A partir de abril de 1909, Santos viveria uma nova fase, impulsionada pelo sistema de transporte que virou símbolo do progresso da cidade.
Santos, quarta-feira, 28 de abril de 1909. O sol despontava com toda a sua energia esplandecente ao leste da cidade. Nem parecia um dia de semana comum na urbe santista, tamanha a sensação de alegria e júbilo que se testemunhava pelas ruas, praças e avenidas. De fato, era inegável que aquela quarta-feira se revelava um dia diferente, uma data histórica, um verdadeiro divisor de águas, o dia em que o principal meio de transporte da cidade se tornava autossuficiente e “incansável”. Os bondes, até então conduzidos pela resiliente força animal, passariam a ser impulsionados por uma energia invisível, e extremamente poderosa: a da eletricidade. Com isso, a paisagem do município haveria de sofrer grandes transformações, principalmente olfativas, haja vista que os laboriosos burrinhos, embora simpáticos e queridos pela população, não faziam a menor cerimônia ao depositarem seus excrementos em via pública.
Santos era a precursora paulista na implantação do sistema de transporte urbano sobre trilhos, inaugurando-o em outubro de 1871. O pioneiro do setor foi o empresário português Domingos Moutinho, que obteve junto à Câmara Municipal, após muitas discussões, a concessão para explorar o serviço. A primeira linha de “tramway” (via férrea de trilhos chatos), tracionada pela força de uma parelha de burros, ligava o Largo do Rosário (atual Praça Ruy Barbosa) à praia da Barra, tendo seu ponto final na altura da atual rua Oswaldo Cruz com a orla. Com o tempo, outros empreendedores se aventuraram no inovador ramo de negócio. Em 1875 entrava em cena a firma Emmerich & Ablas, responsável por implantar o primeiro trajeto até a vizinha São Vicente. Em 1889 foi a vez do português Mathias Costa que, em sociedade com o italiano João Éboli, decidiu criar uma rota específica para outra região da orla, cujo ponto final seria instalado junto ao boteco de um sujeito bonachão de nome “Gonzaga”.
A City e a eletrificação
Antes de 1880, Moutinho vendera seu negócio para a Companhia Melhoramentos da Cidade de Santos que, por sua vez, controlou as principais linhas da cidade até 1894, quando, em razão de dificuldades financeiras, acabou encampada pela Viação Paulista e, algum tempo depois, pela Ferrocarril Santista, firma do banqueiro e médico João Éboli (o ex-sócio de Mathias Costa), na época tido como um dos homens mais ricos da cidade.
Na virada dos séculos 19 para o 20, a capital paulista suplantava os pioneiros santistas, colocando em atividade os primeiros bondes elétricos do Estado. Diante do cenário, a Câmara de Santos passou a pressionar os concessionários, em especial a Ferrocarril, exigindo que fosse implantado rapidamente o sistema de tramway eletrificado na cidade. Éboli tentou atender a ânsia das autoridades e chegou a adquirir junto à Light & Power, de São Paulo, diversos equipamentos importados, ultramodernos, com o intuito de implantar em Santos a tão almejada energia elétrica. Assim, em fins de 1902, mandou instalar na sede de sua empresa, situada na Vila Mathias (atual garagem da CET), uma espécie de mini-usina movida a vapor de carvão.
Eletricidade garantida, o próximo passo seria promover a inauguração do sistema de bondes eletrificados, almejado para o ano seguinte. No entanto, os planos não vingaram em razão de dificuldades técnicas e de caixa. A empresa de Éboli ainda conseguiu instalar postes de iluminação elétrica em trechos das avenidas Ana Costa e Conselheiro Nébias (a Carril havia assinado um contrato para a exploração de iluminação pública), mas em nada avançou para o sistema de bondes. Desta feita, os burrinhos continuavam a imperar.
Sem motivação e tampouco fôlego financeiro para novos investimentos, os donos da Ferrocarril e seus acionistas, após muita análise, resolveram vender todo o patrimônio da empresa aos ingleses da “The City of Santos Improvments” pela astronômica cifra de 2.8000:000$000 (dois milhões e oitocentos contos de réis ou cerca de R$ 140 milhões, nos dias de hoje). Assim, a “City”, que já detinha outras concessões de serviços públicos na cidade (a distribuição de água encanada e de gás), passou a reinar, absoluta, no setor de transporte urbano na Ilha de São Vicente (ela já havia comprado a concessão de antigos exploradores do sistema). Depois de botar a papelada em ordem, os ingleses iniciaram uma revolução tecnológica na malha urbana santista.
De 1905 a 1909, a “City” dedicou-se a instalar o sistema eletrificado aéreo em quase todas as rotas de bondes da cidade. Foram cinco anos de trabalhos, lentos, que irritaram as autoridades e a população. Vez ou outra, os jornais da cidade davam espaços a artigos recheados de severas críticas à morosidade dos ingleses. Os santistas desejavam usufruir do moderno transporte que os paulistanos já utilizavam desde 1900.
A chegada, enfim, do bonde elétrico
Finalmente, em 11 de dezembro de 1908, chegavam pelo porto os primeiros bondes elétricos santistas, todos importados da Inglaterra. A carga atraiu uma “massa” de curiosos, que se aglomerou ao longo do cais para ver de perto a novidade. Em fevereiro de 1909, a empresa começou a troca dos trilhos da avenida Ana Costa para o modelo eletrificado. Os primeiros testes aconteceram em 3 de abril de 1909 e a inauguração oficial no dia 28, um dia resplandecente, de sol, coroado de êxito. Diversas autoridades estiveram presentes. Representando o governo de Estado estava o secretário de Agricultura, Antônio Candido Rodrigues.
Seis bondes foram colocados à disposição para a viagem inaugural, que se deu pelo ramal Santos-São Vicente, de nº 2, via praia. Saindo da Rua São Leopoldo, quase esquina com a Rua São Bento, a comitiva festiva, e “elétrica”, levou 48 minutos para percorrer todo o trajeto, que incluiu a Praça dos Andradas, Rua Amador Bueno, Senador Feijó, Rangel Pestana, Av. Ana Costa, praia do José Menino, Itararé e São Vicente, onde foram percorridas as ruas Frei Gaspar, Martim Afonso, Largo do Batista Pereira e Marques de São Vicente, onde estava o ponto final.
A partir daquele dia histórico, Santos cresceria em ritmo acelerado para os lados da orla praiana e se desenvolveria como nunca. O bonde elétrico daria novo sentido à paisagem e à vida da cidade, transformando-se num símbolo que até os dias de hoje orgulha os santistas, haja vista que a cidade ainda tem o privilégio de conviver com esses bravos exemplares do transporte que conduziram uma época de ouro, uma época que não volta mais.