Santos, 21 de janeiro de 1990. O sempre animado bairro do Gonzaga estava apinhado de gente naquela manhã quente de domingo. Mas não de uma gente interessada em “pegar um bronze” na praia, “bater o pé” no agitado comércio local ou mesmo caminhar distraído pelas aprazíveis alamedas que emolduram os belos jardins praianos. A massa humana que tomava conta das calçadas e até mesmo do meio das ruas Carlos Afonseca, Alamir Martins, Jorge Tibiriça, assim como da avenida Vicente de Carvalho, lá estava para testemunhar um espetáculo inusitado, único na história da cidade: a implosão de um decadente prédio de nove andares, que outrora abrigou um dos hoteis mais luxuosos da zona da orla santista.
Condenado em razão de problemas estruturais, o Edifício Gironda era, enfim, o personagem central de uma história que tirou mais cedo da cama outras dezenas de atores, que se tornariam figurantes de uma cena que prometia durar apenas três segundos.
O roteiro do espetáculo estava sendo desenhado havia algumas semanas pelas habilidosas mãos do engenheiro Manoel Jorge Dias, de 34 anos, o responsável técnico da CDI Demolidora, empresa contratada pela Praiamar Construtora para botar abaixo o cinquentenário edifício (o Gironda fora inaugurado em 1939).
Os preparativos incluiam a colocação de 25 quilos de dinamite estratégicamente espalhados em diversos pontos da estrutura do velho prédio, em especial nos três primeiros andares. As cargas explosivas receberam uma camada de gelatina especial (que tinham a função de substituir as espoletas geralmente utilizadas em implosões mais comuns da época).
Para evitar que pedaços de concreto fossem jogados contra os telhados e janelas das casas e edificações vizinhas, o Gironda foi totalmente forrado com uma manta de Telcom, espécie de tela metálica que tinha a função de evitar o lançamento de fragmentos. A grande novidade daquela explosão em Santos foi o uso de um acessório detonador considerado revolucionário, até então, no mercado brasileiro, e testado, com sucesso, na demolição do antigo Palácio da Justiça, no Rio de Janeiro.
Além da equipe pertencente à empresa de demolição, o evento envolveu bombeiros, policiais, agentes de trânsito, guardas municipais, funcionários da Defesa Civil, além de técnicos das empresas de distribuição de água (Sabesp), energia elétrica (Eletropaulo) e telefonia (Telesp).
Os moradores do entorno também foram mobilizados, ainda que contra suas vontades. Desde a noite anterior, a vida de muita gente estava “abalada”. Pouca gente conseguiu dormir em paz, imaginando as consequências que seriam provocadas pela primeira implosão santista. Num raio de 200 metros do Gironda, a Defesa Civil mandou fechar janelas e portas, como também exigiu que fossem retirados todos os carros da vizinhança, incluindo os que estavam em garagens.
Além da precaução com os imóveis fronteiriços, foi necessário evacuar totalmente 238 unidades residenciais dos prédios vizinhos (edifícios Aratuá, Gávea, Inca e La Rochelle). Todas os seus moradores receberam apólices de seguro, de vida e danos materiais.
Preparativos finais
As dezenas de curiosos se multiplicavam nas imediações do endereço do Gironda. O “espetáculo” atraiu gente de toda a cidade. Não faltavam câmeras fotográficas e de filmagem apontadas para registrar o momento histórico. Teve gente que chegou a ficar a noite toda acordado para observar de perto todo o trabalho realizado pelos técnicos de demolição.
No vai e vem dos engenheiros pelo local do evento, o titular da equipe da CDI Demolidora, Hugo Takahashi, ajustava os últimos detalhes.
Diferentes equipes da Eletropaulo e da Telesp estiveram no local um dia antes promovendo o remanejamento de fios, cabos, transformadores elétricos e instalações telefônicas, que seriam novamente remanejados e ligados no domingo, depois da implosão.
Também o pessoal da Sabesp esteve no Gironda, removendo todas as ligações externas de água e esgoto. Por exigência técnica, as tubulações internas não removidas foram vedadas com material argiloso, para impedir entrada ou saída de ar no momento da detonação.
A hora do show
Tudo devidamente ajustado, policiais e socorristas a postos, curiosos cuidadosamente afastados, era a hora de iniciar o inusitado espetáculo.
O protagonista do show foi o proprietário da Construtora Praiamar Ltda, Daoud Geroges Issa, o homem que pagou para botar abaixo o velho edifício. Eram exatamente oito horas da manhã. O engenheiro Manoel Dias ollhou para seu contratante e assentiu com a cabeça. Era hora de apertar o famoso botão detonador. Issa não titubeou e assim o fez. O pequeno barulho emitido pela pressão do dedo no botão foi seguido de um baque surdo, mas forte. Em fração de milisegundos, os 25 quilos de dinamite explodiram na base do Gironda, que tombou feito um mastodonte abatido.
Toneladas de concreto ruiram em segundos, fazendo surgir uma imensa e espessa nuvem de poeira. Logo depois, extasiado pela visão de guerra, o povo “explodiu” em gritos e palmas. Os envolvidos se abraçaram, comemorando o sucesso da operação. O Gironda foi abaixo e não provocou sequer um incidente.
Enquanto a poeira abaixava lentamente, depois de ter envolvido quase quatro quarteiroes do Gonzaga, um helicóptero da Polícia Militar sobrevoou o local, para verificar, de cima, a ocorrência de algum sinistro, ou efeito colateral.
No chão, um exército de operários tratou de pegar em pás para retirar o entulho das ruas, com auxílio de pás-carregadeiras da Prefeitura. Em paralelo, as equipes da Eletropaulo religavam a rede de energia local.
Durante a comemoração, os cumprimentos mais exaltador foram para engenheiro Manoel Jorge Dias. Ele não se preocupou em cronometrar, mas garantiu que tudo não consumiu mais do que quatro segundos. “Saiu tudo dentro do previsto”, disse, observando que nem mesmo o poste próximo ao prédio, que não pôde ser retirado, sofreu qualquer dano. Com o sucesso do trabalho, o engenheiro já previa novas implosões na Cidade a partir de agora.
O entulho resultante da demolição foi doado pela construtora à Prefeitura, que iria aproveitar o material para o encascalhamento de vias públicas.
Edifício da década de 30 foi hotel de luxo
Construído no final da década de 1930, o Gironda era considerado um dos prédios de apartamentos pioneiros da região praiana, assim como um dos mais luxuosos e belos do Gonzaga. Tanto que, a partir dos anos 1940, tornou-se um dos hoteis mais refinados da cidade, de nome Comodoro Boulevard, com nível superior até a estabelecimentos tradicionais como o Hotel Atlântico.
Nos anos 1970, trocou de nome, para Boulevard Santos Hotel, e passou a oferecer um sistema que ficou conhecido como apart-hotel, mantendo moradores fixos usufruindo das comodidades dos serviços de hotelaria. Com o passar dos anos, o prédio, em função da acomodação no solo, acusou um sério problema estrutural, que acabou por condena-lo pelas autoridades de engenharia e defesa civil.
O Gironda não foi o primeiro e nem o último prédio a desaparecer da vida santista, mas, sem sombra de dúvida, sua extinção ficou marcada na história como a mais inusitada, a única implosão realizada na cidade de Santos.