No tempo dos pescadores caiçaras

Pescadores na praia do Gonzaga, fazendo seu trabalho no fim de uma tarde de Inverno

Cenas inimagináveis nos dias atuais formavam a tradição pesqueira dos santistas de 100 anos atrás.

Santos, 22 de julho de 1904. Na suave penumbra das últimas horas do dia, alguns pescadores se moviam como sombras silenciosas na praia do Gonzaga. O ar estava carregado de simplicidade e quietude, num cenário onde a orla, praticamente intocada pelas grandes edificações que um dia viriam a dominar aquela paisagem santista, preservava sua beleza natural e serena.

Os homens, de pés descalços e corações cheios de esperança, carregavam com cuidado uma extensa rede de arrastão. A brisa marinha do inverno corria fria e cortante, e se misturava com o cheiro salgado do mar. A areia úmida rangia sob os passos firmes dos pescadores, e o som das ondas quebrava ao longe, como uma melodia reveladora da cumplicidade entre o homem e a natureza. As últimas luzes do dia insinuavam-se no horizonte, pincelando o cenário com dourados e laranjas suaves, como se o próprio sol viesse se despedir da bela sinfonia de trabalho e dedicação.

O cenário poético aqui construído, por mais incrível que possa parecer aos santistas de hoje, era absolutamente real. Ao longo da orla praiana e em praticamente todos os cantos do entorno da Ilha de São Vicente, a pesca, dita artesanal, era sem sombra de dúvida o maior meio de subsistência da população. 

A atividade extrativa, aliás, era mais antiga do que a própria civilização ocidental na região, sendo ela praticada desde os tempos dos primitivos habitantes do litoral. Com o passar dos anos, décadas, séculos, apenas o tipo humano e uma ou outra técnica de captura, nada muito extravagante, se transformou. Quase nada.

Pescadores no Valongo

Caiçaras

O processo de ocupação territorial e a miscigenação entre indígenas, portugueses e escravos africanos formaram um novo grupo populacional na faixa litorânea paulista, especialmente nas imediações de Santos, comumente chamado de “arrabaldes” (áreas de uma cidade ou povoação situadas fora dos limites centrais, nas cercanias). Esse grupo ficou conhecido como “caiçara”, um termo de origem tupi (caá-içara), usado para designar as estacas colocadas em torno das tabas ou aldeias, ou o curral (armadilha) feito de galhos de árvores fincados na água para cercar peixes.

Os caiçaras herdaram de seus ancestrais nativos da “terra brasilis” a tradição da pesca, bem como da caça e da agricultura de subsistência. Ao longo do tempo, esses grupos dominaram as paisagens marinhas com seus ritos de pesca. E ela sempre foi costeira, a chamada pesca artesanal, na qual se utilizam redes de arrastão e até mesmo outras pequenas para atividades individuais (as chamadas puçás).

Tradicionalmente, e obviamente em razão do período migratório das espécies marinhas, as grandes atividades de pesca se davam em momentos específicos no ano. Assim como a agricultura, a ação também era dividida em duas estações principais: no Verão, de novembro a abril, época mais úmida, havia o período das pescas mais importantes. Já no Inverno, de maio a agosto, quando as temperaturas eram mais amenas e menos chuva, ocorria especialmente a pesca da tainha.

A captura de tainhas, aliás, ocupou um papel importante em toda a sociedade caiçara até os anos 1960, e ainda hoje continua relevante nas comunidades mais isoladas.

Postais

O labor dos pescadores tornou-se um atrativo irresistível para os fotógrafos do início do século 20. Os artistas da lente, fascinados pela energia e pela coreografia da pesca artesanal, capturavam cenas de uma época que hoje parece quase irreal. Suas fotografias eternizavam a agitação e a poesia do trabalho diário, transformando momentos efêmeros em imagens que transcenderam o tempo, oferecendo-nos vislumbres de um passado que despareceria aos poucos.

Destarte, as imagens mais marcantes frequentemente se transformavam em cartões postais, conduzindo a iconografia de Santos para todos os cantos do mundo, revelando uma cidade bucólica em rápida transformação. Tais registros capturavam a essência de uma atividade destinada a desaparecer diante do avanço do progresso e da ocupação urbana da orla marítima. Os postais eternizavam, enfim, cenas do cotidiano simples e poético, servindo como testemunhos de uma era que se desvanecia, onde a pesca artesanal e a tranquilidade da vida litorânea davam lugar à inevitável modernização.

Já nos anos 1930, as vibrantes cenas de pesca de arrastão nas praias do Gonzaga haviam se tornado apenas lembranças do passado. A prática persistiu por algum tempo no José Menino, e por último, na Ponta da Praia, reduto da última comunidade caiçara na parte insular de Santos. A Ponta da Praia, aliás, ainda resiste como um refúgio para a pesca amadora e esportiva, um remanescente de uma era romântica e lindamente tradicional do povo santense. Fechando os olhos e deixando as vozes da mente agir, é possível ouvir o eco das redes sendo lançadas ao mar, o canto dos pescadores e a simplicidade da vida caiçara brotar por todos os cantos, evocando na memória coletiva uma nostalgia que se entrelaça com as brisas do oceano. E isso também é ser santista!

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Peixes à beira-mar

É importante salientar que a pesca de arrastão era possível há 100 anos em função da baixa ocupação urbana de Santos, e de São Vicente, em toda a ilha, o que permitia a migração de várias espécies de peixes e mamíferos marinhos (baleias e golfinhos) para fins reprodutivos, não só a Baía de Santos, mas por todo o sistema de magues e rios que compõem a rica biodiversidade da Baixada Santista.