Memórias do chão onde vivo

Panorâmica da região da Luis de Camões nos anos 1930, quando ali ainda funcionavam os estábulos para burros e vacas.

 

Espaço que já acolheu cocheira de burros, comércio de vacas, fábrica de jeans e o quartel onde o Rei Pelé, maior jogador do mundo, serviu como vigilante, é o mesmo onde resido há 27 anos.

Vou pedir hoje, aos meus queridos leitores, uma licença especial para tratar de um assunto ligado diretamente ao meu cotidiano: a memória do espaço onde moro há 27 anos. Faço isso até em coerência com o que costumo afirmar em palestras e atividades educativas: tão importante quanto conhecer a história do mundo, do Brasil, de São Paulo ou mesmo da nossa região, é fundamental compreender a história do lugar em que vivemos diariamente.

A ideia do texto de hoje surgiu de maneira concreta quando visitei a exposição sobre os 80 anos da Força Expedicionária Brasileira (FEB), organizada pelo núcleo educativo da Fortaleza de Itaipú, e abrigada na Societá Italiana. Durante a visita, conversei com o capitão Alexandre Martins Dutra, responsável pela mostra. No decorrer do papo, ele me perguntou se eu conhecia pessoalmente a Fortaleza. Respondi que não, mas que tinha ciência de dois episódios associados ao local: o bombardeio por aviões durante a Revolução de 1932 e a informação de que Edson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé, teria servido lá no período em que esteve no Exército, entre 1958 e 1959.

O capitão, então, esclareceu que Pelé, ao contrário do que muita gente dizia, não serviu em Itaipú, mas sim em um quartel situado na Rua Luís de Camões, nº 128, em Santos.

Ao ouvir sobre o endereço, fiquei surpreso, pois trata-se exatamente do local onde resido desde 1998 com minha família, e onde minha filha nasceu e foi criada.  Empolgado com a informação, e sem hesitar, iniciei uma busca por essa história e, a partir dela, por outras relacionadas àquele trecho de chão santista, situado às margens da mais antiga rota oficial de ligação entre o Centro e a orla, o chamado Caminho Velho da Barra.

Cocheira de burros e venda de vacas de leite

Em meados do século XIX, o velho Caminho da Barra permanecia pouco ocupado por construções, embora tenha sido a primeira via a receber trilhos para a circulação dos bondes de tração animal. Nesse contexto, é razoável supor que o trecho da atual Rua Luís de Camões, localizado quase no meio do percurso, tenha se mostrado o ponto ideal e estratégico para a instalação de uma cocheira, destinada às trocas dos animais sempre que necessário.

Com o avanço da malha urbana, a abertura de novas vias ligando o Centro à orla e a substituição dos burros pelos bondes elétricos, a demanda por cocheiras diminuiu gradativamente. Ainda assim, em 1925, quando Santos registrava grandes progressos urbanísticos e no transporte coletivo, o terreno da rua Luís de Camões, 128, mantinha firme seu serviço de cocheira. O local oferecia baias para até 60 burros, garantindo abrigo e alimentação com o que anunciava como o melhor capim da cidade. Além desse serviço, também disponibilizava garagem para caminhões, ao custo de 40 mil réis por veículo. Durante os anos 1930, o local, então conhecido como Estábulo Pinto de Barros, ampliou suas atividades e passou também a comercializar vacas leiteiras — provavelmente da raça holandesa, criadas na instituição Gota de Leite.

Anúncios em 1936, 1937 e 1940

Rei Pelé fazia a vigia do espaço

Em 1.º de outubro de 1942, o endereço passou a abrigar o 6.º Grupo de Artilharia da Costa Motorizado (6.º G A Cos M), que ali construiu um amplo quartel, com casernas, áreas de treinamento e setores administrativos. Foi nesse mesmo local que, em 1959, um jovem já consagrado mundialmente pelo esporte se apresentou ao serviço militar obrigatório, em gesto de disciplina e patriotismo. Apenas um ano antes, em 1958, ele havia encantado o planeta ao conquistar, com apenas 17 anos, a primeira Copa do Mundo pela Seleção Brasileira, na Suécia.

Seu nome? Edson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé. Mas, se do lado de fora ele era o jogador mais famoso e admirado do mundo; dentro dos muros do quartel da Rua Luís de Camões, era apenas o soldado Nascimento. Ali, o jovem Rei cumpriu a rotina rígida do aquartelamento, entre treinos, ordens e escalas de vigilância, muitas vezes designado à função de sentinela na guarita de entrada. Mesmo conciliando as exigências da vida militar, Pelé continuou defendendo o Santos Futebol Clube e a Seleção Brasileira. Nesse período, em 1959, conquistou o título do Campeonato Sul-Americano, somando vitórias tanto no campo quanto na vida castrense.

Em abril de 1960, por determinação do General Teixeira Lott, então ministro da Guerra, o 6.º Grupo de Artilharia da Costa Motorizado se transferiu para as dependências da Fortaleza de Itaipu.

Momentos de Edson Arantes, o Rei Pelé, no quartel do 6.º Grupo de Artilharia da Costa Motorizado (6.º G A Cos M), situado na Luis de Camões, 128. Na primeira imagem, o soldado Nascimento (nr 201), marcha em frente ao portão do Quartel. Na sequência, na guarita de vigilância, com os colegas de caserna, com um companheiro e com a camisa do Santos FC.

No topo da moda

Após ter servido como espaço militar durante quase duas décadas, o imóvel da Rua Luís de Camões, 128, ganhou novos usos. Um dos mais marcantes foi a instalação da MacChad, tradicional indústria de confecções de Santos. Fundada em 1926 pela família Chaddad, a empresa consolidou-se no mercado santista passou a investir, nos anos 1960, na produção de jeans, setor em expansão no país. Em 1978, a MacChad transferiu sua fábrica para o espaço da Luís de Camões, por oferecer condições adequadas para ampliar a capacidade produtiva. No novo endereço, a empresa viveu um ciclo de crescimento expressivo. Nos anos 1980, sob a direção de Omar Laino, recebeu investimentos que modernizaram a planta industrial, com aquisição de máquinas, instalação de lavanderia especializada em jeans e abertura de uma loja ao lado da fábrica.

O período foi marcado por forte expansão: em 1984, a produção anual era de 220 mil peças; seis anos depois, já alcançava 460 mil. A marca diversificou sua linha, incluindo calças, camisas e malharia em diferentes tecidos, além de intensificar exportações, especialmente para os Estados Unidos. A fábrica chegou a empregar cerca de 300 trabalhadores, além de manter oito lojas espalhadas pela região metropolitana e no interior. O crescimento foi tão expressivo que, em 1989, uma missão comercial soviética chegou a convidar a empresa a instalar uma filial na URSS, fato que ilustrava o prestígio internacional da marca. A fábrica permaneceu no espaço até 1993.

Aérea da região da Luis de Camoes, 128. No centro, o complexo esportivo do Clube Atlético Santista. No destaque pontilhado, a planta da fábrica do Jean McChad, nos anos 1980.

Residencial Varandas

Omar Laino, além de dirigir a MacChad, também atuava no ramo da construção civil. Em 19 de abril de 1995, sua empresa, a Phoenix, lançou no antigo endereço da Rua Luís de Camões, 128, o Residencial Varandas: um condomínio com três torres de nove andares cada, que marcou uma nova fase na trajetória do espaço. E ali, onde já existiram cocheiras de burros, comércio de vacas leiteiras, o quartel em que o Rei do Futebol serviu ao Exército e a fábrica de uma marca de jeans de alcance internacional, surgia agora um conjunto habitacional moderno, e que iria marcar minha trajetória pessoal.

Há 27 anos, vivo nesse endereço, no oitavo andar de uma das torres, sem imaginar de início que o chão onde moro guardava tantas histórias singulares. É por isso, caro leitor, que insisto numa ideia que repito em palestras e conversas: conhecer as histórias da nossa cidade, do nosso bairro, da nossa rua e até mesmo do nosso lote é um exercício fundamental. Afinal, muita coisa surpreendente pode estar escondida sob os nossos próprios pés.

Residencial Varandas em 2024