Cidade foi a terceira brasileira a possuir um cinema sonoro, depois de São Paulo e Rio de Janeiro
Santos, 28 de setembro de 1929. Os santistas estavam ansiosos, em polvorosa. Os jornais dos dias anteriores alardeavam a novidade em páginas inteiras, compostas em cores vivas, letras garrafais. A propaganda vistosa atraiu uma verdadeira multidão para a frente do Cine Teatro Coliseu. As pessoas se acotovelavam diante da bilheteria tentando adquirir o tão precioso ingresso para uma das duas sessões de estreia do que viria a ser uma das maiores atrações já vistas na cidade. Ou melhor dizendo, já ouvidas. Os santistas podiam se orgulhar por estarem entre os primeiros brasileiros a testemunharem a maior metamorfose da sétima arte, o rompimento de uma fronteira que parecia intransponível, a barreira do som. Sim, os poucos mais de mil sortudos que estiveram no majestoso cineteatro naquele início de noite do dia 28 de setembro, puderam ver, e ouvir, em alto e bom som, o primeiro filme falado exibido em Santos.
O cinema falado no Brasil
A grande novidade havia desembarcado no início daquele ano no Brasil. Rio e São Paulo disputavam a primazia de inaugurar o sistema. Os paulistas foram mais ligeiros, graças ao apoio da norte-americana Paramount, que montou uma moderna sala na avenida Brigadeiro Luís Antônio, 79 (Cine Paramount) e onde foi exibida em 13 de abril a película “Alta Traição” (The Patriot – 1h53 – direção de Ernst Lubitsch, com Emil Jannings, Florence Vidor, Vera Voronina, Lewis Stone e Neil Hamilton). Em maio, a sala ofereceria ao público o filme “Anjo Pecador” (The Shopworn Angel – 82 minutos – direção de Richard Wallace, com Gary Cooper, Nancy Carroll, Paul Lucas e Roscoe Karms). Nas semanas seguintes, outras películas foram exibidas, tornando a sala paulistana uma referência para o sistema sonoro. O sucesso do cinema falado na capital paulista se espalhou pelo país. No Rio, os cariocas corriam contra o tempo para se deleitar da novidade. Após muitas especulações de qual seria a primeira fita, a escolha acabou recaindo sobre “Broadway Melody” (110 minutos, direção de Harry Beaumont, com Charles King, Anita Page, Bessie Love, Jed Prouty e Kenneth Thomson), considerada então a mais perfeita película naqueles primórdios da sonorização cinematográfica, fazendo uso do revolucionário sistema movietone (Broadway Melody seria o vencedor do Oscar de Melhor Filme, na segunda edição da história do prêmio, em 1930, o primeiro vencedor da era do cinema falado). Os cariocas puderam debutar, enfim, no dia 20 de junho de 1929, no Palácio-Teatro, com a ilustre presença do então presidente da República, Washington Luís.
Encanto no Coliseu
As páginas dedicadas à cultura em jornais e revistas não falavam de outra coisa que não da magia do cinema falado. Os santistas contavam as horas para poder experimentar a novidade. O Coliseu, de propriedade da empresa Cine Teatral, de Manoel Fins Freixo, estava se preparando desde abril para o grande momento. Duas semanas antes da inauguração do novo sistema, o público foi convidado para ver as caixas dos aparelhos movietone serem abertas. A estreia estava marcada para um sábado, 28 de setembro. E a película trazida era a mesma que havia sacudido a capital federal, tido como o melhor filme falado vindo dos Estados Unidos, “Broadway Melody”, fita que retratava os romances vividos pelas estrelas dos musicais do famoso bairro teatral de Nova Iorque. Na história, Queenie (Anita Page) e Hank Mahoney (Bessie Love) são duas irmãs que se apaixonavam pelo mesmo homem, Eddie Kearns (Charles King).
A propaganda de Broadway Melody chamava a atenção pela quantidade de palavras de exaltação e informações: “Todo Falado! Todo Cantado! Todo Musicado! Todo Bailado!”. Produzido pela Metro Goldwyn Mayer, não eram poucos os predicados do trabalho, que reuniu uma orquestra de 50 músicos, 36 cantores e 40 bailarinas.
A primeira sessão do Coliseu aconteceu às 19h30. Na plateia, segundo os jornais da época, estavam presentes os mais representativos elementos sociais de Santos. O aspecto do luxuoso e vasto teatro, em ambas as sessões, era imponente, achando-se repletas todas as áreas. Antes do filme principal, foi exibido uma palestra com o cônsul brasileiro em Nova Iorque, Sebastião Sampaio, apresentando ao público a marca cinematográfica “Radio Corporation”. Em seguida a sala escureceu, para delírio dos presentes. A projeção luminosa, então, encheu de formas semoventes a tela branca. Em seguida, uma estranha música flutuou no ar, e as vozes dos atores que surgiam no filme começavam a fazer ouvir-se, reproduzindo o sotaque, as inflexões individuais, a maneira arrastada ou rápida da pronúncia das palavras de cada um. Porém, a película era toda falada em inglês, e a maior parte da plateia não entendia “bulhufas”. Mas, afinal, quem se importava? O encantamento era pela música, pelo som que vinha, de fato, da tela, e não dos músicos que normalmente tocavam à frente dos teatros, usual até então nos filmes mudos.
As figuras na tela adquiriam um relevo extraordinário. Cantavam, choravam, soluçavam, gargalhavam, batiam palmas, assobiavam… Era possível ouvir os passos que se aproximavam ou se afastavam, as portas que se abriam e se fechavam, o arrastar de cadeiras e até o estalar dos lábios que se beijavam… Em Broadway Melody, que os santistas assistiram verdadeiramente encantados, pouco faltou para dar-lhes a ilusão do velho teatro “ao vivo”, pobre soberano que parecia estar sendo destronado.
Esta questão chegou a ser discutida em várias cidades. Em São Paulo, o famoso crítico de teatro, Oswaldo Viana, chegou a proferir palestras sobre um programa de ações que começavam a ser desenvolvidas no Brasil, para fazer do filme falado um condutor da cultura brasileira. Felizmente o teatro sobreviveu, mas passou a dividir com o cinema falado, uma radiosa realidade. Uma realidade que os santistas puderam ter o privilégio de degustar nos primeiros passos.