A era dos hidroaviões

Hidroavião do Sindicato Condor na Ponta da Praia nos anos 1930

Santos foi um dos centros mais importantes da aviação na década de 1930, com seu aeroporto “molhado”

Santos, sábado, 1º de janeiro de 1927 — O dia começara com um céu limpo e um sol que subia lentamente, iluminando a parte alta dos morros e desfazendo, aos poucos, a bruma que ainda cobria as vertentes voltadas para o mar. Vista do alto, a linha da costa aparecia como um traço contínuo entre o verde da vegetação e o dourado da areia, com manchas de sombra e água espalhadas pela paisagem. No solo, enquanto a cidade despertava em ritmo calmo de feriado, um ponto metálico já cortava o céu, vindo do norte em direção ao litoral santista.

O visitante inesperado era o hidroavião “Atlântico”, modelo bimotor de construção alemã, que havia decolado horas antes da Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro. Com capacidade para até oito passageiros, o aparelho voava sobre o mar como parte de uma missão oficial, conduzindo autoridades, jornalistas e técnicos em um percurso experimental que pretendia testar a futura rota aérea entre o Rio de Janeiro e Florianópolis, tendo como escalas os portos de Santos, Paranaguá e São Francisco do Sul. Seu desenho robusto e aerodinâmico, aliado à capacidade de pousar de forma segura sobre a água, representava o avanço de uma nova etapa no transporte nacional, conectando o país pelas vias do céu e do mar.

Desde os tempos coloniais, a ideia de voar povoava o imaginário científico e popular. Bartolomeu Lourenço de Gusmão, nascido em Santos no final do século XVII, fora um dos primeiros a apresentar, diante da corte portuguesa, uma proposta concreta de navegação aérea. Apelidado de “padre voador”, idealizou a “passarola”, um balão impulsionado por ar quente, décadas antes de qualquer experiência semelhante na Europa. Dois séculos mais tarde, outro brasileiro daria forma definitiva ao antigo sonho: Alberto Santos Dumont, ao fazer decolar o 14-Bis em Paris em 1906, cravaria seu nome como um dos fundadores da aviação mundial. A jornada do Atlântico, portanto, era de certa forma herdeira de uma longa cadeia de iniciativas e experimentações santistas e brasileiras no campo da navegabilidade aérea.

Festa na terra santista

Ao, enfim, tocar as águas escuras da entrada do canal da Barra, o “Atlântico” foi recebido com festa pelos santistas. Uma multidão se aglomerou na Ponta da Praia para participar do momento histórico. Diversos automóveis estacionaram na areia praiana, em frente à Escola de Aprendizes Marinheiros — atual Museu de Pesca — de onde, aliás, saíram dezenas de jovens alunos, ansiosos por ver de perto a impressionante máquina aérea.

Entre os presentes ilustres estavam personalidades  como o cônsul alemão em Santos, Otto Uebele; o comerciante de café Kurt Gustav Von Pritzelwitz, conhecido por ser o proprietário do casarão do Barão, em São Vicente — atual sede do Instituto Histórico e Geográfico daquela cidade; e Augusto Hackerott Jr., gerente local da firma Zerrenner, Buelow & Cia. Ltda., que se tornaria o representante oficial do Condor Syndikat em Santos. Os três prepararam uma recepção no Parque Balneário Hotel para os visitantes.

Uma cena comum nos anos 1930, a presença de hidroaviões no canal de entrada do Porto de Santos

 

Um voo para impressionar

O voo do hidroavião “Atlântico” havia sido planejado como uma forma de demonstração oficial do Condor Syndikat, empresa aérea de origem alemã, que buscava firmar-se como operadora de linhas regulares no Brasil. O trajeto até Florianópolis serviria para avaliar as condições operacionais da rota e para apresentar às autoridades brasileiras as qualidades do novo modelo de transporte. Para reforçar a importância do fato, uma equipe de cinema filmou todo o trajeto.

No “Atlântico” estavam o então ministro da Viação e Obras Públicas do governo brasileiro, Victor Konder; os jornalistas Raul Portugal e Machado Florence; o cinegrafista Alberto Botelho, da Botelho Filmes; e Fritz Hammer, representante de Relações Públicas da Condor Syndikat, além da  tripulação, composta pelo piloto Rudolf Cramer von Clausbruch — oficial da Lufthansa cedido —, pelo mecânico de voo Franz Nuelle e pelo telegrafista Wirz. 

Autorização formal e desdobramentos

Menos de um mês depois desse voo, em 26 de janeiro de 1927, o ministro Victor Konder expediu o Aviso 60/G, concedendo, enfim, a autorização oficial para que o Condor Syndikat operasse as rotas propostas por um período de um ano, em caráter precário e experimental. A medida, ainda que provisória, representava um marco: era a primeira vez que o governo brasileiro autorizava uma empresa a realizar voos regulares com hidroaviões, antecipando a regulamentação que viria nos anos seguintes.

O aeroporto do Sindicato Condor em Santos

A partir dessa viagem inaugural, o Condor Syndikat passou a operar regularmente no Brasil, mantendo por vários anos um serviço aéreo contínuo de transporte de carga, passageiros e correspondências. Santos tornou-se, assim, um ponto de pouso estratégico nessa malha, atendendo não apenas a demanda local, mas também as conexões com o interior paulista e, sobretudo, com a capital do estado.

O canal da barra do porto passou a ser identificado nos mapas como o local do “Aeroporto do Sindicato Condor”, o primeiro ponto oficialmente reconhecido para pousos de aeronaves na cidade. Era ali que amerrissavam os hidroaviões da empresa alemã e também outras aeronaves semelhantes, consolidando Santos como elo importante no sistema aéreo nascente.

A partir de 1929, as operações do Condor Syndikat em Santos passaram a ganhar importância crescente, a ponto de o volume transportado — tanto de carga quanto de passageiros — ser incluído nas estatísticas oficiais do porto. Esses registros foram mantidos até 1939, quando cessaram com o início da Segunda Guerra Mundial.

Em decorrência do conflito, o serviço foi nacionalizado em 1942, após o Brasil declarar guerra às potências do Eixo. No ano seguinte, a empresa passou a se chamar Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul, marcando o início de uma nova fase na aviação comercial brasileira.

No pós-guerra, nos anos de 1949 e 1950, os hidroaviões voltaram a operar nas águas do porto de Santos. Contudo, o crescimento contínuo do tráfego de embarcações na região acabou por inviabilizar a manutenção do serviço. Em 1951, as operações foram definitivamente encerradas, marcando o fim da era dos hidroaviões no canal santista. Ao todo, Santos permaneceu integrada à aviação comercial por quase 25 anos.