Corria o ano de 1919, quando o Santos Football Club, contando com apenas sete anos de existência, disputava pela quinta vez o Campeonato Paulista de Futebol (pela Associação Esportiva de Esportes Atléticos – APEA). O time de Vila Belmiro vinha de uma performance razoável no campeonato anterior, tendo alcançado a quarta posição no torneio (sua melhor colocação desde a estreia, em 1913). Assim, a expectativa para a edição de 1919 era grande, ainda mais com a vantagem de disputar a primeira partida em casa, contra o Mackenzie, agremiação criada em 1898 por alunos da famosa universidade.
Apesar de o Memória Santista não focar-se em artigos sobre o Santos FC (por conta dele já possuir um grande número de memorialistas), a descoberta recente de uma incrível reportagem publicada numa raríssima (e talvez única existente) edição da revista santista “A Nota”, de julho de 1919, empolgou-nos a ponto de decidirmos compartilhar esta preciosidade com nossos leitores.
Além do fato em si, rico em detalhes, e das incríveis imagens que mostram o campo do alvinegro praiano, na Vila Belmiro, o texto revela os curiosos termos estrangeiros utilizados na época para definir as posições dos atletas e outras peculiaridades acerca do esporte bretão (britânico, uma vez que o futebol, ou football, surgira na Inglaterra, em 1862).
A seguir, a reportagem, na íntegra, corrigida ortograficamente (mas preservando as terminologias em inglês). Entre parênteses, algumas observações, quando se fizerem necessárias.
O segundo quadro do Santos Futebol Clube em sua estreia no Campeonato Paulista de 1919, o quinto que disputava em sua história. Na foto estão Rizzo (goleiro), Américo, Pacheco, Álvaro Dantas, Junqueira, Fomm, Caio, Newton, Nabor, Oswaldo e Waldemar.
CAMPEONATO PAULISTA
Santos – Mackenzie
Não podia ser mais auspiciosa a estreia do simpático clube do Miúdo (Arnaldo Silveira, ponta esquerda do Santos FC) nas lides do atual campeonato paulista. Foi além de todas as expectativas a atuação do Santos. Embora, nas rodas esportivas, houvesse a confiança costumada na equipe alvinegra, existia, no entanto, um determinado receio, em virtude das modificações feitas à última hora no seu quadro e do delicado estado de saúde de alguns de seus playeres (jogadores).
Depois, o seu competidor vinha acompanhado de uma certa fama, pois que o glorioso team (time) colegial d’outrora havia perdido aquele aprumo, aquele luzido conjunto, tornando-se uma esquadra heterogênea nos seus elementos, mas forte e perigosa com o seu jogo pesado.
Quem assistiu às pelejas em que a brilhante equipe colegial se apresentava com aquela distinção e galhardia própria dos seus componentes, devia sentir-se penalizado vê-la substituída por elementos que formam o mais perfeito contraste com o seu passado.
Não discutimos cores, pois que somos daqueles que nos batemos pelos ideais democráticos e que julgamos que o preconceito das raças não cabe mais nos nossos dias; mas nem por isso deixamos de defender a seleção, por todos os princípios aceitáveis – esportiva e socialmente falando.
É deveras, pois, caricato que uma equipe que ainda conserva o glorioso título do Mackenzie se apresente formada por soldados da Força Pública sem um protesto severo de seus fundadores.
Um team de colegiais de Bernardeli, e que na verdade provaram bem aproveitar as lições de seu mestre, mostrando a sua ginástica.
Mas pondo de parte estes ligeiros reparos passemos a dizer algo do jogo.
A contenda dos segundos teams (na época, existia a disputa de dois “quadros” dos times envolvidos no campeonato: os titulares e os aspirantes) , a princípio, foi interessante, pois a linha do Mackenzie, além de rápida, combinava regularmente, sendo auxiliada por um bom center-forward (o centroavante).
Porém, os santistas enfrentavam o adversário com ardor, cabendo a Oswaldo, depois de perder, à porta da cidadela antagonista (grande área do adversário), ótimos momentos de abrir o score (placar), fazer para a sua equipe o primeiro goal (gol).
O Mackenzie redobra os esforços. Pela ala esquerda faz um ataque ao posto de Rizzo que, ao defender o certeiro tipo, deu mais de dois passos com a esphera (bola) na mão, sendo punido com um free-kick (falta em lance direto). A ocasião era propícia aos paulistanos para obter de novo a diferença, mas não conseguiram, sendo o pontapé livre defendido pelos santistas, otimamente.
O domínio do Santos principiou a desnortear o adversário, que nada mais fez no primeiro half-time (primeiro tempo, ou metade, da partida).
Na segunda fase do jogo os locais tomaram um vivo ascendente sobre o seu adversário, conseguindo engarrafa-los a cada passo, resultando desse domínio serem marcados mais cinco goals, sendo dois por Oswaldo e os restantes por Junqueira, Waldemar e Floriano, terminando, assim, a contenda com a vitória do Santos por 7 x1.
Os dois quadros do time adversário, o Mackenzie, de São Paulo. Ambos seriam derrotados pelos santistas.
Encontro dos primeiros teams
A assistência (público) que era numerosa, apesar do dia se apresentar um tanto borrascoso (tempo nublado), estava ansiosa pelo desenrolar da luta e aguardava confiante a vitória dos santistas, confiança esta que se tornara mais firme após o encontro dos segundos quadros.
Às 15h10, acompanhados do referee (juiz da partida), sr. Nestor Pedrozo, entraram as equipes em campo, sendo saudadas com fortes aplausos.
Procedidos as formalidades regulamentares, iniciou-se a peleja (partida), sem que nos primeiros momentos se pudesse aquilatar (avaliar, julgar) do valor da equipe visitante. Ambas desenvolviam atividade, salientando-se a extrema direita mackenzista pela sua rapidez na corrida.
Dez minutos decorridos de jogo, os dianteiros santistas investem à cidadela paulistana. O ataque torna-se cerrado, registrando-se quatro tiros em goal que o goal-keeper (goleiro) rebateu habilmente, revelando as suas qualidades de excelente arqueiro (goleiro). Porém, Pereira, aproveitando a chance que se lhe ofereceu, conseguiu vencer a sua destreza e marcar o primeiro goal do Santos, entre vivos aplausos.
Os mackenzistas responderam ao ataque e conseguem fazer três investidas ao posto de Randolpho, havendo este, em uma das vezes, feito ótima defesa, depois de driblar dois adversários que pretendiam chargeá-lo (marcar o adversário) .
Os nossos mostravam-se ativos. Arnaldo, na meia, desenvolve um excelente jogo, formando um admirável trio com Haroldo e Millon.
Marba, que foi um bom center-half, incansável e cuidadoso na distribuição. De combinação com Millon, que, apesar de adoentado, portou-se regularmente, proporcionou uma incursão à cidadela inimiga. Millon, ao receber daquele um passe por alto, dá uma cabeçada em direção ao goal e Haroldo, otimamente colocado, aproveita a esphera para incontinente envia-la para a rede, sem que o goal-keeper pudesse defende-la, conquistando, assim, o segundo goal do seu club.
Campo da Vila Belmiro, em julho de 1919, recebendo a partida Santos x Mackenzie, na estreia do time praiano do Paulista daquele ano.
O domínio dos santistas torna-se cada vez mais acentuado, forçando o goal-keeper do Mackenzie a produzir brilhantes defesas.
Millon consegue arrebatar a esphera do adversário, mas prosseguido por este dribla-o e, prontamente, aproveitando bem o momento que se lhe ofereciam chuta em goal. O goal-keeper tenta defender-se, mas a esphera resvala-lhe pelos dedos e vai aninhar-se no canto da rede, marcando, para a sua equipe, o terceiro ponto.
Continuam os ataques do Santos. Jarbas produz excelentes centros (cruzamentos), mas os zagueiros inutilizam-os com a sua intervenção.
Quase ao finalizar o tempo, os atacantes paulistanos desenvolvem a sua atividade e conseguem por em perigo a cidadela santista.
Randolpho faz uma bela tirada, porém o center-forward aproveita a esphera para uma pronta rebatida, indo, violentamente, bater na trave, salvando a perigosa situação de Randolpho.
Pouco depois termina o tempo com o resultado de 3×0.
Terminado o descanso, a luta prossegue e nos primeiros momentos a equipe visitante mostrava-se disposta a vender caro a sua derrota, tal foi a atividade dos seus ataques, em que Randolpho, Cícero e Arantes tiveram que manter-se firmes nos seus postos para que o adversário não conseguisse tirar proveito desses embates.
Mas esses feitos foram pouco duradouros, pois os santistas responderam impetuosamente aos ataques do seu adversário e Haroldo, aproveitando um passe de Millon, marca o quarto goal.
Arquibancada o campo do Santos FC lotada de torcedores. Interessante notar que praticamente todos fazem uso de chapéu.
Os paulistanos, pouco depois, voltam atacar e o seu center-forward conseguiu carregar a esphera até a porta do goal de Randolpho, onde a perde desastrosamente.
Devolvida a esphera aos dianteiros santistas, Jarbas aproveita-a e, correndo célere pela extrema, dá um tiro enviesado em goal, que passa junto à trave, não conseguindo o goal-keeper desviar-lhe a direção, indo a esphera cair aos pés de Miúdo que, com um dos seus belíssimos shootes (chute) fê-la aninhar-se na rede, conquistando o quinto goal.
A luta diante do franco domínio dos santistas foi perdendo a cada passo todo o entusiasmo, cabendo aos paulistanos fazerem de vez em quando uma ou outra investida sem resultado maior.
Haroldo consegue novamente varar o retângulo (gol) adversário e por fim Millon, que foi impiedoso para com o adversário com as suas piruetas (algo como firulas), no que não o aplaudimos, conseguiu marcar o sétimo e último goal da partida, vencendo, pois, o Santos o Gymnásio da Força Pública por 7×0.
O sr. Nestor Pedrozo foi um referee imparcial e criterioso, agindo com a máxima correção. Diante da sua atuação resta-nos apenas felicita-lo.