Criada há 140 anos, Escola do Povo, primeiro estabelecimento de ensino popular de Santos, recebia alunos das camadas sociais mais vulneráveis, incluindo filhos de escravos.
Santos, segunda-feira, 9 de setembro de 1878. As crianças chegavam, uma a uma, de vários cantos da cidade, aparentemente acanhadas, tanto quanto encantadas. E não havia como censurar tais sentimentos, tão díspares e análogos. Afinal de contas, aquele era um dia mais do que especial para as suas vidas e, mesmo elas não fazendo a menor ideia, histórico para a cidade. O modesto sobradão do Largo da Coroação, nº 11 (atual Praça Mauá), residência do professor Antônio Manoel Fernandes, se transformava, então, no primeiro estabelecimento de ensino popular de Santos, abrigando essencialmente crianças oriundas das camadas mais carentes da sociedade, incluindo filhos de negros escravos beneficiados pela Lei do Ventre Livre (promulgada em 28 de setembro de 1871 e assinada pela Princesa Isabel). Era um modelo inicial de inclusão social, um desprendimento característico na Terra da Caridade e Liberdade, apesar de bastante tímido diante da realidade. Santos possuia um grande número de crianças negras, de acordo com os censos realizados no final do século 19, à margem das oportunidades.
Ainda assim, a criação da Escola do Povo, em 1878, constitiu-se num marco para a educação santista que,a partir daí, testemunhou a consolidação de um sistema de ensino (o realizado de forma coletiva) cujos primeiros passos foram dados em 1827, quando uma Lei Imperial determinou a criação de “escolas de primeiras letras” em todas as cidades, vilas e vilarejos e “escolas de meninas” nas cidades e vilas mais populosas. Porém, tal medida acabou fracassada em razão de causas econômicas, técnicas e políticas. Em 1867, um censo nacional apontou que apenas 10% da população em idade escolar se matriculara nessas unidades elementares.
Aulas Régias
Em Santos, a exemplo de outras localidades, ainda vigorava o modelo educacional baseado nos princípios das “Aulas Régias”, instituídas no Brasil a partir de 1759, após a expulsão dos jesuítas de todo o Reino de Portugal (cabe rememorar que os membros da Companhia de Jesus – os jesuítas – foram os responsáveis pela primeira experiência educacional do país, incluindo na vila de Santos, onde mantinham um colégio para catequeze de índios e colonos). Porém, o sistema preconizado pelo Marques de Pombal só foi implantado entre os santistas no ano de 1768, quando por aqui surgiram os primeiros professores régios, que atuavam em disciplinas pontuais, como Primeiras Letras (alfabetização) e Gramática Latina. Esses profissionais, via de regra, recebiam seus proventos do Estado, que chegou a criar impostos específicos (intitulados “subsídios literários”) para suprir esta “folha de pagamento” . O órgão do Reino lusitano que gerenciava esta classe culta era a “Mesa Censória”, criada em 1767.
Padres, letrados e artistas na “concorrência”
Ao longo das décadas, a cidade santista viu serem ofertadas outras vias de educação. Uma delas pelas ordens religiosas que acabaram ocupando a lacuna deixada pelos jesuítas, com destaque para os carmelitas. A outra ocorreu por intermédio de homens cultos e artistas, que se lançavam no “mercado” como autônomos sem ligação com o Estado. Desta feita, ficaram marcados na história grandes nomes da educação santista, como o mestre João Floriano, que ministrava aulas particulares de latim; o padre Manoel Francisco Vilela, da Igreja do Carmo; José Luís de Morais e Castro, português da cidade do Porto, enviado pela Mesa Censória de Lisboa para lecionar em Santos; Padre Dickercheid; Padre Joaquim José de Santana; Padre José Xavier de Toledo; Frei D. Manoel da Ressurreição; José Luiz de Mello; Augusto Freire da Silva; Júlio Ribeiro; Silva Jardim; Henrique Braga e até mesmo o famoso pintor Benedicto Calixto, que lecionava desenho e história.
A formação do conceito coletivo: as escolas.
Diante do aumento populacional (muito em função do processos imigratório), os profissionais liberais e religiosos perceberam que não era mais possível atender a demanda apenas de forma “particular” (entre 1843 e 1872 o número de habitantes saltou de 3.500 para 9.171). Desta feita, na segunda metade da década de 1870 é que pensou-se na criação dos modelos de ensino propostos em 1827, o das unidades de ensino coletivo. Antes da Escola do Povo, a única experiência neste sentido foi a da Escola Alemã, destinada aos filhos de imigrantes daquele país europeu.
Um turbilhão de ofertas
Na esteira da escola do Largo da Coroação e sua bem sucedida medida inclusiva, outros estabelecimentos começaram a surgir na cidade santista, comandados por ex-professores liberais, como o Colégio “Juvenato Santista”, liderado pelo prof. Tiburtino Mondin Pestana; o Colégio do prof. João Anta; a Escola do prof. Francisco Gonçalves Barroso, instalada na Rua do Rosário (atual João Pessoa) esquina da Rua Itororó; a Escola de D. Leopoldina Thomaz Coelho; a Escola de Eugênio Porchat de Assis; a Escola do prof. Tarquínio Silva; o Grupo Escolar Olavo Bilac, situado na Rua D. Pedro II; o Instituto Santista e o Colégio Rentscheller (considerados os melhores da cidade na virada do século 19 para o 20); o Convento Santo Antônio e, finalmente, os grupos escolares Cesário Bastos e Barnabé, ambos criados por decretos do Estado de São Paulo (28 de abril de 1900 e 5 de maio de 1902, respectivamente).
A partir daí, a linha do tempo da educação de Santos foi registrando grandes experiências, conduzidas por dezenas de instituições de ensino, públicas e privadas, todas empenhadas na formação intelectual, e inclusiva, do povo santista.
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Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, era Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino de Portugal, principal articulador D. José I. Ele era um adepto do Iluminismo – movimento intelectual que surgiu durante o século XVIII na Europa, que defendia o uso da razão – luz – contra o antigo regime – trevas – e pregava maior liberdade econômica e política. Este movimento promoveu mudanças políticas, econômicas e sociais, baseadas nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.
Na imprensa
O jornal Correio Paulistano, em sua edição de 25 de setembro de 1878, publicava nota dizendo que a instalação oficial da Escola do Povo acontecera três dias antes (22 de setembro de 1878), em sessão solene, treze dias após o início das atividades com as crianças. O jornal da capital informava que a instituição havia sido criada nos moldes de uma associação pela iniciativa do professor Antonio Manoel Fernandes, que se tornara o seu primeiro presidente. O evento de instalação contou com mais de duzentas pessoas, que lotaram as dependências da escola, no Largo da Coroação, 11.
O Correio Paulistano voltou a falar da Escola do Povo de Santos na edição de 29 de outubro, informando que estavam matriculados nela, 127 alunos, sendo 113 brasileiros, oito portugueses, três africanos (na verdade eram também brasileiros, mas filhos de escravos, beneficiados com a liberdade em razão da Lei do Ventre Livre), um americano, um italiano e um oriental. A instituição informou ainda que a frequência média diária girava em torno de 90 alunos.
Garcia Redondo
Em 13 de julho de 1879, o futuro escritor e fundador da Academia Brasileira de Letras, o carioca Manoel Ferreira Garcia Redondo (ele tomaria posse n
a famosa instituição Literária em janeiro de 1897), deu uma palestra nas dependências da Escola do Povo, falando sobre as necessidades e vantagens do estudo da história natural. Esse fato foi registrado em nota publicada no Jornal da Tarde, edição de 14 de julho de 1879. Garcia Redondo, à esta época atuava como engenheiro fiscal de obras da Alfândega de Santos. Ele morou na cidade até 1884, quando transferiu-se para São Paulo. O seu maior feito na cidade santista foi o projeto do Teatro Guarany, executado em 1882.