Na primeira vez que os “Diabos Azuis” disputaram uma partida em solo brasileiro, na Vila Belmiro, o placar foi totalmente inesperado. Indignados, franceses disseram que foram enganados.
Santos, quarta-feira, dia 30 de julho de 1930. Estádio da Vila Belmiro. As arquibancadas do aguerrido alvinegro praiano estavam apinhadas de torcedores visivelmente entusiasmados por testemunharem um acontecimento marcante para o futebol nacional. Muita gente chegava da capital e do interior do Estado para ver de perto o grande jogo. O prefeito de Santos à época, José de Souza Dantas mandava encerrar o expediente às 14 horas. A seleção da França, temida e respeitada na Europa, disputava pela primeira vez em solo brasileiro uma partida (ainda que amistosa) depois de dar, precocemente, adeus à sua participação na primeira Copa do Mundo da história, disputada no Uruguai que, por incrível que pareça, seria vencida pelos donos da casa naquele mesmo dia 30, numa final disputada contra os arquirrivais argentinos, pelo placar de 4×2.
O torneio no Uruguai registrara ao todo 70 gols marcados, sendo que o primeiro deles, consequentemente o primeiro da história das Copas, fora anotado pelo francês Lucien Laurent, justamente um dos atletas que disputavam a partida histórica em Vila Belmiro. O adversário dos franceses era, obviamente, o time da casa. O alvinegro praiano ainda não gozava da fama global que alcançaria algumas décadas mais tarde, mas, em solo paulista, era conhecido como “o time dos 100 gols”, por conta da campanha de 1927, em que o ataque peixeiro simplesmente arrasava os adversários com placares elásticos. Só não foi campeão por ter sido flagrantemente prejudicado pela arbitragem no jogo final contra o Palestra Itália.
O Santos mantinha sua base de atletas desde então, com Athiê no gol; Aristhides e Meira na zaga; Osvaldo, Roberto e Alfredo na ligação com o meio campo; Omar e Camarão na meia cancha e o trio de ataque arrasador formado por Mário Seixas, Feitiço e Evangelista. A única grande perda havia sido Araken Patusca, que deixara o time no início do ano, para dar seu lugar ao baiano Mário Seixas. O técnico do Santos era o uruguaio Ramon Platero, dono de uma biografia curiosa. Ele fora o primeiro treinador da Seleção Brasileira de Futebol (1925) e chegou a treinar os times cariocas do Vasco e do Flamengo ao mesmo tempo (1922)!
O jogo
Os franceses, mordidos pela eliminação no Uruguai, tinham desembarcado havia três dias no porto de Santos para um breve descanso. Eles viajaram a bordo do transatlântico S.S. Duilio. Sabedores da presença da grande seleção estrangeira, a diretoria do Santos convidou-os a uma partida festiva, no que foi prontamente aceita pelo chefe da delegação da França. Jogo amplamente divulgado pelos principais jornais do país, não foi difícil lotar o modesto estádio do Santos, que se encheu de expectativa. A festa estava bonita. Na entrada ao campo, a equipe local empunhava a bandeira francesa, em claro sinal de amizade e respeito.
A França vinha com sua equipe principal ao campo (Thepot, Antoine, Mattler, Laurent, Dhene, Chantrel, Liberaly, Pinel, Machinot, Delfour e Villaplane – o técnico era Raoul Caudron). O juiz era Enéas Sgarzi, auxiliado por Panariello e Ascanio.
Iniciada a partida, às 16h40, os gauleses tomavam conta do jogo, com mais ousadia. O alvinegro estudava com calma a forma dos adversários jogarem. Athiê foi o jogador praiano mais acionado e mostrava sua categoria fazendo grandes defesas. Na primeira jogada perigosa, Laurent toma a bola de Camarão e passa para Pinel, que toca para Machinot. Este, ajusta sua posição e solta um “petardo” por cima da trave. O Santos tenta contra-atacar, mas Feitiço falha em duas oportunidades. A França revida pela esquerda. Delfour finta Osvaldo e só não fica cara a cara com o arqueiro santista porque Meira entra de carrinho para afastar o perigo. O Santos demorava a reagir, até que aos 16 minutos começou a tirar as “mangas de fora”.
Os “Diabos Azuis”, como eram chamados os franceses da seleção, continuavam tentando chutes de longe, mas sem êxito nos intentos. Os santistas controlavam melhor a bola no meio de campo e não davam muito espaço aos adversários. O ataque praiano não parecia estar num dia muito feliz. Até mesmo o grande Feitiço errava demais. Os franceses atuavam superiormente e a todo instante impunham ao goleiro santista trabalho dobrado. Os gauleses se empolgaram e partiram para o ataque sem cuidar da defesa. Resultado: Omar avançou pelo centro e cruzou. Feitiço apanha a bola à distância de três jardas da meta e bate forte, encaixando a meia altura do lado esquerdo de Thepot, que não foi feliz em sua tentativa de defesa: Santos 1 x 0.
O gol do Santos FC animou a equipe local. Dois minutos depois, Camarão avança pela direita e alonga um passe para Omar, que cruza na direção da área francesa. Feitiço prepara-se para pegar a bola com Mattler grudado em seu calcanhar. O zagueiro gaulês não teve êxito na marcação e o artilheiro praiano não perdoou, anotando o segundo gol com outro forte chute: 2 x 0 para o time da casa. A torcida estourou em vivas para a equipe brasileira. Os franceses se entreolhavam, não compreendendo o que acontecia.
Antes de ser retomado o segundo tempo da partida, Feitiço ofereceu aos visitantes um cartão de prata com os seguintes dizeres: “Aos Diabos Azuis – O Santos F.C. – Brasil – 30 de julho de 1930”.
Retomada a partida os jogadores do time europeu pareceram determinados a virar o placar. Afinal de contas, eles formavam a seleção de um país forte no esporte e não deveriam perder para uma simples equipe local. A pressão era forte. Pinel chuta de longe e a bola passa rente à trave. Em jogada posterior, Machinot avança rápido e alonga para Delfour que, dentro da área, chuta rasteiro, mas Athiê defende. O gol europeu estava ficando maduro. Os “diabos azuis” atacavam pela esquera e Delfour sofre falta, logo batida para Machinot, que avança e devolve ao companheiro. Delfour chuta forte no alto, sem chance para o arqueiro santista. Gol da França, que diminui o placar: 2×1 para o time da casa.
Os santistas, ao contrário do que supunham os franceses, não sentiram o baque e partiram para cima da meta europeia. Mário Seixas, recebendo um passe de Evan, do centro da grande área adversária, bate firme. A bola é parcialmente defendida por Thepot, que se atrapalha com Antoaine, indo parar no fundo das redes: Santos 3×1.
Dali por diante, os franceses pareciam terem tomado um banho de água fria, o que facilitou a vida do artilheiro Feitiço, que ainda anotou mais dois, sendo um de cabeça. Mário Seixas jogou a “pá de cal”, marcando o sexto tento contra os visitantes, totalizando um placar histórico: 6×1 para o Santos FC.
“Fomos enganados”, reclamaram os franceses
Quando o juiz Enéas Sgarzi apitou o fim da partida, a delegação francesa, desprovida de senso desportivo, tratou de reclamar junto aos diretores do Santos, berrando que haviam sido traídos, enganados. “Vocês disseram que ia jogar com o seu time, o time do Santos, e botaram contra nós a Seleção Brasileira! Não tem um jogador do Santos nesse time! É tudo da Seleção Brasileira! Isso foi uma deslealdade!”.
O então presidente do time peixeiro, Guilherme Gonçalves, retrucou: “O que os senhores estão dizendo?”. Os revoltosos repetiram a acusação no idioma francês, e o mandatário do alvinegro praiano fez, então, uma proposta: “Os senhores, então, tomem banho e, em seguida, irei provar-lhes o erro que estão cometendo”.
Levando os dirigentes franceses até a sede do clube, que ficava na rua Itororó, 31, o presidente mostrou uma foto, em tamanho natural, dos atletas que haviam acabado de disputar a histórica partida. Falando perfeitamente o francês, Guilherme Gonçalves comparava as imagens do grande retrato. “Estão vendo aquele ali, na foto? Pois é, é o Athiê. E estão vendo os outros, ao seu lado? São seus companheiros, o Omar, Camarão, Feitiço, Mário Seixas e Evangelista”.
Os gauleses ficaram mudos. Em suas fisionomias estampava-se a vontade de procurar a porta mais próxima para fugir. Ficaram assim, aparvalhados por alguns segundos. Por fim, voltou-se o cavalheirismo que caracterizam os habitantes da França. Ao final, todos se reuniram e brindaram à grande partida. Pediram a bola do jogo, autografada pelos valentes atletas do Santos, objeto valioso este que até os dias de hoje faz parte do acervo da Associação Francesa de Futebol, seleção esta que hoje manda no mundo do futebol.