
Santos foi, há 200 anos, o ponto de partida para uma das maiores expedições científicas da história do Brasil
Vila do Porto de Santos, 6 de setembro de 1825. O cais da Alfândega mantinha-se tranquilo sob o sol da tarde quando, por volta da uma hora, a sumaca* Aurora atracou vinda do Rio de Janeiro. O pequeno veleiro de dois mastros, após três dias de travessia desde a capital do novo Império, trazia a bordo uma comitiva incomum: a da Expedição Langsdorff, organizada para desbravar e documentar cientificamente o interior do Brasil. À frente do grupo, seguia o barão Georg Heinrich von Langsdorff, naturalista alemão e cônsul da Rússia, homem de espírito inquieto e olhar voltado à descoberta. Ao seu lado viajavam o botânico alemão Ludwig Riedel, o astrônomo e oficial da Marinha Imperial Russa Nester Gavrilovich Rubtsov, o zoólogo alemão Christian Hasse, e os desenhistas franceses Adrien-Aimé Taunay e Hercule Florence, responsáveis por registrar em imagens o que a ciência descrevesse em palavras.
Às três da tarde, o grupo finalmente desembarcou e seguiu até a residência do vice-cônsul inglês William Whitaker, onde foram recebidos com cortesia e curiosidade. Ali repousaram brevemente, preparando-se para a grande travessia que os levaria das águas do Atlântico às profundezas do continente.
*tipo de embarcação própria para navegação costeira.
Registros em Santos
Porém, antes de iniciarem a longa jornada pelo interior do Brasil, os integrantes da Expedição Langsdorff permaneceram em Santos por cerca de vinte dias, observando sua geografia, edificações e costumes. Adrien Taunay produziu alguns registros artísticos que se tornariam preciosas testemunhas da paisagem santista do início do século XIX. O mais importante foi o desenho em aquarela que fez do Mosteiro de São Bento, captando com rara sensibilidade o edifício colonial e o ambiente que o cercava.
Nesse breve intervalo, o astrônomo russo Nester Rubtsov também aproveitou para exercitar suas habilidades e elaborar um mapa da vila e do porto de Santos com precisão surpreendente — cerca de 95% de exatidão, mesmo dispondo apenas de instrumentos simples de navegação e medição.
O mapa que produziu apresentava uma peculiaridade: manchas escuras que, à primeira vista, poderiam ser confundidas com marcas do tempo. No entanto, ao se observar com mais atenção, notava-se que representavam as elevações dos morros que delimitavam a antiga vila.
Cubatão
Outro ponto explorado pelos cientistas da expedição foi o sopé da Serra do Mar, região de densa vegetação e rios sinuosos que despertaram grande interesse entre os naturalistas. Em diversos trechos navegáveis, foram coletadas espécies de plantas e realizados registros paisagísticos que documentaram a exuberância da natureza local. Um desses trabalhos, uma aquarela em tons escuros, retratou um trecho do rio Cubatão, nas proximidades de Santos, revelando com precisão o cenário úmido e enevoado da mata atlântica.
Hercules Florence, por sua vez, dedicou-se a registrar vistas de Cubatão, incluindo o Porto Geral e a Calçada do Lorena, importante caminho colonial que ligava o litoral ao planalto.
Boa parte desses trabalhos — em especial o mapa cartográfico de Nester Rubtsov e a aquarela do Mosteiro de São Bento, feito por Adrien Taunay — foi posteriormente remetida à Academia Imperial de Ciências de São Petersburgo, na Rússia, onde permanece até hoje preservada como parte do valioso acervo da Expedição Langsdorff, símbolo da união entre arte, ciência e descoberta.
A Expedição Langsdorff
A Expedição Langsdorff, que teve início em Santos, foi uma das mais ousadas e abrangentes viagens científicas do século XIX. A rota traçada pelo grupo seguiu um vasto percurso fluvial: Tietê, Paraná, Pardo, Coxim, Taquari, Paraguai, São Lourenço, Cuiabá, Preto, Arinos, Juruena, Tapajós e Amazonas, até alcançar o Atlântico no Pará. A missão tinha como propósito descrever e catalogar a natureza, os povos e os recursos do interior brasileiro — uma jornada que unia ciência, arte e resistência diante das adversidades tropicais.
Um diário de bordo foi redigido pelo próprio Langsdorff até 20 de maio de 1828, quando a comitiva se encontrava em Tocarizal, às margens do rio Juruena, próximo ao Salto Augusto. Adoecido e esgotado, o barão registrou uma última nota melancólica: “Todos à minha volta estão doentes; apenas Florence está em condições de escrever o diário, que vou incorporar ao meu.” Pouco antes, a expedição sofrera a perda trágica de Aimé-Adrien Taunay, afogado no rio Guaporé, e o próprio Langsdorff teve um colapso mental nas proximidades de Diamantino.
O retorno ao litoral foi feito pela costa brasileira, com embarque em Belém do Pará e chegada ao Rio de Janeiro em 10 de março de 1829. O diário de Hercule Florence foi publicado pela primeira vez em 1875 pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com o título Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas (1825–1829), e desde então tornou-se uma referência clássica sobre o Brasil oitocentista.
O vasto material científico e artístico coletado pela expedição — incluindo o diário original de Langsdorff — foi enviado à Rússia e permaneceu esquecido por quase um século, até ser redescoberto em 1988. Em 1997, o diário de Langsdorff foi publicado no Brasil, resultado de um extenso trabalho de tradução, pesquisa e revisão científica — um reencontro tardio, mas fundamental, com uma das epopeias mais notáveis da história científica e cultural do Brasil, que começou em Santos.
Mapa de Santos produzido pelo russo Nester Gavrilovich Rubtsov. As manchas escuras representam as cadeiras de morro da região.
Aquarela do Mosteiro de São Bento em 1825, produzido por Adrien-Aimé Taunay


