Um dos símbolos da luta pelo fim da escravidão e da monarquia brasileira, alijado do processo de construção do novo país, acabou se autoexilando e morrendo de uma forma completamente inusitada.
Monte Vesúvio, Itália, 1º de julho de 1891. Antônio Silva Jardim desceu do cavalo que alugara em Nápoles e decidiu seguir a pé, junto com o amigo inseparável, Joaquim Carneiro de Mendonça, e um guia, de nome Domenico, até onde podiam na direção da boca de um dos mais temíveis vulcões europeus, o Vesúvio. Ele e Mendonça haviam sido alertados dos perigos provocados pelos sintomas ameaçadores da instável montanha, que num passado distante fora protagonista de uma das maiores tragédias da humanidade (uma de suas erupções, ocorrida no ano de 79 d.C. ceifou, em menos de vinte minutos, a vida de duas mil pessoas, moradores das vilas de Pompéia e Herculano).
Silva Jardim, no entanto, não se importou com os alertas. Logo ele, um homem tão determinado e ardente em suas convicções, deixaria de encarar a fúria da natureza? Certamente, seu ímpeto foi visto como um gesto de repulsa diante do sentimento de injustiça que ainda pulsava em suas veias. O seu país natal havia se transformado de maneira indelével, e ele, que tanto lutou pelas mudanças conquistadas, fora posto de lado. Então como um homem incandescente teria receio de enfrentar o Vesúvio, encarando-o como encarar um espelho de si mesmo?
Fluminense de nascimento, mas santista de corpo e alma, Silva Jardim galgou sem muito esforço o restante de montanha que o separava da cratera e, de súbito, sentiu algo que só poderia equiparar-se ao que vivera pouco mais de três anos antes, numa noite quente de 28 de janeiro de 1888, ocasião em que, efusivamente, discursou para mais de duas mil pessoas que lotavam completamente as dependências do Teatro Guarany e do entorno da Praça dos Andradas, propagandeando com intensa paixão os ideais republicanos. “A Pátria está ameaçada de perder o regime de liberdade pela usurpação de um príncipe estrangeiro, expulso de sua terra, o Sr. Conde D’Eu“. O tribuno, que à época contava com apenas 27 anos de idade, aproveitara ainda a ocasião para criticar a política de libertação dos escravos que, em sua opinião, engatinhava em relação às medidas adotadas por outros países. “Já causa piedade e asco ver que ainda tratamos disso. Uma única Lei de emancipação resolveria… pedimos perdão ao mundo de não a ter feito há mais tempo”.
Jardim ganha status de líder republicano
O comício de Santos se tornara rapidamente assunto em todas as bocas, e por todo o país. O discurso do jovem advogado fora publicado na íntegra, e com destaque, nos principais jornais republicanos, que àquela altura já não eram poucos. Sua voz atingiu São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Pernambuco, os grandes centros, alçando a imagem do advogado santista como um dos grandes articuladores da campanha republicana no Brasil. Silva Jardim, enfim, tornara-se personagem de projeção nacional.
Coincidência ou não, após o abrasador discurso do Teatro Guarany, que fora tido como um dos mais, senão o mais importante da campanha republicana brasileira, diversas situações começaram a mudar. A primeira delas teve efeito quatro meses depois, com libertação de todos os escravos do Brasil, promulgada em 13 de maio. E, a mais impactante, no ano seguinte, com a Proclamação da República, ocorrida no dia 15 de novembro de 1889.
Silva Jardim, apesar do relevante papel que exerceu nas duas questões, acabou alijado politicamente, e foi abandonado por seus pares quando da composição do primeiro governo republicano. O desprezo demonstrado pelos homens que protagonizaram a derrubada do Imperador D. Pedro II, o deixou irremediavelmente frustrado. Ele só queria ter a oportunidade de oferecer suas ideias à construção de uma nova nação, enfatizando a participação civil como algo era extremamente importante para a composição do governo. Porém, os militares que deram suporte ao Marechal Deodoro da Fonseca no processo final da Proclamação da República consideravam o santista um homem inconstante, irrequieto, explosivo, tal qual um vulcão. Assim, optaram por convidar uma figura mais comedida, maleável, o jurista baiano Ruy Barbosa, como o principal componente político da classe civil.
Em 15 de novembro, Silva Jardim se encontrava em Minas Gerais, a pedido do barão Homem de Mello, estudando a vida de Tiradentes e só tomou conhecimento da Proclamação da República alguns dias depois. Rapidamente foi de Minas para o Rio de Janeiro, acreditando obter um espaço na composição do governo, mas descobriu da pior maneira que havia sido posto de lado, tomando “chá de cadeira” em vários gabinetes.
Autoexílio em Paris
Desiludido, irritado, o santista decidiu deixar o Brasil para residir e estudar em Paris, França, ingressando na Sorbonne (Universidade de Paris). Na verdade, Jardim impusera a si mesmo um exílio. Na capital francesa, Jardim conheceu e solidificou uma boa amizade com Joaquim Carneiro de Mendonça, um mineiro de Paracatu que trabalhava para a embaixada brasileira em Londres. No recesso do meio do ano, período em que teria dias de folga, decidiu convidar o colega para empreender uma viagem à Itália. Quando chegou a Nápoles, decidiu conhecer o famoso Monte Vesúvio, o seu espelho em forma geológica. Era uma quarta-feira, e o tempo não parecia ruim. Por outro lado, os últimos registros de abalos sísmicos colocaram a população do entorno em estado de alerta. Mas nem isso demovera o intrépido de Silva Jardim de encarar a aventura. E essa decisão foi sua ruína.
Já na borda da temível cratera, um abalo mais forte abriu uma rachadura no solo. Jardim e Mendonça foram tragados, mas o segundo teve a presença de espírito de agarrar-se rapidamente à uma rocha e ficou por alguns segundos suspenso, com a cabeça e as pernas apoiadas em cada uma das paredes da fenda. O guia italiano conseguiu ajudar Mendonça, com muita dificuldade. Quando colocou o “turista” a salvo, percebeu que o santista havia desaparecido em meio à lava, no fundo da cratera. Os dois, então, temendo o pior, partiram de volta a Nápoles, e contaram ao mundo como testemunharam o fim de um homem que viveu a vida inteira fervente como o fogo.
* Antônio Silva Jardim é o símbolo santista da causa republicana, sempre celebrado no 15 de novembro, desde o final do século 19.