Navios franceses “Jeanne D’Arc” e “Victor Schoelcher” se tornam a grande atração na Semana da Marinha (1967)

Belonave francesa “Jeanne D’Arc”, ao largo no Canal do Estuário de Santos, pronta para atracar.Foto: A Tribuna

Santos, 6 de dezembro de 1967. A cidade estava em festa para as comemorações da Semana da Marinha (Festividade criada no Brasil em 1926, para celebrar o Dia do Marinheiro). Como já vinha acontecendo tradicionalmente no Porto de Santos, diversos vasos de guerra brasileiros (dois contratorpedeiros, dois navios varredores e dois navios patrulhas), e outras embarcações interessantes, como o navio oceanógrafo Professor W. Besnard, estavam espalhados pelo cais santista abertos à visitação pública, estimulando a interação do povo com sua Marinha de Guerra. Assim, pelas ruas da cidade, centenas de marinheiros desfilavam com seus garbosos uniformes, oferecendo a Santos uma cara diferente. Além das embarcações brasileiras, a atenção do público estava também direcionada aos navios de países estrangeiros.

Naquela edição de 1967, as estrelas de fora faziam parte da Marinha de Guerra da França: belonave “Jeanne D’Arc” e o navio-escola “Victor Schoelcher”. A ideia era que ambas as embarcações atracassem entre os cais dos armazéns 6 e 7. Porém, em decorrência da falta de calado (profundidade necessária para um navio atracar sem bater no fundo) naquele ponto (que era de 21 pés, e a necessidade era 24 pés), os vasos franceses foram direcionados para o cais do armazém 11, sendo necessário retirar daquele ponto um navio que estava descarregando adubo.

Eram 12 horas quando finalmente o “Jeanne D’Arc” atracou e as festividades deram início, primeiramente com a visita a bordo do cônsul francês em Santos, Frank Mason. Logo depois, a banda formada por marinheiros do navio francês executou algumas músicas para saudar as autoridades e demais visitantes. Havia muita curiosidade em torno da missão do navio francês, que funcionava como um porta-helicópteros, levando seis aparelhos em seu convés.

O “Jeanne D’Arc” estava em viagem de instrução e trazia a bordo 820 homens, sendo 144 cadetes, 43 oficiais e oito pilotos de helicópteros (o restante era formado por marinheiros em serviços diversos). As aeronaves a bordo operavam com dois tipos de missões. Uma parte servia para o combate antissubmarino e a outra para assaltos anfíbios. O navio também estava sendo preparado para contar com uma rampa de lançamentos de mísseis de longo alcance.

A banda formada por marinheiros do navio francês executou algumas músicas para saudar as autoridades e demais visitantes. Foto: A Tribuna

Estudos e reverência à Napoleão Bonaparte

Assim que saíram do porto francês de Brest, em 31 de outubro, tanto o “Jeanne D’Arc”, quanto o “Victor Schoelcher”, fizeram uma breve escala na ilha de Santa Helena, antes de seguirem para o Porto de Santos. A localidade, situada no meio do Oceano Atlântico, serviu de exílio para o ex-Imperador Napoleão Bonaparte, que para lá foi levado pelos britânicos após sua derrota na famosa batalha de Waterloo (1815) e ali morreu em 5 de maio de 1821. O comandante da belonave francesa, André Gelinet, plantou uma árvore em volta da casa onde Napoleão viveu, ritual, aliás, obedecido tradicionalmente por todos os barcos da marinha de guerra francesa que tocam naquela ilha.

O curioso da passagem do “Jeanne D’Arc” pelo exílio de Bonaparte, é que a bordo estava um civil ilustre, o renomado historiador francês André Castelot, que para lá foi investigar novos fatos sobre a vida do histórico imperador. Patrocinado pelo periódico “France Soir”, Castelot tinha como missões cobrir a cerimônia comemorativa ao centenário da passagem de um navio escola por Santa Helena e reunir elementos para dar os retoques finais a um livro que tratava da trajetória de Napoleão pelo mundo. O historiador refazia todo o caminho de Bonaparte, percorrendo Egito, Rússia, Inglaterra, Itália, Áustria, entre outros países.

André Castelot se tornara uma atração à parte na passagem por Santos, especialmente aos intelectuais e estudiosos de história na região. Para o jornal A Tribuna, o historiador falou ao repórter Cid Marcus, entrevistado desde o gabinete do comandante, que era repleto de livros. Castelot explicou que seu principal objetivo na missão era equacionar a eterna confrontação que havia entre as versões inglesas e francesas sobre a passagem de Napoleão pelo exílio no meio do Oceano Atlântico. Ali, ele chegou a ser consagrado como Imperador da Ilha pelo próprio Bispo de Santa Helena, na versão francesa da história. 

O comandante Gelinet recebe o cônsul da França em Santos, Frank Mason. Belonave trazia a bordo seis helicópteros e ostentava artilharia pesada. Fotos: A Tribuna

Programa

Parte da tripulação (composta pelos oficiais mais graduados) das duas naves francesas cumpriu um programa rigorosamente planejado, tanto em Santos como em São Paulo. No primeiro dia estada no porto de Santos, 6 de dezembro, uma comitiva foi até o Panteão dos Andradas, onde foram depositadas flores em homenagem ao ilustre santista José Bonifácio de Andrada e Silva, considerado um dos fundadores da Marinha do Brasil. Na sequência a mesma comitiva assistiu uma missa na Basílica do Embaré e às 11 horas participou de um almoço no Parque Balneário. Após este compromisso, eles tiveram o resto do dia livre, juntando-se a outras partes da marujada. Já os comandantes dos navios “Jeanne D’Arc”, André Gelinet, e do “Victor Schoelcher”, André Robinet, subiram a Serra do Mar e cumpriram uma agenda no Palácio dos Bandeirantes, onde foram recebidos pelo governador de São Paulo, Abreu Sodré.

No dia 7, os franceses foram visitar a Refinaria Presidente Bernardes, em Cubatão e depois participaram de uma recepção no Tênis Clube de Santos, onde confraternizaram com parte da sociedade santista. Ali, tiveram como anfitrião o capitão dos portos do Estado de São Paulo, Hedno Vianna Chamoun, e sua esposa. Os visitantes também fizeram questão de ir até a Vila Belmiro acompanhar de perto um treino do Santos, especialmente para ver o grande astro do futebol brasileiro e mundial, Edson Arantes do Nascimento, o Pelé.

Enquanto nos dias 8 e 9, a agenda ficou livre, no dia 10, na parte da manhã, aconteceu uma missa solene a bordo do “Jeanne D’Arc” e na parte da tarde a visita do governador do Estado de São Paulo, Abreu Sodré, que retribuía aos franceses o gesto do dia 6.

Povo que foi ao porto se encantou com os navios franceses. Foto: A Tribuna

Vinho de São Roque – aprovado em laboratório

Um fato curiosíssimo registrado na passagem dos navios franceses a Santos, foi o fato de eles movimentarem de forma substancial o comércio da cidade santista, por meio dos gastos realizados pela tripulação em passeio pela cidade. Além de produtos de uso pessoal, os franceses adquiriram mercadorias e mantimentos para o consumo de viagem, gastando cerca de NCr$ 250.000,00 (Duzentos e Cinquenta Mil Cruzeiros Novos). Foram adquiridas aves abatidas, óleos comestíveis de amendoim, ovos, 11 toneladas de batata, cebola, abacaxi, laranja, pêssego, além de legumes de todas as espécies. Mas o que mais chamou a atenção foi a compra de 6 mil litros de vinho produzido em São Roque. Os franceses chegaram a realizar testes no laboratório de bordo para verificar a qualidade da bebida, e foi considerada excelente pelos exigentes franceses. Assim, por volta das 6 horas do dia 11, um caminhão tanque estacionou ao lado do “Jeanne D’Arc” para transferir o vinho brasileiro ao tanque da belonave. Os comissários Albert Cras e Marcel Betróm inspecionaram pessoalmente a bebida, promovendo sua degustação.

O Adeus aos amigos franceses – dois ficaram

No dia 12 pela tarde, as duas embarcações francesas içaram suas âncoras, se desamarraram do cais santista e partiram, sob o aplauso de centenas de santistas. A marujada de ambos os navios tiraram seus bonés para acenar às pessoas, agradecendo o carinho e hospitalidade. Como em toda despedida, à saída das duas belonaves não faltaram lágrimas. Houve também a tristeza de vários marinheiros por conta do não embarque de dois companheiros, que foram tidos como “perdidos”. Até o último momento toda a tripulação olhava ansiosamente para o portão de entrada do armazém 12 à espera de que surgissem os dois desaparecidos. O comandante, porém, ordenou a suspensão da escada às 17 horas, pois o barco já havia esperado muito tempo. A saída estava programada para as 9 horas da manhã. O destino dos navios era a Baia de Guanabara e de lá continuariam sua viagem de instrução.

Os dois marinheiros perdidos seriam encontrados no dia seguinte e foram despachados para a Guanabara, onde se juntariam aos demais.

“Jeanne D’Arc” parte para nova missão. No primeiro plano, o navio oceanográfico brasileiro Professor Besnard. Foto: A Tribuna.