Cidade viveu a pandemia entre outubro de dezembro de 1918, contabilizando mais de 800 mortos. Escolas e comércio foram fechados e protocolos de higiene adotados. Mas Santos era uma cidade acostumada às agruras desta natureza e escapou bravamente de um destino pior
Santos, 12 de outubro de 1918. A cidade santista estava aflita. Os últimos vapores chegados do Rio de Janeiro traziam a bordo diversos tripulantes e passageiros atacados pela temível gripe que assolava o mundo, a que carregava o “selo” espanhol por conta da notoriedade explicitada por aquele país ibérico. Notícias vindas do exterior davam conta de que o agressivo vírus “influenza” já extinguia mais vidas humanas do que a Grande Guerra (1914-1918) travada na Europa, África e Ásia. Aliás, muita gente presumia que a doença era algo criado como arma de guerra (biológica). Outros tantos, que se tratava da ira de Deus, manifestada contra sua criação (o homem) em razão de sua latente ignorância, especialmente por insistir em travar guerras insanas, estúpidas. Contudo, sem importar-se com a imensa variante de teses, a gripe era, de fato, uma dura realidade e precisava ser combatida.
O influenza espanhol “desembarcou” no Brasil em setembro de 1918, pelo porto do Recife. Os hospedeiros eram tripulantes e passageiros do vapor inglês Demerara, que zarpara de Lisboa semanas antes. Seu destino era o Rio de Janeiro, então capital do país. Antes, ainda faria uma escala em Salvador, na Bahia, onde acabou-se depositando o vírus mortal. As autoridades brasileiras ouviam com descaso as notícias trazidas de Portugal, acerca dos sofrimentos provocados pela pandemia na Europa. Destarte, não criou protocolos de vigilância, permitindo assim a chegada do mal que aniquilava vidas humanas em todos os cantos do globo.
Menos de duas semanas após a chegada do Demerara ao Rio de Janeiro, o vírus se instalou e espalhou-se pelas principais cidades do Nordeste e na terra carioca. Chegar ao litoral paulista, então, era algo inevitável, como a própria imprensa local já concluía em suas manchetes. “A hespanhola fatalmente grassará em Santos”, estampava, por exemplo, o jornal Gazeta do Povo. O problema é que as autoridades sanitárias brasileiras alegavam que os “riscos não eram de se amedrontar”, como dissera à mídia o dr. Carlos Seidl, diretor geral de Saúde Pública do Brasil. Ele estava, obviamente, muito enganado.
A doença se alastrou rapidamente, e com uma agressividade brutal. O Rio de Janeiro, por exemplo, registrou mais de 14 mil mortos em três meses. A capital bandeirante, outros 5,3 mil.
Santos enfrentando bravamente mais uma epidemia
Se existia uma população acostumada a enfrentar problemas endêmicos de saúde, esta era a de Santos. Desde meados do século 19, os santistas encaravam epidemias das mais variadas naturezas: coqueluche, febre amarela, peste bubônica, varíola, tuberculose, entre outros, responsáveis pela morte de mais de 30 mil pessoas só no período de 1880 a 1900 (vinte anos). O pior ano na vida santense havia sido 1892, quando vieram a óbito 4.173 pessoas, o correspondente a 15% da população da cidade na época (que equivaleria a cerca de 65 mil mortos nos dias de hoje). Destes, 1.742 haviam falecido com o diagnóstico de febre amarela e 823 de varíola, além de 130 com tuberculose. Porém, na conta havia viajantes de passagem pela cidade, especialmente os tripulantes de navios que vinham de fora do país.
Talvez por ter sofrido tanto diante outras epidemias, a cidade santista inicialmente não levou muito a sério o influenza espanhol, até porque ele fora encarado inicialmente, pelo governo central, como uma gripe comum. Mas o preço pelo descaso acabou sendo alto. Em apenas uma semana, o número de doentes já chegava a 10 mil em Santos e arredores. As autoridades sanitárias locais contabilizavam uma média de 2 mil novos infectados por dia, o que deixou todos em alerta máximo. No dia 21, quando os serviços da cidade estavam desorganizados, tendo cessado os trabalhos das Companhia Docas e das oficinas, é que se providenciou o fechamento de escolas e casas de diversões, além de parte substancial do comércio.
O número de óbitos causados pela infecção espanhola começou com três no dia 18, subindo a dez no dia 22, aumentando sempre em cada 24 horas, para chegar a 34 no dia 28, atingindo a culminância com a cifra dolorosa de 61, no último dia do mês de outubro. A maior parte das vítimas eram oriundas das áreas populares, periféricas, como no Macuco, o Campo Grande e os morros.
Os bravos soldados da saúde
Tão logo os primeiros casos foram sendo registrados, o médico Pereira da Cunha, então delegado substituto de Saúde de Santos, tratou de definir as estratégias de combate à nova e desconhecida epidemia (já tornada pandemia), a começar pela calma. E era preciso, de fato, manter a serenidade. As experiências noticiadas da capital davam conta da ineficiência das ações profiláticas adotadas no Rio de Janeiro. Ainda assim, eram exercidas, principalmente nos navios que adentravam ao Porto de Santos, de onde vinham muitos infectados.
Na cidade santista, de 14 a 31 de outubro, só na Santa Casa, principal hospital da região, foram internadas 740 pessoas, e outras 682 em novembro. Na Beneficência Portuguesa a situação não era diferente, até que chegou um momento em que não havia mais leitos disponíveis, fazendo com que diversas entidades cedessem seus espaços para abrigar os infectados, como o caso do Centro Espanhol de Santos, que cedeu às autoridades sanitárias seu salão de bilhar e teatro para a instalação de enfermarias.
Médicos e enfermeiras eram recrutados em todos os lados. Muitos ficaram doentes, combalidos na guerra viral, como os doutores Aurélio de Carvalho, Guedes Coelho e Horácio Brandão. No bairro do Campo Grande, o comandante da guerra era o médico poeta José Martins Fontes, que se desdobrava para atender, além do posto médico do bairro, a Sociedade Beneficente dos Empregados da Cia Docas, onde eram recebidos os doentes do Macuco. Ao seu lado trabalhava arduamente o médico Ulysses Barbuda.
Muitos profissionais da saúde vieram de São Paulo para socorrer os santistas, apesar de na capital paulista a gripe também bater impiedosa, provocando ao final 5.331 óbitos.
Estima-se que, ao final da epidemia em Santos, terminada em dezembro, a gripe espanhola tenha atingido 90% da população local, deixando um triste rastro de 853 vítimas fatais, elevando a taxa de mortalidade de Santos a 26 por mil habitantes, cifra há muito tempo não atingida, uma vez que a cidade tinha se livrado, por conta do projeto de saneamento capitaneado por Saturnino de Brito, das condições sanitárias que propiciavam as outras moléstias epidêmicas.
No ano seguinte, diante de todas as medidas preventivas, Santos voltou à normalidade. As escolas e o comércio reabriram, e o influenza espanhol se tornara apenas uma triste página na história de um povo guerreiro, que sempre soube lutar e reerguer-se diante das provas que o destino apresenta. E não será diferente agora!