Baia de Lubeck, nordeste da Alemanha, 3 de maio de 1945. Um corre-corre generalizado provocava um verdadeiro pandemônio no convés do imenso transatlântico SS Cap Arcona. As sirenes do navio tocavam freneticamente alertando o perigo imediato. O comando da embarcação, transformada em “campo de concentração flutuante” havia pouco menos de um mês, desconfiava que o fim estaria próximo. Afinal, o líder supremo da Alemanha Nazista, Adolfo Hitler, havia sido dado como morto, por suicício, quatro dias antes, em razão do avanço das tropas aliadas sobre Berlim. A guerra, para muitos, estava praticamente perdida para os alemães e poucos eram os focos de resistência, como em Lubeck.
Passava das duas horas da tarde, quando o primeiro impacto foi sentido, a estibordo. O comandante-chefe nazista correu para checar a situação. Além do Cap Arcona, outros dois navios alemães, o Thielbeck e o Deutschland, também eram duramente alvejados por caças-bombardeiros “Hawker Tufão” do 198º esquadrão da Royal Air Force (Reino Unido).
O Thielbek foi o primeiro a ser eliminado, atingido por foguetes, bombas e tiros de metralhadoras. Em menos de 20 minutos, o cargueiro alemão, utilizado durante a guerra no transporte de soldados e também convertido em navio-prisão, foi à pique, levando consigo 2.700 prisioneiros. Apenas 50 pessoas sobreviveriam ao ataque.
O Cap Arcona, por sua vez, apesar de seriamente avariado, ainda resistiu um pouco mais. No entanto, superlotado, trazendo mais de 5.000 pessoas à bordo, não conseguia avançar com rapidez na direção do porto, onde haveria como ser defendido, de certa forma, pelas tropas alemãs em terra. Parcialmente consumido pelas chamas, o transatlântico, que um dia fora o orgulho da marinha mercante alemã, agonizava, assim como os milhares de seus ocupantes.
Atingido por mais três bombas, o imenso navio adernou, virando de lado, ficando com uma de suas partes submersa. O cenário era de extremo caos. Centenas de prisioneiros queimavam no interior do navio. Dos que conseguiram escapar saltando na água, a maior parte acabou afogada ou congelada pelas gélidas águas do Mar Báltico (a temperatura da água era de cerca de 7°C), isso quando não eram alvejados pelos aviões britânicos ou pelos guardas da SS Nazista, que não pensavam duas vezes antes de atirar nos que tentavam escapar.
* Os britânicos alegaram que desconheciam o fato de o navio estar transportando prisioneiros de guerra, sobreviventes de alguns campos de concentração. Só em 1975 é que alegaram ter tido conhecimento desse fato, o de terem massacrado alguns de seus próprios aliados.
Seriamente comprometido, o Cap Arcona, então, virou e encalhou nas proximidades da costa. O saldo final de sobreviventes foi de ínfimas 350 pessoas (das quase 5 mil que estavam no navio).
O ataque a Lubeck foi uma das determinantes para a rendição incondicional da Alemanha, ocorrida quatro dias depois (7 de maio de 1945), na cidade francesa de Reims. Milhões de europeus, então, passaram a respirar aliviados, e dali em diante só pensariam em reconstruir suas vidas. Lágrimas de alegria e de tristeza se misturavam, mesclando sentimentos de esperanças e saudades.
Tais sensações eram da mesma forma sentidas do outro lado do Oceano Atlântico, como na litorânea cidade de Santos, no Brasil. Ali, um jovem de 16 anos de idade, ao tomar conhecimento do final trágico do SS Cap Arcona, não se conteve e deixou lágrimas de tristeza verterem dos olhos, enquanto observava o vai e vem das embarcações na entrada da barra o porto santista. Ainda que aliviado pelo final do abominoso conflito na Europa, o rapaz, Ismael Castanho, lamentava o final trágico daquele que ele considerava o mais belo navio que conhecera na vida.
Contemplando fixamente o horizonte da Baía de Santos, o jovem santista sabia que jamais retornaria a ver o inigualável transtatlântico alemão. Nas mãos, Castanho carregava uma fotografia, tirada por Pedro Peressin, o “Barbado”, que mostrava o SS Cap Arcona navegando mansamente pela saida do canal do porto, na altura da Ponta da Praia. Aquela era a única lembrança palpável que ficara do dia mágico em que ele, aos 10 anos de idade, teve o privilégio de poder explorar cada palmo de um dos mais fantásticos navios do mundo.
Um dia pra nunca esquecer.
Santos, fevereiro de 1938. Ele era chamado de “O Rei da América do Sul”, um navio singular, uma obra-prima da navegação, casamento perfeito entre estética e funcionalidade. Lançado ao mar em 14 de maio de 1927, o SS Cap Arcona era a segunda embarcação com o mesmo nome da empresa Hamburg-SudAmerikannischen Dampfschiffarthrits Gessellschaft (Hamburg-Süd). A primeira havia sido recolhida, depois de servir a Rota de Ouro e Prata durante sete anos (1907-1914). Construído nos estaleiros Blohm & Voss, de Hamburgo, o novo navio custou cerca de 32 milhões de marcos-ouro, o que refletiu o esmero e o capricho empregados na sua concepção de alto nível. Os dados técnicos e de acabamento referentes a este supertransatlântico foram quase todos de ênfase superlativa.
Após o batismo, o SS Cap Arcona foi escalado para atuar na rota da América do Sul, numa época gloriosa da navegação. E lá reinou com aboluta maestria.
A cidade de Santos era passagem obrigatória pelo Brasil (a primeira vez foi em 3 de dezmebro de 1927) e quase sempre que o transatlântico alemão chegava em águas santistas, era recepcinado pelo prático(*) Antonio Castanho, como no final do verão de 1938, quando o experiente profissional do porto santista, já ambientado ao gigante alemão e amigo de seus comandantes, resolveu levar o filho, Ismael, para conhecer de perto o Rei da América do Sul.
(*) Prático é o profissional encarregado de manobrar todas as embarcações que chegam ao porto de Santos, por conhecerem a fundo toda sua extensão e possíveis áreas de risco.
Atracado no armazém 14 da Companhia Docas de Santos, o Cap Arcona impressionou o menino. E não era para menos. Afinal, com seus 27.561 toneladas de arqueação bruta, 205,9 metros de comprimento, 25,8 metros de largura, calado de 12,8 metros e duas turbinas a vapor com potência de 17 500 KW, cada, a embarcação surpreendia até os mais experientes homens do mar.
O gigante alemão era absoluto em sua época em termos de velocidade, graças ao poderio de sua máquina propulsora com oito turbinas a vapor de combustão interna (diesel), que lhe garantia navegação à velocidade de cruzeiro de 20 nós (37 quilômetros horários) e um máximo de 21,5 nós (39,8 quilômetros horários).
Essa imensa força propulsora era fornecida por oito turbinas que giravam à razão de 2.100 rotações por minuto (rpm). Isso oferecia algo semelhante a produção de 24 mil cavalos-vapor (equivalente aos 20 nós de velocidade de cruzeiro). Nenhum outro navio apresentava tamanha performance nos mares do Atlântico.
Ismael e seu pai foram recepcionados pelo comandante Ernst Rolin em pessoa. O experiente “comodoro” alemão, trajado com seu uniforme oficial, fez questão de ciceronea-los no “passeio” por toda a embarcação, o que constituiu um privilégio especial, concedido a poucos.
Encanto a cada passo
Os olhos do menino brilhavam ao testemunhar tanto luxo e requinte. O Cap Arcona possuía, por exemplo, uma quadra de tênis oficial, o que era uma novidade absoluta na época, dotada de revestimento de borracha e redes de proteção de 5 metros de altura.
O navio era destinado ao transporte de passageiros. Sua área de carga era mínima, apenas para atender as necessidades dos clientes e algumas correspondências em apoio ao serviço de correios europeu. Suas acomodações para os passageiros permitiam a lotação máxima de 1.325 pessoas (375 em primeira classe, 275 em segunda classe e 465 em terceira classe).
Ismael Castanho se encantava a cada passo, na passagem pelas cabines (que ocupavam 50% do navio), caldeiras, ponte de comando, sala de jogos e até uma piscina interna, toda ladrilhada.
O destaque, porém, ficava para o imenso salão de jantar, instalado numa área livre de 700 metros quadrados, todo revestido em carpete azul estampados com motivos florais entrelaçados. Suas mesas eram redondas, para quatro pessoas, com cadeiras estofadas de couro vermelho. O espaço era iluminado pela luz natural que vinha de 20 grandes janelas verticais que davam vista para o mar.
O menu de bordo era internacional, preparado por três chefs de cuisine cordon bleu e 20 chefes auxiliares, além de um batalhão de ajudantes de cozinha.
O hall de entrada, também de grandes dimensões, era demarcado por um painel central, colunas de mármore e grandes vasos de cerâmica que abrigavam plantas tropicais. Deste hall partiam duas galerias laterais entrecortadas a cada três metros por grandes janelões encortinados.
O salão de festas (ou festsaal) era decorado de modo relativamente sóbrio, dominado ao centro por uma pista quadrada de dança, sobre a qual se projetava uma coroa de luzes composta por 22 candelabros. Outros ambientes excepcionais eram o jardim de inverno, com poltronas de vime trabalhado e um grande vidro retangular com motivos liberty; o salão de fumantes era dominado por um enorme painel de mármore que emoldurava uma lareira e um quadro artístico acima desta.
Ao final do passeio, Ismael e seu pai agradeceram a atenção gentil de Ernst Rolin e se despediram. No dia seguinte, o menino ainda foi até a Ponta da Praia, nas proximidades do Clube Internacional para ver a passagem do navio que se tornara um ídolo em sua vida (na época ainda não existia a avenida Almirante Saldanha da Gama). Eram quase 18 horas, final de tarde, quando o Cap Arcona passou. E antes de deixar o posto santista, na altura da velha fortaleza da Barra Grande, ele apitou, como que se despendido do jovem santista que um dia seria, tal qual seu pai, um prático, um condutor de navios. Porém, sem ter a alegria de estar ao leme do “Senhor dos Oceanos”.
Artigo baseado no testemunho de Ismael Castanho (hoje com 90 anos de idade) e com informações coletadas no livro Rota de Ouro e Prata, de José Carlos Rossini. Fotos do mesmo livro e do catálogo de 1990 da empresa Hamburg-SudAmerikannischen Dampfschiffarthrits Gessellschaft.