Adalzira Bittencourt, então uma estudante do Largo de São Francisco, defendeu um homem acusado de assassinato, e conseguiu fazer o júri o absolver.
Santos, 12 de junho de 1926 – O recinto do Tribunal de Justiça de Santos (na época, abrigado na atual Cadeia Velha) estava apinhado de gente. O caso principal do dia, em julgamento por um Tribunal Popular, chamara a atenção de toda sociedade santista, por dois aspectos peculiares. Primeiro, pelo réu, um senhor de avançada idade, chamado Messias Constante, que fora preso em flagrante delito, incurso nos artigos 294, parágrafo segundo, e 304, do Código Penal, por ter assassinado, num momento fúria, um homem que suspeitara ser amante de sua companheira, Sebastiana da Silva Leme. E, também, pelo inusitado da presença de uma mulher na condição de participante do processo de defesa do réu. Era Adalzira Bittencourt, uma acadêmica de Direito, aluna do Largo de São Francisco, que, ali, se tornava a primeira mulher a subir à tribuna de defesa na Comarca de Santos.
A presidência do Tribunal estava a cargo de Mário de Almeida Pires. Na promotoria pública, atuou João Penteado Stewenson e serviu de escrivão o major Antônio Pompilio de Mendonça. O conselho de sentença estava constituído pelos senhores Lauro Pereira de Carvalho, Adolfo Millon Júnior, Octávio Alves, Adriano de Campos Tourinho, Jayro Franco, Domingos Aulicino e Octávio Martins.
Após o julgamento de três casos menos polêmicos, enfim, adentrou ao Tribunal o principal réu do dia. Messias Constante, acompanhado de João de Menezes Tavares, um dos seus defensores, rompeu a massa compacta, que se aglomerava na sala contígua ao recinto do Tribunal, dando entrada de forma humilde, indicando com o seu semblante o espanto de que era possuído por ver a multidão que o olhava com avidez.
Dois meses antes, no dia 16 de abril, cerca de 16 horas, o réu regressava à sua residência, no Morro do Saboó, para descansar das fadigas numa velha casinha que ajudou a construir. Quando já estava perto, notou que o lugar estava com todas as portas fechadas e apenas uma janela aberta. Cismado com o que via, apressou-se, e entrou na casa, surpreendendo a sua companheira em colóquio com João Elias Martins.
Revoltado com quadro que presenciara, Messias tomou um porrete e investiu furiosamente contra os dois. Cego de raiva, ele vibrou violentíssimas cacetadas em ambos, deixando-os gravemente feridos. João Elias Martins acabou falecendo em virtude das graves lesões que recebera. Era foi o crime pelo qual o Messias Constante era submetido a julgamento.
Após o interrogatório do réu e a leitura do processo, o promotor público fez uso da palavra, asseverando que o caso não se tratava de crime passional, como a princípio parecia, pois Messias Constante não era casado com Sebastiana da Silva Leme. Historiando o crime, o promotor estendeu-se em comentários analisando, por fim, os itens do libelo acusatório que, alegava, estavam devidamente provados. João Penteado Stewenson estava certo de que sua tese seria acolhida pelo Tribunal.
Mas aí é que entrou a estrela do dia. A acadêmica Adalzira Bittencourt subiu à Tribuna, quebrando séculos de resistência feminina na área do Direito. Com muita sensibilidade e segurança, iniciou sua oração fazendo uma saudação à cidade de Santos e aos seus grandes literatos, citando entre outros, os nomes de Vicente de Carvalho, Martins Fontes, Afonso Schmidt, Fábio Montenegro, Paulo Gonçalves e Alberto Souza. Depois, entrando na matéria do crime, a então defensora do acusado começou dizendo que Constante poderia, sim, ser considerado um criminoso passional e defendeu os motivos de sua afirmativa, elucubrando várias considerações. “A perturbação de sentidos é uma porta aberta para casos como o do réu presente, como já afirmaram sabiamente Krafft-Ebing, Sousa Lima e Fleury”, citou alguns famosos psiquiatras. Adalzira se baseou em diversos pontos de aspecto psicológico e passou a palavra para Menezes de Carvalho, defensor contratado para o caso. Este seguiu a mesma linha da colega e se limitou a rebater as alegações da promotoria pública, provando com base que Messias agira em completo “estado de perturbação de sentidos”.
O juiz, então, concedeu a palavra ao promotor Stewenson, para que fizesse uso da réplica. Porém, ele acabou se abstendo de utilizá-la. Os jurados, assim, recolheram-se à sala secreta, dali voltando com a absolvição do réu por unanimidade de votos. A massa que assistia ao julgamento ficou encantada com o desempenho da jovem estudante do Largo de São Francisco. Alguns aplausos foram ouvidos, ainda que discretos, para não parecer desrespeitoso ao ambiente. Adalzira saiu como uma heroína, uma desbravadora e um marco para as mulheres no campo do Direito.
Mulher símbolo de luta
Em 1927, Adalzira se formava advogada, a única de sua turma. No ano seguinte rumou para Holanda e Itália, onde se especializou em Direito Internacional. Apaixonada por poesia (aos 15 anos de idade teve um texto seu prefaciado por Vicente de Carvalho), percorreu vários países conferenciando sobre literatura brasileira. Ao longo de toda sua vida escreveu nove livros, alguns deles sobre o empoderamento feminino, caso do romance “Sua Excelência, a Presidente da República no ano de 2050”, lançado em 1929, obra que a tornou perante à sociedade como um verdadeiro símbolo na luta pelos direitos da mulher.
Adalzira, pela sua posição, fez parte da primeira onda de feminismo brasileiro. Em determinado momento, ela defendia seu próprio conceito sobre o tema. Dizia ser “o feminismo brasileiro. Não o importado, mas, sim, o latino, colocando a mulher no seu lugar. Ela deve saber ensinar o caminho reto do dever, a aplicação de patrimônios, a honestidade e a justiça aos seus filhos”.
Destarte, o feito de Adalzira no Tribunal de Juri da cidade de Santos em 1926, foi apenas o estopim de uma longa lista de conquistas e de lutas pelos direitos das mulheres.