Caso aconteceu em 14 de junho de 1930, sendo a primeira ocorrência do gênero na história de Santos. Após este fato, uma série de medidas foram tomadas, como a criação de um serviço especializado de salvamento marítimo. Logo depois, surgiram os Postos de Salvamento, uma doação da sociedade santista por meio do Rotary Clube de Santos
Pesquisa e texto: Capitão PM Paulo Sérgio dos Santos
Edição: Sergio Willians
Era uma segunda-feira de um tempo chuvoso em Santos, dia 14 de julho de 1930. Entretanto, no quartel do Corpo de Bombeiros Municipal, conhecido como “Castelinho” (atualmente sede da Câmara Municipal), as rotinas eram normalmente desenvolvidas pelas equipes de serviço. A única novidade, até então, tinha sido o cancelamento, em virtude da ocorrência de chuvas e ventos, de um concerto que a Banda de Música Regimental dos Bombeiros faria na Praça Mauá. O mau tempo seria, enfim, o prenúncio de uma tragédia que abalaria a cidade.
Às 11h45 o telefone do quartel tocou. Era uma chamada urgente do Sr. Joaquim Silveira, funcionário do Hotel Internacional, estabelecimento situado na faixa de areia da praia do José Menino, bem em frente à Ilha Urubuqueçaba. Joaquim parecia nervoso e informava que havia dois homens gritando por socorro na ilha. Um deles era hóspede do próprio hotel, Américo De Chiara, que estava acompanhado de um amigo santista, Jorge Hoffmann. Eles haviam aproveitado a maré baixa para caminharem até a ilha, onde entraram, mas depois não conseguiram regressar, uma vez que a maré subira repentinamente. A água já ocupava todo o caminho pelo qual vieram. Além disso, o mar estava muito agitado, apresentando ondas altas e fortes correntes. Apesar do medo, ambos tentaram nadar até a praia, mas sem sucesso. Os dois acabaram sendo arremessados pelas ondas para as rochas da costeira da ilha, o que custou-lhes vários ferimentos por todo o corpo. A única alternativa que eles tinham, naquela circunstância, era permanecer na ilha e gritar por ajuda.
O bombeiro atendente do quartel, depois de ouvir o relato do funcionário do hotel, prontamente acionou o alarme de ocorrência, o que, de certa forma, era algo rotineiro no quartel. No entanto, aquele tipo de ocorrência não era corriqueiro; não fazia parte dos atendimento comuns do dia a dia. Aquele era um caso de salvamento marítimo com duas vítimas, algo totalmente inusitado. De certa forma, aquele era um trabalho para a Polícia Marítima que, por decreto, era quem tinha ascensão sobre o serviço de salvamento marítimo, desde 1926, executado por “remadores”. Ocorre que o serviço era falho e sofria duras críticas. Por isso, o Corpo de Bombeiros era mais confiável e acionado com mais frequência para casos como aquele.
Sem muito discutir o compromisso das tarefas, o comando do Corpo de Bombeiros rapidamente convocou uma guarnição composta por quatro soldados (Manoel Antônio Leite, Alberto Alves Albano, Luiz de Braga Lima e Constantino Corrêa) e o sargento-ajudante José Protásio Neves, que estava no comando, para atender a ocorrência. Para isso, eles se deslocaram o mais rápido possível com o auto-caminhão Ford pelos cerca de 6km de distância existentes entre o quartel e a praia do José Menino.
Quando finalmente chegaram ao local da ocorrência, os bombeiros avistaram o mar muito agitado. As ondas invadiam a faixa de areia e um bom trecho da avenida da orla santista. Ainda assim, mesmo longe, era possível ouvir os gritos de socorro que saíam da ilha, gritos que, além de levar muitos curiosos para o local, que queriam ver o que estava acontecendo, impulsionaram três dos valorosos bombeiros a enfrentarem o mar e seus perigos. Esta foi a última vez que o jovem bombeiro nº 64, Constantino Corrêa, seria visto com vida!
Na praia do José Menino as pessoas se aglomeram, estavam angustiadas. Depois de um certo tempo, todos puderam testemunhar que um dos três soldados retornava do mar exausto, praticamente inconsciente. Esse era o Sargento Protásio, que não conseguiu vencer as ondas e acabou socorrido pela equipe do hospital Santa Casa de Santos. Ele chegou a ficar internado por um dia, depois dessa ação.
Da praia, as pessoas conseguiram ver, no entanto, que um dos jovens bombeiros, Alberto Alves Albano, a muito custo, conseguiu chegar à ilha. Porém, ainda que tivesse sucesso no caminho de ida, ele não conseguiu regressar com as duas vítimas à praia. Percebeu que precisava de apoio! Outra coisa que notou foi que não tinha visto mais o seu companheiro Constantino, que mergulhara junto com ele na arrebentação da maré, junto à areia da praia!
Naquele intervalo de tempo, outras equipes dos bombeiros foram enviadas ao José Menino, sob o comando do 2º Tenente Manoel dos Santos. A missão era apoiar o grupamento que largou na frente para salvar as vítimas da ilha. O mar não dava trégua, muito menos o tempo. Apesar de todos os esforços, eles permaneceram nas tentativas até às 23h45, mas não obtiveram sucesso para concluir a missão. Não havia mais jeito. Os dois hóspedes do Internacional e o bombeiro Albano ficariam na ilha durante a noite. Mas uma pergunta pairava no ar: Onde estaria Constantino? Para os bombeiros na praia, ele poderia estar junto com Albano. Para o pessoal preso na ilha, ele poderia ter voltado à praia.
No dia seguinte, eram 5h30 quando os soldados do Corpo de Bombeiros regressaram para a ocorrência. Àquela altura, o caso já mobilizava toda a cidade. Até o Prefeito de Santos, José de Souza Dantas, compareceu ao local juntamente com o Comandante dos Bombeiros Municipal (hoje 6º Grupamento de Bombeiros), Major Alípio Ferraz.
Quase 24h após o início da ocorrência, por volta das 09h30, uma embarcação da Polícia Marítima comparecia para auxiliar no salvamento, com uma equipe composta pelo cabo Raul Costa Carvalho, o agente Antônio de Oliveira e os marinheiros Carolino Cajueiro e Pedro Cypriano, comandados pelo major Victor Vieira Barbosa. Da praia, as pessoas observavam a tentativa de resgate.
Após algumas tentativas a embarcação, enfim, conseguiu se aproximar. O cabo Raul atirou-se ao mar conduzindo uma corda que, a muito custo, foi presa às rochas. Dali, os soldados conseguiram alcançar os ilhados, que já estavam em estado de hipotermia.
No dia 16 de julho, quarta-feira, dois dias após o início da ocorrência, vários jornais estampavam manchetes sobre a ocorrência na Ilha Urubuqueçaba, e enfatizavam a situação dos problemas antigos apresentados pelo Serviço de Salvamento Marítimo em Santos, que tinha efetivo nomeado desde 1926, mas que ainda não atuavam no serviço.
Uma destas reportagens foi publicada no “Diário Nacional”:
“Uma das campanhas mais justas e que mais fundo calaram no espírito público, foi sem dúvida a desta sucursal em torno do problema de salvamento em nossas praias. Mas é também verdade que todas as nossas reclamações nesse sentido de nada valeram. Nada se fez. Não se realizou coisa nenhuma no sentido de garantir a vida de milhares e milhares de banhistas que buscam as nossas incomparáveis praias na crença ingênua de que estão numa terra civilizada. […] Os desastres sucedem-se com insistência impressionante. São tragédias sobre tragédias. […] É infinita a lista das vítimas do mar em Santos. E a maior parte dos infortúnios teria sido evitada se tivéssemos postos de salvamento. Mas, afinal de contas porque cargas d’água Santos não tem, como qualquer cidade balneária de terceira ordem, os seus postos de salvamento?”
Outra questão criticada por muitos foi o desaparecimento do bombeiro Constantino. As buscas prosseguiram por dias. Somente no dia 18, sexta-feira, é que a procura findou, quando um telefonema no quartel informava que o corpo do jovem soldado fora visto na praia do Itararé, em São Vicente!
No dia seguinte, 19, às 14h, o Cemitério do Saboó, em Santos, estava completamente lotado de autoridades públicas e muitas outras pessoas que compareceram para prestar suas homenagens e solidarizarem-se com os familiares e amigos nas honras fúnebres do jovem de apenas 23 anos de idade, que ingressara no Corpo de Bombeiros no dia 3 de janeiro daquele mesmo ano. Constantino ingressava no rol dos heróis, como foi descrito no Boletim Regimental nº 159 da Instituição, assinado pelo Comandante na mesma data: “heroico bombeiro Constantino Corrêa, vítima de sua própria abnegação e amor ao próximo”.
A prematura morte do bombeiro Constantino mudaria de uma vez por todas o destino do Serviço de Salvamento Marítimo no Estado de São Paulo. A primeira providência foi a criação de uma prova aquática “rústica”, patrocinada pelo jornal “da Noite”, em homenagem ao soldado morto, que aconteceria no mesmo local da ocorrência: na Ilha Urubuqueçaba. Para a prova, o Corpo de Bombeiros Municipal incluiu em sua rotina, todos os dias, o deslocamento de bombeiros para treinamentos no mar.
A “Prova Rústica Constantino Corrêa” foi a primeira iniciativa que fez com que os bombeiros se achegassem ao mar em definitivo, fato que jamais sairia do “DNA” da corporação no Estado de São Paulo. Porém, a prova não foi a única repercussão gerada pela morte de Constantino. Sua morte também ecoou na Assembleia Legislativa do Estado, aumentando as discussões sobre os postos de salvamento das praias de Santos e Guarujá, tantas vezes denunciada pelos jornais, desde 1923.
Os debates surtiram, enfim, efeito. No dia 11 de agosto de 1930, finalmente começou a funcionar o posto de salvamento do Guarujá, embora não tenha sido oficialmente instalado. Aquele fora o primeiro posto instalado pela Polícia Marítima no litoral de São Paulo. Em Santos, o serviço começou a ocorrer no verão de 1931. Em 28 de janeiro daquele mesmo ano eram extintos, por decreto, os cargos de remadores dos postos de salvamento da Polícia Marítima. A tarefa no mar passaria para as mãos dos bombeiros.
Em 12 de maio de 1932, após anos de solicitações e impasse quanto aos postos em Santos, era definitivamente inaugurado e entregue a população o Posto de Salvamento nº 1, que contou com a ajuda financeira do Clube Rotary de Santos. Com a entrega deste primeiro posto, ficava incumbido ao Corpo de Bombeiros Municipal de Santos o exercício do Serviço de Salvamento Marítimo e a administração dos demais postos a serem construídos na Cidade. Um regulamento para os bombeiros-remadores foi transcrito no Boletim Interno n.º 124, de 31 de maio de 1932:
REGULAMENTO PARA OS POSTOS DE SALVAÇÃO DE SANTOS
Art.1º – Os postos de salvação têm por fim prevenir os casos de acidentes por submersão e acudir com presteza as pessoas que estejam na iminência de ser vitimadas por esta forma;
Art.2º – Os postos de salvação serão estabelecidos nas praias do José Menino e do Embaré e ficarão localizados nos seguintes: o n.º 1 próximo ao Canal 1, o n.º 2 junto ao Canal 2, o n.º 3 no Gonzaga, o n.º 4 próximo ao Boqueirão;
Art.3º – Em cada posto haverá um mastro de sinais: indicando o guarda-chuva aberto que o posto está funcionando, e sinal de perigo quando içada uma bandeira vermelha, passando a linha de arrebentação. Quando um banhista se afastar desse limite, um sinal de apito chamará a atenção do imprudente;
Art.4º – O período dos banhos sob a proteção dos postos será no inverno das 7h às 11h e das 15h às 18h, a partir de 1º de abril a 30 de setembro e no verão das 6h às 11h e das 16h às 19h, de 1º de outubro a 30 de março. Nos domingos e feriados o banho será prolongado por mais uma hora pela manhã e à tarde;
Art.º5 – Durante as horas estabelecidas no artigo anterior, a Prefeitura manterá em cada posto um vigia alerta, equipado e pronto para entrar em ação, e no mar, em cruzeiro de vigilância, um barco-patim a distância de 50 metros da praia, equipado com salva-vidas, cordas e demais apetrechos adequados ao salvamento;
Parágrafo Único – Entre o vigia e o tripulante do barco haverá sinais que orientam o barco quando se tratar de algum salvamento. Os sinais serão dados pela bandeira vermelha e um tiro de pólvora seca, no caso de eminente perigo de vida;
Art.6º – Como medida de prevenção, os encarregados do serviço do posto de salvação devem:
Advertir as pessoas que procuram as praias para uso do mar sobre lugares onde existem ou se presumam existirem perigo de qualquer natureza, variáveis, momentâneos ou permanentes, devendo, neste último caso, assinalá-los de maneira mais conveniente e visível;
Nas horas estabelecidas para os banhos de mar, exercer vigilância ininterrupta, de modo a poderem prestar socorros ao primeiro alarme;
Ter a embarcação e mais utensílios prontos e aptos para largarem ao mar e entrarem em imediata ação;
Art.7º – Nos casos de acidente de asfixia por submersão, os encarregados do posto, na falta de médico, farmacêutico ou enfermeira, deverão dispensar incontinente os cuidados aconselhados nessa circunstância de acordo com os ensinamentos ministrados;
Art.8º – Os encarregados do posto de salvação não poderão recusar os seus serviços, sob qualquer pretexto, a quem quer que deles necessite ou os reclames;
Art. 9º – O pessoal dos postos de salvação ficará constituído por um inspetor geral dos postos e auxiliares, vigias e remadores, de livre escolha do Prefeito, devendo satisfazer os quesitos seguintes:
Ter idade superior a 21 anos e inferior a 50 anos;
Provar mediante atestado médico que não sofre modéstia infectocontagiosa, nem de qualquer defeito de tato, de visão ou audição;
Provar que tem resistência física necessária para o bom desempenho do serviço que lhe incumbe e que é bom nadador;
Provar boa conduta e que não se entregue ao vício de embriaguez;
Ter carteira de identidade e folha corrida da Polícia.
Boletim Regimental n.º 124, de 31 de maio de 1932
Corpo Municipal de Bombeiros de Santos
Ninguém jamais poderia imaginar que a comoção sobre a morte trágica do bombeiro nº64 Constantino Corrêa, abalaria e mudaria totalmente o Sistema de Salvamento Marítimo no Litoral Paulista. Sua morte fez com que a sociedade, imprensa e autoridades públicas se mobilizassem, cada qual em sua esfera, para que o Serviço de Salvamento fosse de fato implementado em Santos para assim diminuir o grande número de afogamentos que crescia a cada ano. Com a extinção do cargo de remador na Polícia Marítima em janeiro de 1931 e o hiato de cerca de um ano de praias desprotegidas, somado com a recém-entrega do Posto de Salvamento nº 1 na Praia do José Menino, em frente ao local onde Constantino tornou-se herói, não havia como o Serviço de Salvamento Marítimo não ter sido assumido pela Instituição, que ficou mais capacitada e gabaritada desde a morte de Constantino: o Corpo de Bombeiros Municipal de Santos, que desde o fatídico dia 14 de julho de 1930 vinha treinando no mar, diariamente, e já estava atendendo regularmente ocorrências de afogamento em curso na cidade desde o fim do serviço pela Polícia Marítima, no início de 1931.
Em 1 de junho de 1932, as praias de Santos tinham os primeiros onze bombeiros, muitos deles fruto do treinamento para a “Prova Rústica Constantino Corrêa”, que passariam a ser chamados de “bombeiros remadores”, passando pela nomenclatura de “salva-vidas”, até ao atual e mais adequado termo: “guarda-vidas” do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Aos bravos e eternos guarda-vidas do Grupamento de Bombeiros Marítimo!
Ao eterno herói: Bombeiro nº 64 Constantino Corrêa!