Bartholomeu Fernandes de Faria liderou grupo determinado a combater a exploração do sal, enfrentando os poderosos da Vila de Santos.
Santos, outubro de 1710. A manhã estava cinzenta quando Bartholomeu Fernandes de Faria parou no alto da Serra, o olhar fixo na vila de Santos ao longe. Ele sabia que o dia seria decisivo. Ao seu lado, homens de semblantes resolutos ajustavam as alças de suas armas, enquanto os Carijós (índios) verificavam os cavalos de carga. A comitiva era numerosa (mais de 200 homens) e organizada, mais parecendo um pequeno exército. Porém, o objetivo do grupo não era de conquista, e sim de justiça.
Há semanas, Bartholomeu ouvia manifestações de descontentamento dos moradores das regiões do interior da capitania. O sal, tão essencial à vida cotidiana, tornara-se um luxo inalcançável. A especulação desumana dos contratadores em Santos sugava as economias e ameaçava a qualidade de vida dos mais pobres. De certa forma, sabia-se que a coroa taxava o sal, mas a um preço justo, enquanto os poderosos negociadores da vila de Santos, protegidos por uma rede de influências, usavam a necessidade alheia para enriquecer. Era preciso agir, e Bartholomeu estava decidido a fazê-lo.
“Homens”, começou Faria, sua voz firme cortando o silêncio do grupo. “Hoje, descemos à vila de Santos não como saqueadores, mas como instrumentos de justiça. Não levaremos mais do que o necessário, nem faremos uso da violência, a menos que nos ataquem. Cada um aqui sabe por que estamos lutando: por nossas famílias, por nossos vizinhos e pelo direito de viver com dignidade.”
Após deliberarem, o grupo iniciou a descida pela trilha que levava a Cubatão e, de lá, utilizando pequenos barcos transportados pela tropa, navegou até as proximidades de São Vicente, avançando com cuidado. Somente ao entardecer chegaram à entrada da vila de Santos, onde os imponentes armazéns de sal se destacavam à frente. Bartholomeu ergueu o punho, sinalizando para que seus homens parassem. Em seguida, avançou sozinho até a entrada de um dos depósitos e bateu com firmeza na porta, enquanto um silêncio tenso envolvia o cenário. “Chame o contratador”, ordenou ao guarda atônito. “Diga-lhe que Bartholomeu Fernandes de Faria deseja negociar.”
Minutos depois, o contratador surgiu, o rosto pálido de medo. Bartholomeu o tranquilizou, garantindo que não lhe faria mal, desde que cooperasse. “Apenas queremos justiça”, disse ele, seu tom grave. “Abriremos os armazéns, tiraremos o sal necessário e pagaremos o preço justo. Nem um vintém a menos, nem um vintém a mais. E você assistirá, para que saiba que nada aqui será roubado.”
As portas do armazém, então, foram abertas. Os homens de Bartholomeu entraram, medindo cuidadosamente cada saco de sal. Enquanto isso, o fiel da Fazenda Real foi chamado para recolher os 400 réis por alqueire destinados à coroa. O contratador, sem palavras, observava, incapaz de resistir à autoridade moral e prática de Bartholomeu. A operação ocorreu com uma ordem quase militar. O sal foi carregado nos cavalos e nas costas dos Carijós, que formaram uma longa fileira em direção à saída da vila.
Quando tudo estava pronto, Bartholomeu olhou uma última vez para o contratador. “Você enriqueceu às custas do sofrimento alheio. Hoje, aprendeu que há limites para sua ganância. Que esta lição o faça refletir.” Com isso, virou-se e liderou sua comitiva em direção a São Vicente.
A estrada de volta era longa e traiçoeira. Bartholomeu sabia que a infantaria de Santos poderia persegui-los, então ordenou que seus homens derrubassem a ponte sobre o Rio São Jorge, criando uma barreira natural. Enquanto os primeiros raios de sol despontavam no horizonte, o grupo alcançou Cubatão, já fora do alcance das tropas inimigas.
Na vila de Santos, o alarme havia soado. Soldados e moradores se reuniram para discutir o ocorrido, mas a destruição da ponte os deixou impotentes. Muitos respiraram aliviados ao perceber que Bartholomeu não havia causado estragos além do necessário. Não houve saques, nem violência. Apenas uma mensagem clara: a justiça ainda podia prevalecer.
Bartholomeu e seu grupo foram recebidos como heróis pelos moradores de serra acima. O sal distribuído foi suficiente para meses, garantindo alívio para muitas famílias. Mas a paz de Bartholomeu não duraria para sempre. Anos mais tarde, já idoso e recluso em uma cabana em Itanhaém, ele foi capturado por soldados enviados pela coroa. Acusado de subversão, foi levado para Santos e, em seguida, transferido para a Bahia, onde encontrou seu fim.
O contexto da revolta
No início do século XVIII, o sal era um recurso indispensável na América Portuguesa, utilizado tanto para o consumo humano quanto para a conservação de alimentos, especialmente carnes e pescados. Desde 1631, seu comércio era controlado pelo monopólio régio, com rígida supervisão da Coroa. Os contratadores, autorizados a comercializar o produto, frequentemente manipulavam os estoques e preços, causando escassez e sofrimento.
O problema agravou-se com o crescimento da economia mineradora. A alta demanda por alimentos conservados, consumidos pelos trabalhadores das minas, elevou os preços do sal a níveis insuportáveis. Em Santos, o produto tornara-se um luxo, praticamente inacessível para muitas vilas. Protestos e revoltas já haviam ocorrido em outras capitanias, como no Rio de Janeiro e na Bahia, mas a Coroa raramente tomava medidas efetivas para mitigar a situação.
Bartolomeu Fernandes de Faria Neste contexto, Bartolomeu Fernandes de Faria emergiu como uma figura central do conflito. Conhecido como um potentado paulista, era um homem de influência e riqueza, proprietário da fazenda Angola em Jacareí. Contudo, sua trajetória foi marcada pela ousadia e pela capacidade de desafiar o poder estabelecido. Liderar uma invasão a Santos e tomar o sal armazenado foi um ato de coragem e um claro desafio ao monopólio régio e à ordem colonial.
Após o episódio de 1710, Bartolomeu tornou-se uma figura controversa. Por um lado, foi visto como um herói por aqueles que se beneficiaram de sua ação; por outro, tornou-se persona non grata para as autoridades portuguesas. Sua resistência continuou por anos, até ser capturado em 1718, já idoso. Levado à Bahia para julgamento, morreu antes de ser condenado.