Por diversas vezes ao longo de sua história, Santos foi o foco de pautas estruturantes que objetivavam seu desenvolvimento urbano e comercial
Quando Martim Afonso de Souza chegou a estas paragens, no longínquo ano de 1532, uma de suas missões era lançar os fundamentos da colonização brasileira. Um ponto fundamental aos planos do Reino de Portugal era entender e estruturar a região visando dar-lhe condições para o início de um processo produtivo açucareiro. Sesmarias foram distribuídas entre os homens que aceitaram a missão colonizadora e estes, após devidamente instalados, ergueram na ilha de São Vicente e arredores alguns engenhos para a moagem da cana-de-açúcar, cujas primeiras mudas foram trazidas da Ilha da Madeira. Conceitualmente, pode-se dizer que este foi o primeiro gesto em que se pensou o futuro daquelas terras que, entre 1545 e 1546, se tornaria Santos, já pelas mãos de Braz Cubas, um dos principais auxiliares de Martim Afonso. Fundador da vila santista, foi Cubas quem também planejou e executou a transferência do porto da capitania para junto do povoado, em 1541, medida que acabou tornando Santos uma referência de passagem aos marinheiros que se aventuravam pelo Atlântico Sul.
Ao longo do chamado período colonial (1532-1822), pouca coisa de alta relevância estrutural aconteceu. Com o enfraquecimento da produção açucareira no Sudeste brasileiro (o Reino de Portugal enxergou mais vantagem na produção desta cultura no Nordeste), a região basicamente foi utilizada como ponto de passagem de navios em trânsito pelo Atlântico, como porta de entrada para aventureiros de toda sorte que se embrenhavam nas matas paulistas em busca de pedras preciosas ou para o escoamento da modesta produção agrícola (fumo, algodão e açúcar) e de sal para a Metrópole (Lisboa). Santos também chegou a escoar a produção aurífera das Minas Gerais, embora por pouco tempo.
Neste período de relativa “involução”, a região, ao menos, testemunhou a execução do que fora considerado o maior projeto de engenharia realizado nas Américas no século 18. Visando justamente incrementar a capacidade comercial da Capitania de São Paulo, o então governador Bernardo José Maria de Lorena mandou construir, a partir de 1790, uma estrada na Serra do Mar, calçada em pedras, com 50 km de extensão. O projeto, coordenado pelo Corpo Real de Engenheiros de Lisboa, se mostrou um primor de qualidade para a época e, de fato, contribuiu para o aumento substancial no movimento comercial do porto santista.
O café força o planejamento do futuro
Se nos seus primeiros trezentos anos de vida, Santos viu as coisas quase paradas, o mesmo não se pôde dizer do agitado século 18, em especial durante o período Imperial, quando o Brasil deu um salto qualitativo em termos de estrutura, a ponto de figurar entre as maiores nações do mundo. Até 1889, ano que marcou o fim da monarquia e o início do regime republicano, Santos teve o privilégio de conhecer e experimentar, por conta da pujança nacional, os benefícios da ferrovia, do telégrafo, da fotografia, do sistema de transporte urbano em trilhos (os bondes), do sistema de iluminação por gás e de tantas outras maravilhas tecnológicas que facilitaram o modo de viver nas cidades.
Praticamente tudo isso floresceu em função da riqueza gerada pelo “ouro verde”, o café, cujos grãos transformaram a cara e a vida do país, em especial do Estado de São Paulo. A onda do café forçou, de certa maneira, os santistas a pensarem no futuro da cidade. Isso porque as oportunidades de ganhos e de trabalho eram tantas, que a pequena vila registrou um salto demográfico descontrolado. Para se ter uma ideia, no ano da independência do Brasil (1822), apenas 4.781 “almas” viviam em algumas centenas de casas entre o Valongo e o Outeiro de Santa Catarina. Já em 1885, ou seja, apenas sessenta e três anos depois, Santos, que já havia sido alçada à condição de cidade (1839), passou a contar com cerca de 15 mil habitantes.
Essa massa de novos moradores, ávida por oportunidades, se instalava onde podia, o que acabou gerando um problema de saúde pública de enormes proporções. Sem poder contar com saneamento básico, os santistas testemunharam a eclosão de diversos tipos de epidemias: febre amarela, peste bubônica, varíola, tuberculose, entre outras, que ceifaram a vida de milhares de pessoas na cidade portuária, a ponto dela ganhar a má fama internacional como o “Porto da Morte”
O primeiro grande plano estruturante
Algumas modificações estruturais, principalmente nas questões de acessibilidade, vinham acontecendo desde 1827, quando fora inaugurado o chamado “Aterrado de Cubatão”, que possibilitou a chegada direta das tropas de muares (mulas ou burros) com mercadorias ao porto santista. Antes disso, qualquer coisa com destino a Santos tinha de ser embarcado no Porto Geral de Cubatão, gerando altos custos de estocagem, além de perdas por conta das más condições dos armazéns locais e mesmo das embarcações de transbordo. Em 1867, outra página era virada no quesito transporte, com a chegada da ferrovia, o que aumentou substancialmente o volume comercial do porto.
Santos fervilhou a partir da segunda metade do século 18, e isso, como dissemos, gerou graves efeitos colaterais, por conta da ocupação desenfreada dos espaços urbanos pela nova população, formada basicamente por imigrantes e negros escravos alforriados. Diante do colapso iminente em função das epidemias, o governo do Estado acendeu a luz de alerta. A cidade corria o risco de sucumbir perante o descontrole. A sede do principal porto brasileiro tinha de passar por um enérgico plano de recuperação. Foi aí, então, que algumas cabeças geniais se debruçaram sobre suas mesas de trabalho e traçaram esquemas com o objetivo de mudar o futuro santista.
As necessidades eram muitas: construir sistemas de coleta de esgotos, canalizar rios, elaborar políticas rígidas para a construção de novas moradias e criar planos de isolamento de pessoas infectadas com doenças contagiosas, entre outras prioridades. Um time de notáveis colaborou com o momento transformador, como o porto-riquenho Estevan Fuertes, que desenvolveu o primeiro sistema coletor de dejetos da cidade (1894); José Rebouças, que iniciou o processo de saneamento (1895/1903) e, o mais notório deste grupo, o engenheiro sanitarista Francisco Saturnino Rodrigues de Brito que, além de conduzir brilhantemente com o projeto de saneamento (a partir de 1905), deixou um enorme legado à cidade santista. Saturnino apresentou o que podemos chamar de primeiro projeto urbanístico de Santos.
O plano base de Saturnino era sustentado por um conjunto de ações vitais para o futuro da qualidade de vida na cidade, como a implantação de uma rede bem estruturada de esgoto sanitário, rede de águas pluviais, reforma completa das instalações domiciliares e construção de canais de drenagem, que seriam responsáveis por dar condição de habitabilidade à maior parte do território santista, composto basicamente por terrenos pantanosos. Ele desenhou uma nova cidade a partir da Vila Mathias, oferecendo uma proposta urbanística que, se não foi cumprida à risca, ficou bem próxima do que ele almejou. Seu projeto, inclusive, foi o primeiro que vislumbrou a ocupação da orla por jardins, muito antes deles serem, de fato, implantados (na década de 1930).
Cidade de Primeiro Mundo
Há uma máxima entre os historiadores que diz: Se foi Braz Cubas quem fundou Santos, foi Saturnino quem “refundou” a cidade. De fato, após a conclusão de seu incrível plano, os santistas experimentaram anos de intenso crescimento. O porto, a todo vapor, escoava o maior tesouro nacional, o café, que deu à região condições de ostentar luxo e riqueza. Na década de 1920, para onde se olhava, havia exuberância. O hotel mais luxuoso da América do Sul ficava em Santos (o Parque Balneário), assim como a principal bolsa de valores do maior “commodity” brasileiro, ditando as regras do comércio internacional. O porto crescia e se modernizava a olhos vistos. As praças eram encantadoras, lideradas pela que ostentava o imponente monumento em memória dos irmãos Andradas, na Praça da Independência. Os teatros e cinemas estavam entre os melhores do país. Carros modernos e luxuosos circulavam pelas tranquilas ruas da cidade que podia rivalizar com qualquer centro europeu. À medida que os anos passavam, cada vez menos os santistas se lembravam do passado tenebroso das epidemias e da falta de higiene pública.
As coisas começaram a decair após a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. Logo depois ocorreu o golpe de Estado, que levou Getúlio Vargas ao poder (1930). Santos teve sua autonomia política caçada, entrou em guerra (Revolução de 1932) e sofreu as agruras econômicas provocadas pelo conflito na Europa, entre 1939 e 1945. Num caminho avesso ao velho ditado, Santos saiu da bonança para entrar na tempestade. E o resgate do progresso só viria com o anúncio do fim da Grande Guerra.
A partir de 1946, o movimento do cais santista voltou a apresentar as marcas que anota antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. A nova e latente necessidade europeia por insumos agrícolas e outras matérias primas potencializou por dez o comércio exterior. De certa forma, as autoridades não estavam tão prevenidas para o momento. A cidade santista, e em especial seu porto, não haviam crescido e modernizado em praticamente nada no período, em especial no quesito modais de transporte. De novidade, apenas a inauguração da primeira pista da Via Anchieta (1947), que foi fator determinante para o aumento da demanda de caminhões com destino à faixa portuária.
Receosos com a possibilidade de Santos não conseguir atender a crescente demanda comercial, o governo bandeirante chamou o ex-prefeito de São Paulo (1938-1945), um notório engenheiro nascido em Amparo, Francisco Prestes Maia, e contratou-o para que elaborasse um plano de reestruturação da Baixada Santista, com ênfase na modernização do porto, ao qual ele rotulou de “Plano Regional de Santos”.
Depois de estudar a geografia, a história e as possibilidades regionais durante dois anos, Prestes Maia apresentou seu projeto em 1948, um ano após a emancipação política de Guarujá (1947). Logo depois, era a vez de Cubatão conquistar sua autonomia e tornar-se município independente. A divisão territorial de Santos foi determinante para pôr fim no brilhante plano do engenheiro, uma vez que ele estruturou seu raciocínio tendo em vista o controle de Santos sobre seu amplo território. Na visão de Maia, Cubatão seria a “Santos Industrial”; o Guarujá e Bertioga, a “Santos Turística Balneária”; a área hoje ocupada pelo distrito de Vicente de Carvalho, na Ilha de Santo Amaro, seria a base da “Nova Santos”, uma cidade comercial de infraestrutura impecável; deixando para a área insular do município santista, a “Santos Residencial”.
O ponto central do Plano Regional de Santos era sua lógica modal. Para Prestes Maia, as estradas de ferro Santos-Jundiaí (antiga São Paulo Railway) e a E.F.Sorocabana, teriam seus ramais cruzados na área do Valongo, com extensão dos trilhos para o Litoral Norte, através de uma ponte que cruzaria o estuário na direção da Ilha Barnabé. Esta ligação seca Santos Insular e Continental também contemplaria o modal rodoviário. Para ligar a Santos Antiga à “Nova Santos”, Maia projetou outra ponte, desta vez “móvel”, a exemplo da Tower Bridge de Londres, que ficaria na altura do cais de Outeirinhos (atual Concais). Outra peculiaridade é a ideia de implantar o aeroporto regional em Praia Grande, tirando-o da ponta noroeste da Ilha de Santo Amaro. Em relação ao porto, foco principal do trabalho, Maia previu a construção de modernos berços de atracação e até estaleiros navais.
O Plano Regional de Santos, apesar de bastante elogiado, não foi pra frente e acabou morrendo na gaveta. A única ideia aproveitada foi o traçado do Túnel Rubens Ferreira Martins, que acabou sendo realizada a partir de 1949.
Ideias Pontuais
Depois do Plano de Prestes Maia, ninguém mais ousou elaborar projetos futurísticos para Santos e região. Muitas ideias surgiram, sem dúvida, embora pontuais. Algumas se realizaram, como a construção das rodovias Imigrantes (1976 e 2002) e Rio-Santos (1985), por exemplo. Mais recentemente testemunhamos a chegada do VLT (2016), com compromisso de benefício regional. Urbanisticamente, Santos testemunhou o lançamento de projetos “de sonho”, como o Porto Valongo, de 2012, que prometia mudar radicalmente o perfil turístico do Centro Histórico, aproveitando-se da onda do pré-sal. Mas a ideia ficou só na promessa, assim como o sonho do “ouro negro” (petróleo), que acabou desiludindo muita gente. É por isso que a história nos ensina: Sonhar é sempre bom, mas manter os pés no chão é mais do que recomendável.