Monumento do escultor João Batista Ferri, instalado na Praça José Bonifácio em 1941, acabou expulso e exilado. Mas, ao final, ganhou lugar de destaque num dos espaços mais lindos da cidade, o Orquidário Municipal.
Santos, 1943. O prefeito Antônio Gomide Ribeiro dos Santos estava em seu gabinete, despachando tranquilamente os processos do dia quando sua secretária bateu à porta e entrou na sala com semblante apreensivo. Ela informava ao chefe do executivo que um grupo de senhoras bastante alteradas exigia falar-lhe. O motivo era a presença de uma escandalosa “mulher nua” que violava, já fazia tempo, a consciência católica da cidade, justamente defronte à Catedral, na Praça José Bonifácio. Gomide dos Santos questionou se aquilo não era um caso de polícia. Afinal, como ele, na condição de prefeito, poderia punir tal afronta de pudor? As senhoras, no entanto, insistiram pela audiência imediata, e que não era mais possível esperar. Para elas, o caso até poderia ser encaminhado para as autoridades policiais, mas o denunciado certamente seria o próprio prefeito, caso ele não tomasse uma providência.
O objeto do conflito, de fato, não fora provocado por uma mulher de carne e osso, mas por uma figura mitológica esculpida em granito, uma “Baccante” (sacerdotisa do culto de Baco), conforme assim descrevera o seu autor, o renomado escultor João Batista Ferri que, em 29 de maio de 1940, assinara um contrato com a Prefeitura visando produzir o monumento alegórico para agregar valor ao projeto de embelezamento da Praça José Bonifácio. Na época, o prefeito contratante fora Cyro de Athayde Carneiro, que chegou a ser alertado sobre os problemas que a tal “nudez” poderia acarretar por estar defronte à Catedral da cidade. No entanto, o alcaide teria retrucado com o seguinte argumento: “Na galeria de arte do Vaticano o nú também não está representado pela escultura e pela pintura?” Ninguém ousou contestá-lo.
A obra
A obra artística foi, afinal, executada em granito branco, trabalhando à “piccola” fina na forma, a mais perfeita possível, e apresentava as dimensões de dois metros de altura por 0,80×0,80 na base, sendo o interior perfurado para a instalação de um jorro de água. A estátua foi montada numa base de 1,15 metro de altura por um 1 metro de largura em todas as faces, abrangendo uma área de 4,60 m². A gigantesca mulher, identificada pelos artistas e intelectuais da cidade não como uma “Baccante”, mas como uma “Ninfa” (divindades da mitologia grega que personificam a fertilidade da natureza, geralmente ligadas a lugares como montanhas, lagos, florestas, rios, etc), foi esculpida por Ferri sentada, sendo que os braços vinham apoiados nos joelhos. Com as duas mãos, a alegoria segurava uma taça (erguida junto ao queixo) de onde jorrava a água que escorria por todo seu corpo desnudo.
A instalação da “ninfa”, conforme o previsto, ocorreu no final de 1941. E não demorou muito para que as “carolas” da Catedral, indignadas, se unissem e criassem um comitê de repúdio à imagem “assanhada”. O primeiro a sentir a pressão das “cristãs” sediciosas foi o bispo D. Paulo Tarso de Campos. Mas o religioso, de saída da Diocese de Santos, acabou deixando o caso polêmico nas mãos de seu substituto, D. Idílio José Soares que, por sua vez, não atendeu de imediato o pleito revoltoso. Quando as senhoras finalmente conseguiram ter uma audiência com o sacerdote, ele prometeu tomar providências, mas acabou não o fazendo na velocidade pretendida pelas “carolas”. Ansiosas por uma resolução, elas decidiram ir direto à fonte, ou melhor, ao gabinete do prefeito. Mas não sem antes levar um trunfo nas mangas, o apoio da esposa de Gomide dos Santos, dona Ambrosina, reconhecida como uma dedicada católica.
A tática deu certo e Gomide ordenou a “expulsão” da ninfa da Praça José Bonifácio, exilando-a num depósito da Prefeitura, onde foi jogada como se joga qualquer coisa inútil de uma vez para sempre. E lá ficou esquecida por um tempo.
Um novo lar
Gomide deixou a Prefeitura em agosto de 1945, sendo sucedido por Lincoln Feliciano (que só ficou no cargo por um mês), Francisco Paino (por mais dois meses) e Edgard Boaventura. Este último tomou conhecimento do caso da ninfa exilada através de alguns funcionários e, então, curioso, decidiu vê-la de perto. Quando o fez, teve uma ideia. Por que não abrigá-la no novo parque da cidade, o Orquidário Municipal, que acabara de ser inaugurado (em 11 de novembro de 1945)? Todos gostaram da solução e assim foi feito. A Ninfa de Náiade, enfim, ganharia seu lar definitivo, e ainda por cima em lugar de destaque, à entrada do parque, ao fundo da pérgula de recepção aos visitantes. Sem dúvida, fora até uma promoção. Se no mundo mitológico, as náiades, como divindades inferiores, não tinham mais que o direito de presidir as fontes, esta, a de Santos, passou a presidir o lugar mais lindo da cidade até então construído pelas mãos do homem.
Por isso até valeu a pena esquecer o motivo ignominioso que a arrancou da Praça José Bonifácio.