Sem dúvida alguma, na história do Carnaval Santista, a patuscada (ajuntamento festivo de pessoas) “Dona Dorotéia, Vamos Furar Aquela Onda?” foi o evento de maior fama e mobilização já ocorrido. Inicializado em 1923, a festa sobreviveu até 1997, ou seja, por 74 anos! E, infelizmente, foi paralisada em razão de uma situação cada vez mais afligente em nossa sociedade: a violência. O que nasceu como uma brincadeira pura, simples, de gozação quase infantil, se tornou um mecanismo para que vândalos pudessem cometer seus atos criminosos, pondo fim a uma tradição santista.
Mas, voltemos ao tempo. Tudo começou na época em que eram os blocos carnavalescos e os corsos quem ditavam o ritmo da folia santista. Neste período ainda não havia Rei Momo, Rainha do Carnaval. A festa era nas ruas e nos salões de baile. Segundo o cronista e historiador carnavalesco Bandeira Júnior, foi na década de 1920 que alguns foliões resolveram “inovar”, promovendo uma espécie de “banho de mar à fantasia”. A sociedade já mudara seus costumes, e tomar banhos de mar, como opção de lazer, era corriqueiro. (é bom dizer que, até o princípio do século XX, banhos de mar eram mais comuns a pessoas que buscavam efeitos de saúde, sendo raras as pessoas que caiam na água apenas para se divertir).
Foi Feliciano Firmino Ferreira, conhecido na cidade por ser um boêmio irreparável, cuja alcunha era “Javali”, quem começou a propor a brincadeira marítima. Em 1920, ele reuniu os amigos do Bloco Carnavalesco “Pé no Fundo”, cujos membros eram jovens do Clube Internacional de Regatas, para promover uma “patuscada” na praia da sede do clube, que ficava do outro lado do estuário, em Itapema (hoje, Vicente de Carvalho, que pertencia a Santos na época, assim como toda a Ilha de Santo Amaro). A coisa deu tão certo, de divertida que fora, que dois anos depois, o “Pé no Fundo” resolveu promover o banho à fantasia na praia do Gonzaga, para testemunho de outros santistas.
Os rapazes do Clube de Regatas Saldanha da Gama, já conhecedores da brincadeira promovida pelos “rivais” do Inter, também resolveram promover sua própria patuscada, juntando a turma do bloco carnavalesco saldanhista “Decadência Humana Física”, para um banho de mar no dia 24 de fevereiro de 1922, que acabou sendo repetido, pelo sucesso, no ano seguinte. Outro clube a aderir à moda foi o Clube de Regatas Santista que, na Bocaina (região onde hoje se encontra a Base Aérea de Vicente de Carvalho), também promoveu uma festa bem “molhada”.
Foi aí que entrou na história o homem que viria a se tornar o “pai” da patuscada “Dona Dorotéia”: Luiz Vieira de Carvalho, o Lorde Gorila. Recém chegado do Rio de Janeiro, ficou sócio do Saldanha da Gama, onde testemunhou a brincadeira dos novos colegas. Considerou que, apesar de divertida, o banho à fantasia era bastante desorganizado. Assim, resolveu dar seus “pitacos”.
Juntando com alguns amigos, como Dawson Muniz (Whisky), Hermam Palmeira Martins (Maninho), Campos Moura (Rajá), Tito Palma (Homem de Cobra), o próprio Feliciano Firmino Ferreira (Javali), entre outros, Luiz Carvalho sugeriu que a festa saldanhista se espelhasse no que o Clube de Regatas Flamengo, do Rio, fazia na capital federal. Antes do banho à fantasia, o ideal era promover um desfile pelas ruas da cidade, a fim de chamar a atenção da população, e brincar com todos os que quisessem participar. Ao final, todos pulariam na água no trecho da praia defronte ao clube, na Ponta da Praia.
Todos gostaram da ideia e resolveram pô-la em prática. Com isso, não só conseguiram encorpar o evento, mas acabaram contando com o apoio de outros blocos da cidade, que contribuíam inclusive com bandas de música.
O nome
Logo depois que os desfiles começaram a ocorrer, os saldanhistas decidiram que era necessário que o evento fosse considerado uma espécie de bloco. Assim, era importante que tivesse um nome e, de preferência, bem gozador, como de hábito entre os blocos da cidade. Depois de várias sugestões não aceitas pelo coletivo, Luiz Vieira de Carvalho e seu companheiro Oscar Pimentel, lembraram de uma situação que poderia render um bom nome. Os dois amigos tinham o hábito de frequentar o Teatro Guarany sempre que a Companhia Teatral Pinto Filho fazia uma turnê na cidade. A trupe era pequena. Além de Pinto Filho e sua esposa, o elenco contava com Isidoro Alacid e outros três atores. Na peça encenada naquele início dos anos 1920, “O 21 na Zona”, Pinto Filho fazia o papel do cabo 21, sujeito mulherengo, que não perdoava uma oportunidade. Numa determinada cena da peça, o cabo 21 estava na praia quando percebeu uma mulher de costas, em trajes de banho. Suas pernas eram lindas, mas não era possível ver seu rosto. O cabo 21, malandramente, gingou perto da “donzela”, contorceu o fino bigode e soltou a cantada: “Dona Dorotéia, Vamos Furar Aquela Onda?”. A banhista, então, se virava e revelava sua face, horrenda. Cabo 21, assustado e frustrado, virava de costas e corria, para o delírio da plateia no Teatro Guarany. A cena ficou na cabeça de Lorde Gorila. Tava aí um bom nome para o irreverente bloco carnavalesco do Saldanha da Gama.
Os desfiles da Dona Dorotéia produziram centenas de “causos” curiosos ao longo dos anos. São tantos que mereciam um livro inteiro para contá-los. Quem sabe essa maravilha um dia não possa vir à luz, para deleite dos que amam a história de Santos.