Monumento traz consigo a curiosa marca de 14 quilômetros percorridos ao longo de sua existência.
Santos, madrugada de 4 de junho de 1975. O velho pescador metálico, então fiel guardião das fronteiras entre Santos e São Vicente, repousava sereno, com sua rede de arrasto firmemente em mãos. Ali estava, imponente e imóvel, desde novembro de 1960, por quase 15 anos, convidando moradores e visitantes a descobrir os encantos da cidade santista, como um anfitrião silencios, mas confiável. Contudo, naquela madrugada levemente gelada, algo perturbou a sua vigília. De repente, passado pouco mais de uma hora da madrugada, um rugido crescente rompeu a quietude da orla do José Menino, e o som áspero dos pneus em atrito com o asfalto invadiu o ar. Um segundo apenas foi suficiente para gerar um estrondo que abalou o solo e, com ele, o pedestal que sustentava o velho pescador. A estátua, que por tanto tempo resistira aos ventos e outras intempéries, tombou ao chão, nocauteada pelo impacto brutal de um caminhão autobomba do Sexto Grupamento de Incêndio, que, desgovernado, selou o destino do antigo guardião metálico. Os tempos haviam mudado e aquele espaço já não era mais seguro. Era preciso fazer a estátua “andar”. E o pescador, como propriedade, se tornaria um exímio expert em contrariar sua natureza original.
Andarilho desde o nascimento
A mudança de ares não era novidade para o Pescador quando o destino lhe pregou a peça em 1975. Nascido sob a inspiração da simplicidade e da coragem de sua gente, a estátua foi idealizada durante a gestão do prefeito Antônio Gomide Ribeiro dos Santos (1941-1945), como uma homenagem à figura icônica do pescador santista, sempre avistado com suas redes de arrasto nas praias. O monumento foi inaugurado em 16 de janeiro de 1943, na ocasião da visita do interventor federal (na época o cargo equivalente ao de governador do Estado de São Paulo), Fernando Costa, à cidade de Santos. Seu local de origem foi o jardim da orla, defronte ao Instituto Escholástica Rosa. Ali, o Pescador ergueu-se pela primeira vez, abençoando o horizonte com sua presença serena.
A obra foi assinada pelo escultor italiano Ricardo Cipicchia. Por sua criação em bronze, Cipicchia recebeu o pagamento de 18 contos de réis, o que, nos dias atuais, equivaleria a aproximadamente R$ 225 mil — uma quantia que cobriu não apenas o trabalho do artista, mas também o material nobre e o pedestal de granito sobre o qual o Pescador repousava.
Naquele local, o Pescador permaneceu vigilante por 17 anos. No entanto, com as transformações da cidade, foi convocado pela municipalidade a assumir um novo papel. Durante a reurbanização promovida pela Prefeitura no bairro do José Menino, o pescador de bronze foi escolhido para se tornar o anfitrião na fronteira praiana entre Santos e São Vicente. Ali, sob o sol ardente e as brisas constantes, ele iniciava uma jornada que o elevaria entre os monumentos da cidade, ganhando a curiosa fama de contestador de sua condição de estátua. Irrequieto, o Pescador parecia destinado a “caminhar”, como se sua alma de aventureiro não pudesse permanecer fixa em um só lugar.
De um extremo ao outro
Após o fatídico acidente de 4 de junho, o Pescador iniciou uma nova etapa de sua saga. Em 29 de junho de 1975, ele foi levado para o outro extremo da faixa marítima de Santos, onde se empoleirou em um novo pedestal, desta vez em um refúgio mais seguro, longe do tráfego impetuoso que outrora ameaçara sua serenidade. Agora, ao lado do tranquilo vaivém do ferry, suas chances de ser novamente atropelado eram quase nulas. Respirando aliviado, longe dos imprevistos da fronteira entre Santos e São Vicente, ele se sentiu mais próximo de seus irmãos de jornada — os pescadores de carne e osso, que enchiam o ar com o cheiro de mar, vendendo peixes, camarões, ostras e outras delícias ao longo das areias do canal da barra.
De seu novo posto, o Pescador testemunhou o florescimento da vida ao seu redor: o surgimento do Mercado de Peixes, do Entreposto de Pesca, e de tantas outras modernidades que transformaram a antiga arte da pesca em algo grandioso. Ali, com os pés firmes sobre o pedestal, ele se fundiu com o cenário, tornando-se o símbolo da profissão que tanto homenageava. E assim, inerte mas contente, o Pescador permaneceu por mais 34 anos, observando o ritmo da vida à sua volta.
A jornada final. Será?
O ano era 2009. A modernização da Ponta da Praia trazia mudanças drásticas ao cenário. A administração da época decidiu reformar todo o viário para melhorar o acesso às balsas, e o Pescador, que há anos habitava seu próprio cantinho junto ao Mercado de Peixes, acabou despejado novamente. O destino novamente o colocou em movimento. Como compensação pela mudança forçada, escolheram instalá-lo próximo ao Aquário Municipal. “Tudo bem,” pensaria hipoteticamente o Pescador, resignado, “pelo menos ainda há peixes por aqui!” Só que, desta vez, peixes vivos, nadando livremente nos tanques do equipamento turístico mais frequentado da cidade.
Para dar um toque especial ao novo lar, criaram um espelho d’água ao seu redor, decorado com pequenos peixes cenográficos que pareciam brincar com sua rede de arrasto. Uma tentativa simpática de fazê-lo se sentir em casa, mesmo que a familiaridade fosse apenas uma ilusão.
E, assim, nossa estátua andarilha permanece até os dias atuais, observando o vai e vem de crianças, turistas e santistas que passeiam pela Ponta da Praia. Seu olhar distante agora testemunha o mundo em movimento, enquanto ele próprio já percorreu mais de 14 quilômetros pela orla de Santos. Sim, você não leu errado: 14 quilômetros! Enquanto outras estátuas ficam estáticas, imersas em décadas de imobilidade, o Pescador desfilou pela praia, mudando de cenário e perspectiva. É como se, em sua essência inquieta, ele nos dissesse: “Por que ficar parado, se eu posso explorar?”