A Canhoneira Pátria em Santos

A Canhoneira Pátria em Santos, 1905, pintado por Benedicto Calixto. Acervo do Centro Real Português. É possível ver na pintura a procissão que acompanhou a embarcação quando da sua chegada ao canal da Barra.

Vaso de guerra português foi construído com o dinheiro da colônia lusitana que vivia no Brasil. Os santistas estavam entre os maiores doadores.

Santos, sábado, 21 de outubro de 1905 – A cidade estava vestida em galas para receber os tripulantes da celebrada “Canhoneira Pátria”, vaso de guerra português que fora totalmente financiado pela Colônia Lusitana do Brasil, algo inédito até então. O braço santista, grande contribuinte do projeto, não via a hora de promover os festejos em honra e regozijo da ocasião. E foi uma baita festa.

A Praça da república e outras ruas do perímetro central foram entrecruzadas por extensos cordões dotados de bandeiras de nacionalidades diversas. Também foram instalados diversos arcos de iluminação a gás, distribuídos ao longo da parte frontal da Alfândega e da Matriz, bem como por toda a extensão da Rua 15 de novembro, transformada então numa ofuscante alameda de luz. Durante as noites seguintes, e por todo o período de permanência dos ilustres hóspedes, Santos se iluminou de forma encantadora.

Na esquina da rua 11 de Junho (atual Riachuelo) com a rua XV de novembro, praticamente em frente à sede da Associação Comercial de Santos, ergueram um belíssimo correto de madeira, guarnecido caprichosamente com galhardetes, escudos e bandeirolas. Belo efeito também foi produzido pela ornamentação externa da sede do Consulado Português, cuja fachada ficou ricamente iluminada por uma miríade de pequeninos focos elétricos e uma constelação de estrelas justapostas à cimalha do prédio.

As casas comerciais da cidade, atendendo ao apelo da Associação Comercial, bem como ao da imprensa diária local, fechou as portas ao meio-dia, embandeirando suas fachadas e concorrendo para o maior realce dos festejos.

No posto semafórico do Monte Serrat, responsável pela observação da entrada e saída dos navios do porto, a expectativa pela chegada do vaso português era enorme. Enfim, às 11 horas, foi anunciado, através da queima de algumas girandolas de foguetes, a entrada da Canhoneira Pátria pela Baía de Santos. Na cidade, o Tiro de Guerra, então, salvou com 21 tiros os visitantes da nação mãe.

Publicação da Revista “O Malho”, de 1905.

O povo, então, afluiu ao cais num burburinho festivo. Muita gente aglomerou-se em vários pontos altos da cidade, apenas para testemunhar com os próprios olhos a entrada da famosa Canhoneira Pátria pelo canal do Estuário. Do cais da guarda-moria, então, partiram os rebocadores Dauntess, Santos, Sul América, Paula Pires e Alamiro Malchert, além de diversas outras lanchas particulares, da Alfândega, da Saúde do Porto e vários escaleres, que transportavam os membros da Comissão de Festejos, autoridades civis e militares, representantes da imprensa, cônsules e muitas senhoras e senhoritas. A cena era tal qual o de uma grande procissão marítima.

Duas bandas de música: a do corpo de bombeiros e a da Colonial Portuguesa também foram nos barcos, onde entoaram lindos dobrados, além dos hinos do Brasil e de Portugal. Era quase meio-dia quando toda a “frota santista” se encontrou com a Canhoneira Pátria, na altura da Fortaleza da Barra Grande. Tão logo houve a reunião, algumas autoridades passaram para o barco visitante. Em seguida, todos rumaram para o cais da Alfândega, já na cidade santista.

A Canhoneira Pátria se juntou, no lagamar defronte à cidade, a outras embarcações de guerra que lá já estavam ancoradas, como o cruzador “Tiradentes”, da Marinha do Brasil; e a Canhoneira “Panther”, da Marinha Alemã, esta em visita ao cais santista.

Tripulantes e oficiais da Canhoneira Pátria visitam a Câmara Municipal de São Vicente. Negativo de vidro de José Marques Pereira, acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Santos.

Dias de glória na região

Nos dias que se seguiram à vinda da Canhoneira Pátria, vários compromissos foram cumpridos pela oficialidade e marinharia do vaso lusitano. No dia seguinte à chegada, um domingo, realizou-se uma missa campal no Largo da Matriz, celebrada pelo Monsenhor Moreira, a convite do vigário da paróquia, Monsenhor Soledade, como uma prova de amizade à Colônia Portuguesa. O coro da missa foi executado pelo corpo de canto do Centro Hespanhol. Após a missa, realizou-se almoço na sede do Consulado de Portugal, durante o qual tocou o sexteto dos cegos, da Casa Culty.

Nos dias seguintes, ocorreram a visita à Câmara Municipal e outras instituições sociais da cidade santista (segunda-feira, dia 23); Sessão solene na Beneficência Portuguesa e sessão de patinação no novo Rink Santista (terça-feira, 24); Passeio e visita a São Vicente durante o dia, e à noite serenata veneziana na Bahia de Santos pelas sociedades do esporte náutico (quarta-feira, 25); Visitas à cidade e banquete no Parque Balneário Hotel (quinta-feira, 26); Passeio e lanche no Monte Serrat (sexta-feira, 27) e Piquenique nos Pilões (sábado, 28).

Após dias de intensas atividades sociais na região, os oficiais da Canhoneira Pátria subiram a Serra do Mar, para cumprir uma série de compromissos tanto na capital bandeirante como em outras cidades do interior paulista, como Sorocaba, Itu e Campinas.

A embarcação portuguesa ficou em Santos até o dia 17 de novembro, ocasião em que partiu de volta ao Rio de Janeiro e, de lá, para outros portos brasileiros. Depois, foi para a costa africana, onde exerceu por alguns anos várias missões especiais.

Desenho da Canhoneira Pátria feito em 1902, antes do termino de sua construção. Revista da Semana, Rio de Janeiro.

A Embarcação

Os trabalhos para construção da Canhoneira Pátria começaram em 28 de outubro de 1901, sendo o primeiro rebite cravado em 17 de abril de 1902. A condução do projeto, no início, estava a cargo do engenheiro francês, Louis Émile Bertin. Mas logo ele passaria o bastão para seu conterrâneo, Galligné, e ao contramestre da Oficina de Construções Navais de Ferro do Arsenal de Marinha de Lisboa, Guilherme Júlio de Almeida.

A embarcação de guerra foi construída graças a uma subscrição patriótica que rodou o Brasil a partir de 1890, promovida pelo Grêmio Português do Rio de Janeiro. Ao final, foram apurados cerca de 470 contos de reis (cerca de R$ 57 milhões nos dias de hoje), principalmente junto às colônias lusitanas de São Paulo e Santos. A embarcação consumiu 230 contos de reis (cerca de R$ 28 milhões) e o restante foi utilizado para compra de munições e outras necessidades. O projeto do navio levava a assinatura do engenheiro naval Alfonse Croneau, com colaboração do engenheiro construtor Duarte Sampaio.

O casco foi construído com aço de primeira qualidade, sendo as cantoneiras e chapas fornecidas pela empresa francesa “Providence”. A linha de flutuação era reforçada por uma cinta de aço-níquel de 15 mm de espessura, proveniente da casa Creusot. A roda de proa, um primor de bom acabamento, de aço forjado, bem como o cadasto, em aço moldado, foi adquirida na Casa Ferminy, também na França.

Um único mastro militar, de aço, tinha a “Pátria”. Na sua plataforma estava instalada uma metralhadora que, em ocasião de desembarque, poderia ser montada na proa da embarcação. Avante do mastro estava colocada a ponte de navegação, dotada de casa, abrigo e meio para o leme e telégrafos, ficando por baixo desse mesmo abrigo instalada sobre o spardeck, a casa de pilotagem.

A Canhoneira Pátria foi lançada nas águas do Rio Tejo, em Lisboa, no dia 7 de junho de 1903, em meio a uma grande solenidade, prestigiada pelo rei Dom Carlos I e pela rainha dona Amélia de Orléans, além de oficiais da marinha, delegados da comissão de subscrição patriótica e numerosa massa popular.

Logo depois de lançada ao mar, a Canhoneira Pátria foi cumprir seu papel nas possessões portuguesas na África (Angola e Moçambique), integrando a Divisão Naval do Atlântico Sul. Em 1905, então, os portugueses decidiram visitar o Brasil para agradecer aos lusitanos aqui residentes pela ajuda fundamental que possibilitou a construção do vaso de guerra. Em Santos, a festa foi considerada das maiores. Nada mais justo para uma cidade que já era considerada a mais portuguesa do Brasil!

Reportagem publicada na revista Ilustração Portuguesa, de julho de 1905