas pelas chuvas em Santos (onde morreram dezenas de pessoas por conta dos deslizamentos dos morros – veja matéria aqui no Memória Santista), Bigode foi diversas vezes homenageado.
Em 1964, ele foi agraciado com o “Brasão da Cidade”, feito em ouro, e recebeu o título de Cidadão Santista em 23 de setembro daquele ano (Lei Municipal 2.973/1964).
No ano seguinte, Lupércio Mussi se aposentava, após 25 anos de serviços prestados à comunidade. No discurso do 11º Grupamento de Santos, lido na solenidade comemorativa ao Dia Nacional do Guarda Civil (3 de setembro), externava-se a admiração pelo super-herói santista.
“Amigo de todos, desde o mais humilde, às mais altas figuras brasileiras, Lupércio Mussi, o nosso Bigode, foi um bravo defensor do nome da Guarda Civil de São Paulo, exaltando-a e cobrindo-a de glórias. Ele sempre foi um policial consciente de seus deveres funcionais e todos os santistas orgulham-se de tê-lo como irmão”
O guarda Mussi, mesmo aposentado, ainda se dedicou aos seus pares por alguns anos, contribuindo para a construção da sede da Associação Esportiva GC e trabalhando de forma voluntária junto à Caixa Beneficente da Guarda Civil.
Aos 78 anos, Lupércio Mussi, o amado Bigode, partiu, em 12 de julho de 1992, para, de fato, cumprir sua jornada como o verdadeiro anjo que sempre foi.