Velozes e elegantes ditavam o charme do prado santista, que existiu entre 1919 e 1930 no bairro da Aparecida
Santos, domingo, 27 de julho de 1919. Em meio ao burburinho produzido pela multidão, um tiro ecoou no ar. Num átimo de segundo, quatro cavalos dispararam pela pista em busca da glória para os seus jóqueis, que sonhavam escrever o nome na história do turfe, como o pioneiro vencedor do páreo inaugural do hipódromo da cidade praiana paulista. Aquela era uma corrida de 1.000 metros, a mais rápida do dia, indicada aos animais mais jovens e vigorosos, assim como aos condutores mais arrojados. Na carreira, a disputa se deu entre duas éguas (Ditosa e Pastora) e dois corcéis (Corta Vento e Ímpeto), com ligeira vantagem para as “fêmeas”. Nos trotes iniciais, Ímpeto acabou fazendo jus ao nome, precipitando-se na tentativa de tomar à frente. Rateando logo após a saída, foi ultrapassado pelos concorrentes. Corta Vento, que havia largado na frente, abriu vácuo e deu passagem para Ditosa e Pastora que, por sinal, conquistaram larga dianteira nos últimos metros. O povo delirava nas beiradas do prado, assim como na imensa arquibancada do hipódromo santista, devidamente enfeitada visando a recepção especial às autoridades do Estado e da cidade, na suntuosa inauguração da pista oficial do Jockey Clube de Santos. Ao final de um minuto e dez segundos (1’10”), o cavaleiro Lydio de Sousa, condutor da égua Pastora, de cor castanha e quatro anos de idade, cruzava o “disco final”, sagrando-se o grande campeão do dia. Festa na arquibancada e principalmente entre os convidados dos senhores Alves e Prado, proprietários do animal, além de, obviamente, daqueles que apostaram na vitória de Pastora. Ditosa, montada por Charles Hougton, chegaria em segundo lugar, à frente de Corta Vento (3º) e Ímpeto (4º).
A festa foi completa naquele domingo, apresentando oito páreos de corrida, reunindo cavalos e jóqueis brasileiros e britânicos. A expectativa pela abertura do Hipódromo de Santos foi grande em todo o Estado de São Paulo, uma vez que a cidade praiana e portuária passava a oferecer uma atividade que ganhava corpo no país desde o final do século 19. Com o fortalecimento do turismo e dos negócios de exportação na praça santista, a criação de um Jockey Clube foi determinante para atender aos anseios de entretenimento da elite social local e da paulista que descia a Serra do Mar.
Ponta da Praia
O local escolhido para a instalação do prado (pista de corrida de cavalos) santista foi a Ponta da Praia (no trecho do atual bairro da Aparecida, entre as ruas Pedro Lessa, Alexandre Martins, Pirajá da Silva e Epitácio Pessoa). Numa área de aproximadamente 231 mil metros quadrados, o complexo do hipódromo apresentava uma pista oval de quase 1.700 metros de extensão, com entrada pela rua Alexandre Martins.
Foram necessários quase dois anos para a conclusão das obras do espaço e a expectativa de sua inauguração foi cercada de entusiasmo. O programa oficial dizia que a fita seria cortada pelo próprio presidente do Estado de São Paulo (cargo equivalente ao de governador), dr. Altino Arantes. Porém, o chefe de estado paulista resolveu enviar um representante em seu lugar: o secretário de Agricultura, dr. Cândido Mota.
Entusiasmo, apostas e elegantes mulheres em cena
O diretor presidente do Jockey Clube de Santos, Antônio de Assumpção, certo do sucesso da inauguração, formalizou um acordo com a São Paulo Railway, para que a empresa disponibilizasse um trem especial visando o transporte dos convidados e entusiastas do turfe moradores da capital (este trem operou às 9h45, saindo da capital e regressando às 17h45, ao custo de 6$500 por passageiro, ida e volta – cerca de R$ 160,00 nos dias de hoje. Aliás, entre os apaixonados pelo esporte, não se falava outra coisa que não na abertura do prado santista.
Nos dias anteriores à inauguração, Santos foi tomada por diversos “bookmakers” (pessoas que operam com apostas em corridas de cavalo), oferecendo “poules” (bilhetes de apostas) com todas as situações e páreos, desde palpites nos franco favoritos, que ofertavam quase nada de premiação, até nos azarões, cujas cotações chegavam a pagar 100 para cada 10 apostado. Os favoritos para a festa inaugural eram os cavalos Ditosa, Bohemia, Veliz, Poker, Kevi-Kevi, Gorizia, Wolvey, Scutari, Bem-Linton e Brasil.
Chegado o dia do grande acontecimento, quem acabou dando o tom da graça foram as mulheres, exaltadas por toda a imprensa paulista. O jornal A Tribuna de Santos, por exemplo, evidenciou em sua reportagem de cobertura, publicada na edição de segunda-feira, 28 de julho: “As duas arquibancadas estavam repletas de senhoras e graciosas senhoritas, que emprestaram a este festival, com a sua graça e com o donaire do seu porte, um encanto, um lindo espetáculo. Incontestavelmente, o sexo feminino predominou ali, comparecendo o que havia de mais chic e mais seleto nas sociedades santista e paulistana.Rigorosamente vestidas, ostentando lindas e variadas toilettes de cores cambiantes, agradando sobremaneira à vista da enorme assistência de aficionados do turfe”.
De fato, foi um dia inesquecível para a cidade santista.
Duração efêmera
O Hipódromo de Santos funcionou soberbamente por toda a década de 1920, justamente ao longo do faustoso período econômico lastreado pela riqueza advinda do comércio de café pelo porto. Sua decadência veio justamente após a crise internacional provocada pela quebra da Bolsa de Nova Iorque (1929), conhecida como “A Grande Depressão”, que atingiu em cheio o principal “commodity” brasileiro. Diante do esvaziamento da frequência, em razão de haver menos pessoas dispostas a arriscarem seu dinheiro em apostas de cavalos, o prado santista teve de ser fechado em 1930, ano que ficaria marcado ainda pela revolução que derrubaria o presidente Washington Luís e levaria ao poder Getúlio Vargas.
Com o término das corridas no hipódromo, o Jockey Clube de Santos manteve apenas atividades sociais em sua belíssima sede, situada na esquina da rua Marcílio Dias com a avenida Presidente Wilson, no Gonzaga (atual prédio da Caixa Econômica Federal). Entretanto, isso ocorreria até 1945, ano que marcou o encerramento completo de suas operações.
O terreno do hipódromo, abandonado desde seu fechamento em 1930, acabou sendo incorporado ao Patrimônio da União e transferido, em 1966, para o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) que, por sua vez, aproveitou sua maior parte para abrigar a primeira experiência de construção social do Banco Nacional de Habitação (BNH), criado em 1967. Foi, então, que surgia o Conjunto Habitacional Humberto de Alencar Castelo Branco (mais tarde chamado popularmente de BNH da Aparecida).
Na parte oposta do terreno, o INPS ergueu seu complexo de operações (atualmente ocupado pela Previdência Social e por órgãos de saúde do Estado de São Paulo). O restante, no trecho entre as ruas Guaiaó e Vergueiro Steidel, onde haviam campos de futebol de várzea, foi vendido para a iniciativa privada, que lá ergueu, em 2000, um shopping (Praiamar).
Hoje, 100 anos após a grande festa de inauguração do Hipódromo de Santos, só nos resta imaginar que, no meio da urbe condensada do bairro da Aparecida, um dia houve um prado onde elegantes damas desfilavam aos finais de semana, famílias se divertiam e habilidosos jóqueis “voavam” com seus velozes corcéis, ao sabor do vento e dos gritos entusiasmados de centenas de apaixonados por corridas de cavalos.