Há 50 anos, em fevereiro de 1971, circulava pela última vez um bonde em Santos como transporte coletivo, marcando o fim de uma era praticamente centenária
Santos, 28 de fevereiro de 1971. Passava da uma hora da madrugada daquele novo dia de domingo, o último da temporada de Verão 1970/71, fim das férias escolares. A cidade já apresentava uma certa leveza populacional, uma vez que a maior parte dos turistas e veranistas já havia regressado pra casa, aliviando o trânsito tanto na Via Anchieta como nas vias santistas. Entretanto, a leveza do ponto de vista do adensamento humano não se traduzia no espírito de muitos deles. Aquela temporada, que havia começado a todo pique, a reboque da festa pelo tricampeonato mundial de futebol, ganho pela “Seleção Canarinho” no México, em 21 de junho, não terminava com tanta exultação. As águas de “fevereiro”, antecipando as mais terríveis de “março” (que seriam poeticamente lembradas na canção que Tom Jobim criaria no ano seguinte, em 1972), se abateram cruelmente na Baixada Santista, derrubando casas nos morros e desabrigando pessoas, causando transtornos em vários bairros das cidades da região e até encalhando um navio (O Recreio) nas areias da Ponta da Praia.
Assim, às milhares de gotas de chuva que caíram sobre Santos naquela reta final de fevereiro de 1971 se somaram, então, às lágrimas dos que haviam sido diretamente afetados pela força da natureza. E, no meio deste caldeirão de emoções fortes, outras lágrimas, estas solitárias, vertiam dos olhos marejados e tristes do motorneiro e do cobrador do bonde prefixo 258, linha 42 que, naquela madrugada de domingo, conduziam o fiel companheiro em sua última jornada, de volta à garagem da SMTC (Serviço Municipal de Transporte Coletivo), de onde nunca mais sairia para cumprir seu papel. Descerrava-se, assim, as cortinas de uma história que, por questão de oito meses, não completaria 100 anos: o fim da Era dos Bondes como transporte coletivo urbano.
Cidade dividida
A decisão pelo fim dos bondes dividia os santistas. Enquanto parte da população se recusava a acreditar que o governo municipal tivesse coragem de pôr fim num sistema que atendera eficientemente a cidade por décadas e décadas, sendo, inclusive, um fator preponderante para o seu desenvolvimento, uma outra parte enxergava o meio de transporte como algo ultrapassado e elemento impeditivo de progresso. “A cidade entrará numa nova época de transportes, sem trilhos nas vias públicas, sem os cabos aéreos e sem transtornos para o trânsito. Os ônibus diesel, que estão em circulação, substituem com vantagem os elétricos, superados no tempo e no espaço. Para os bondes só existe um local: o Museu!”, dissera para a imprensa um alto comandante do SMTC, reforçando a decisão governamental pela extinção do serviço. “Santos nunca mais terá serviço de transporte coletivo como no tempo da Cia City. Se os bondes ficaram superados, a culpa é do SMTC, que promoveu campanha de desmoralização contra dos elétricos, deixando de conservar a via permanente e retirando de circulação, para desmontá-los, os melhores bondes que possuía”, rebateu um velho motorneiro da linha 17, que se aposentara de seus serviços alguns anos antes de 1971. Para ambos os argumentos havia defensores e críticos.
Uma história quase centenária
A história dos bondes em Santos começou no longínquo mês de abril de 1870, quando o empresário português Domingos Moutinho solicitou junto à Câmara Municipal concessão para a criação e exploração de serviço de transporte coletivo sobre trilhos. A primeira linha, então, depois de um bom tempo gasto com as obras de instalação dos ramais férreos, foi inaugurada em outubro de 1871, ligando o Largo do Rosário (atual Praça Ruy Barbosa) à Praia da Barra (na altura da avenida da orla com a rua Osvaldo Cruz). Importante ressaltar que esses primeiros bondes eram tracionados por força animal (dois muares – ou burros). E assim foi até 1909, quando Santos, finalmente, conseguia instalar seus primeiros bondes movidos a eletricidade, já na época da concessionária inglesa “The City of Santos Improvments Ltd.”, que detinha o sistema desde 1881.
Daí em diante, os bondes passaram a ter um papel fundamental para o desenvolvimento urbano local, uma vez que seus trilhos possibilitavam a ocupação sistemática dos bairros que iam surgindo ao longo das décadas, principalmente para os lados da orla marítima. Até fins dos anos 1930, os bondes reinavam soberanos pelas ruas santistas. Para se ter uma ideia, nesta época, a City (como o povo chamava carinhosamente a empresa inglesa), mantinha 220 carros em circulação, tornando Santos a cidade com um dos melhores sistemas do Brasil e a maior quilometragem “per capita” do país. Nos anos 1940, em decorrência da Segunda Grande Guerra Mundial na Europa, a situação começou a decair. No final daquela década, a quantidade de carros tinha caído pela metade. Ah, importante dizer que os burrinhos haviam se aposentado em 1916. Depois disso, em circulação, apenas bondes elétricos.
Em 1950, já próximo do término do contrato de concessão, que se daria em 14 de janeiro do ano seguinte, a City informou a Prefeitura que sairia de cena, fato que gerou grande preocupação, uma vez que os bondes ainda eram tidos como o grande transporte popular, não apenas pelo valor de sua tarifa, mas também por ter a capacidade de chegar a bairros onde os veículos sobre rodas, a diesel, ainda não penetravam, por conta de ruas descalçadas ou em péssimo estado de conservação. Desta forma, foi solicitada à City que não interrompesse o funcionamento das linhas até que a Prefeitura encontrasse uma solução para o impasse. Porém, a decisão dos ingleses já havia sido tomada e a empresa, de fato, abandonou o serviço e uma história de 70 anos de atuação no transporte sobre trilhos.
Criação da SMTC
Sem muita saída, em 11 de janeiro de 1951, as autoridades santistas nomearam uma Comissão Especial para estudar a melhor forma de transferência do serviço à municipalidade. Em 18 de dezembro fora aprovado o projeto de lei nº 5/51, que se transformou na Lei nº 1.297, de 20 de dezembro de 1951, criando o Serviço Municipal de Transportes Coletivos (SMTC), como autarquia municipal.
Decadência e fim
Os anos 1960 ficaram marcados como o período da decadência definitiva para os bondes santistas. O maior inimigo dos carris naqueles anos eram os trólebus que, em 1963, começaram a rodar na cidade, mostrando-se mais eficientes e práticos. Em 1964, todas as linhas que faziam o trajeto Santos-São Vicente, via praia, inclusive a linha 2, a primeira elétrica inaugurada na cidade, em 1909, foram extintas. Em junho de 1966 foi a vez da desativação do popular bonde 1, o Santos-São Vicente-Via Matadouro. Desta forma, uma a uma, as linhas foram desaparecendo, até a fatídica madrugada de 28 de fevereiro de 1971, que marcou a última viagem do bonde prefixo 258, linha 42, o sobrevivente até então de uma era repleta de histórias e orgulhos. Depois disso, apenas uma experiência de volta em 1984, como bonde turístico, no Embaré e em 2000, concretizando a profecia do alto funcionário da SMTC em 1971. Os bondes viraram “peças de Museu”. Mas, para nossa sorte, um museu vivo, que nos orgulha de ver.