Um dos capítulos mais conturbados da história santista, a tentativa de invasão da vila por corsários holandeses em 1615, foi minunciosamente narrada pelo renomado historiador brasileiro Afonso d’Escragnole Taunay, em sua obra “Na Era das Bandeiras” (1921). No capítulo “Um Assalto a Santos”, ele descreve cada passo dado pelos agressores e sobre suas intenções quando passaram pela região, bem como contextualiza os pretextos que fizeram com que Joris Van Spilbergen, comandante da armada inimiga, surgisse na barra santista.
Tal narrativa foi extraída de documentos deixados pelo escrivão da nau capitânia invasora, João Cornelissen de Mayz, que a escreveu em latim, no ano de 1617.
Afinal, quais motivos tiveram os holandeses para agredir a Vila de Santos? E por quê atacavam sistematicamente a costa brasileira, em especial a região Nordeste? Para compreender tal situação é necessário regressar ao ano de 1556, quando o Rei Filipe II, de Espanha, tornava-se também o soberano da Holanda, herdando o direito após a morte de seu pai, Carlos V.
Governados com mão de ferro, os batavos (povo de origem germânica que se fixou na antiguidade no delta do Rio Reno, onde estão os Países Baixos) acabaram se rebelando e fizeram eclodir uma guerra com objetivos separatistas, oficializada em 26 de julho de 1581. O novo país, ainda que não reconhecido pela maior parte dos reinos europeus, então, tentou fomentar algumas atividades marítimas comerciais próprias e esperançava potencializar a parceria que mantinha com os portugueses, tidos como os donos dos mares do Atlântico Sul e das rotas para as Índias.
Porém, para azar dos holandeses, com a morte do então rei lusitano, Henrique I, o Reino de Portugal também caíra nas mãos de Filipe II (em 17 de maio de 1581). De imediato, o poderoso rei ibérico ordenou aos novos súditos (os portugueses) que cessassem suas transações comerciais com os “Rebeldes do Norte”, e assim foi.
Direto à fonte
Sem poder negociar com os reinos detentores das rotas marítimas para as Índias e às terras das especiarias (Ásia Oriental), a saída foi se virar por conta própria. Foi então que os holandeses se lançaram ao mar focados em romper acordos internacionais e pilhar o que fosse necessário.
Em pouco tempo, um grande número de corsários, arvorando a bandeira tricolor horizontal, promoveu o terror contra as frotas mercantes luso-espanholas e nas colônias estabelecidas pela monarquia dual filipina.
A estratégia holandesa, enfim, dava certo. Já em 1595, comerciantes do país conseguiam chegar até os mares de Sonda pela rota do Cabo da Boa Esperança, fundando feitorias em Java. Em 1598, os comandantes Van Xeck e Van Waerwyck atingiam as cobiçadas Molucas, terra das especiarias, por excelência, de lá trazendo carregamentos rendosíssimos. Três anos depois uma frota holandesa fazia pela primeira vez uma viagem de circum-navegação, sob o comando de Oliver van Noord.
Tais conquistas abririam caminho para a criação, em 1602, da Companhia Holandesa das Índias Orientais, instituição subsidiada pelo Estado e que podia declarar guerra e fazer a paz em nome das Províncias Unidas. O grupo, por meio da pirataria, prosperou enormemente, dando muito trabalho a portugueses e espanhóis, até então navegantes exclusivos nos Oceanos Pacífico e Índico. Os batavos tomaram as Molucas e atacaram impiedosamente as possessões de Goa e Malaca.
Em 1612, eles também passaram a percorrer os mares do Atlântico Norte e chegaram a fundar na América uma vila colonial, a qual deram o nome de Nova Amsterdam (em 1664 passaria a ser conhecida como Nova York, depois de entregue aos ingleses)
Holandeses no Brasil
No final do século 16, os corsários holandeses começavam a frequentar com mais assiduidade a costa brasileira, tanto no intuito de comerciar como saquear, fosse preciso. Informações sobre portos, vilas e rotas haviam lhes sido passadas por navegadores ingleses, em função das várias expedições realizadas pelos súditos da rainha Elizabeth, como Edward Fenton, Robert Withrington, Thomas Cavendish e James Lancaster.
A ordem expressa do Rei Filipe era resistir aos holandeses no Brasil. Em Santos, por exemplo, em cerca de 1599, uma grande nau batava chamada “Gouden Wereld” (Mundo Dourado) foi capturada enquanto aportava nas redondezas em busca de abrigo e víveres. Alguns marinheiros foram presos, outros executados. A embarcação acabou vendida e rendeu à Coroa Portuguesa cerca de cem mil cruzados.
Os holandeses, sabedores da história por alguns sobreviventes, queriam ir à forra. Em dezembro de 1599, uma armada holandesa sob o comando de Oliver Van Noord (aquele da circum-navegação) invadiu a Bahia e devastou vários pontos do Recôncavo. Algum tempo depois tentou o mesmo com o Rio de Janeiro, mas foi repelido à bala pelos lusitanos. Alguns anos mais tarde, os inimigos tentaram repetir o feito na Bahia, desta vez sob o comando de Paulo Van Carden, com sete navios em sua armada. Atacou Salvador e alguns engenhos do entorno, mas acabou rechaçado com muitas perdas.
Após este episódio fracassado, os holandeses se voltaram às colônias ibéricas na África, em especial em Angola e Moçambique.
Santos à espera de um ataque
Os santistas ainda mantinham na lembrança os terríveis momentos sofridos por conta de invasões por piratas ingleses, em 1583, com Edward Fenton e em 1591, com Thomas Cavendish (esta últimaque praticamente arrasou as vilas de Santos e São Vicente).
Corria um burburinho na região sobre as terríveis incursões do holandês Cornelius Matalief às possessões portuguesas na Índia e nas Molucas e sobre a possibilidade dele singrar a costa brasileira dizimando quem estivesse no caminho.
Santos já contava à época com duas linhas de fortificações de defesa: a da Barra Grande, construída entre 1584 e 1590, por ordem de Diogo Flores Valdez, e a da própria Vila, levantada por ordem de Braz Cubas. Isso sem falar das fortificações que protegiam a vila santista vigiando a entrada do Canal de Bertioga: os fortes São Tiago e São Felipe, ambos construídos antes de 1550. Eram, assim, todos eles, um alento à pressão que os colonos viviam.
A viagem de Spilbergen
Estavam as coisas neste pé quando, em 8 de agosto de 1614, partia de Amsterdã seis naus com o objetivo de promover a segunda viagem de circum-navegação holandesa pelo globo terrestre. Comandada pelo célebre Joris van Spilbergen, a esquadra seguiria a rota do Estreito de Magalhães, passando pela costa brasileira.
Compunham a frota, as naus Sol Grande (Grote Zon); Lua Grande (Grote Maan); Caçador (Jager); Gaivota (Meeuw); Eolo (Eolo) e Estrela Matutina (Morning Star).
Spilbergen era um homem experiente no mar, tendo navegado por alguns anos no Atlântico Sul e no Oceano Índico. Em 1601 estivera na Índia, no Ceilão e em Sumatra, fazendo parte do primeiro grupo de holandeses a percorrer os mares orientais. Diziam que era altamente reputado como líder e pelas façanhas como navegador e guerreiro. Não fora à toa que lhe deram o comando supremo da nova excursão global.
A frota holandesa avistou a Ilha da Madeira já em 3 de outubro e vinte e três dias depois ultrapassava o arquipélago de Cabo Verde. Pegando um tempo excelente, Spilbergen atravessou facilmente o Atlântico, chegando em 9 de dezembro no litoral da Bahia, logo avistando os Abrolhos. Os batavos comemoraram a façanha com um serviço religioso de ação de graças. Ao jantar, o almirante ordenou que em cada mesa fosse servido um vinho espanhol, com o qual os marinheiros fizeram sua festa.
A partir de 12 de dezembro, a frota passou a navegar sempre à vista da costa brasileira, num ritmo mais cadenciado. Uma semana depois avistaram a entrada da barra do Rio de Janeiro e decidiram que iriam parar mais adiante, na Ilha Grande, para abastecerem-se de água doce. O precioso líquido estava escasseando a bordo, a ponto de eles terem de recolhe-lo em lonas quando da ocorrência das poucas chuvas que caíram nos dias anteriores.
Com a nau “Gaivota” sempre à frente, alcançaram a Ilha Grande no dia 20. O lugar estava deserto. Tranquilizados, desembarcaram alguns doentes. Fizeram-se aguada e grande pescaria, tendo sido capturados vários crocodilos do tamanho de um homem.
A primeira encrenca no Brasil
Spilbergen ordenou, então, que a nau “Caçador” escoltasse algumas chalupas (botes) encarregadas de pegar água doce em terra. Passaram-se algumas horas e os homens de dois barcos regressados da missão alegaram terem ouvido vozerio nas moitas existentes ao longo da praia.
Os holandeses, no entanto, não se importaram com a conversa e decidiram ficar pelo menos uma semana no local a fim de recuperarem a energia gasta até ali. No dia 30, Spilbergen deu ordens ao oficial François du Chêne a comandar uma nova incursão à terra. Porém, desta vez, com um destacamento de dez soldados armados e numerosos marinheiros. Algumas horas mais tarde, os canhões da nau “Caçador” se fizeram ouvir, colocando em polvorosa toda a frota.
As notícias vieram rápido, e diziam que os holandeses mandados à terra haviam sido atacados por portugueses e mestiços. Este havia chegado à região em cinco canoas. Spilbergen soube que três escaleres (botes) seus haviam sido tomados e sua tripulação massacrada pelos inimigos.
O comandante, então, ordenou que se capturassem os agressores, a qualquer custo. Assim, os batavos passaram a persegui-los. No entanto, com o surgimento de duas fragatas portuguesas, decidiram recuar.
Tentativa de motim
Irritado por ter que recuar, Spilbergen ainda teve que lidar com outro revés. Alguns marinheiros da “Gaivota” foram pegos numa conspiração, um motim para tomar a nau. Acabaram presos e confessaram o crime, dizendo que ainda tinham dez cúmplices. O almirante convocou, então, um Conselho de Guerra, que acabou por julgar os mentores do motim, um alemão e um holandês, condenando-os à morte. Ambos foram suspensos em uma verga do navio e arcabuzados (arcabuz era uma arma de fogo).
Outra surpresa negativa foi notificada quando do retorno de uma flotilha de botes carregadas de água doce. Os homens alegaram terem visto um marinheiro do Caçador boiando nas águas, crivado de flechas.
Spilbergen decidiu sair daquela região e partir rumo ao Estreito de Magalhães. Porém, boa parte da tripulação adoecera, muito de “escorbuto” (doença aguda ou crônica devida a uma carência de vitamina C, caracterizada por hemorragias, alteração das gengivas e queda da resistência às infecções. Era muito comum entre os marinheiros dos séculos 15 a 17). Depois de consultar algumas cartas e marinheiros que conheciam alguma coisa daquelas partes do mundo, o almirante resolveu buscar um porto cômodo para refresco e que pudesse servir de local de convalescência aos enfermos. Esse lugar era São Vicente.
Era 11 de janeiro quando os marinheiros doentes foram recolhidos da terra e voltaram a bordo. O alto comando não podia abrir mão daqueles homens. A marinharia estava tão desfalcada, que seria impossível ultrapassar os agitados mares do extremo sul (notadamente o Estreito de Magalhães). Era vital que fossem tratados. Mesmo sabendo que poderiam ser hostilizados em São Vicente, o comandante Spilbergen decidiu rumar até às vilas portuguesas daquelas paragens (São Vicente e Santos), onde pediria ajuda.
Antes da partida definitiva, que aconteceu em 15 de janeiro, o Conselho de Guerra julgou os outros amotinados, que ainda se encontravam a ferros. Mas, por eles, intercederam alguns oficiais e acabaram perdoados. Na verdade, é que não podiam mais abrir mão de homens naquela altura.
Chegando na Capitania de São Vicente
A esquadra holandesa chegou à costa paulista no dia 17, tendo à frente a nau Gaivota, cujo comandante, Balten Stevenz, de Flessinga, conhecia o lugar, por já ter tido navegado naquelas paragens. Os navios já se encontravam nas proximidades da Baia de Santos, de onde viram surgir uma enorme coluna de fumaça. Spilbergen situou a frota no meio da Baia e mandou descer um bote com 25 homens, levando quinquilharias para negociar com os índios. Ocorre que naquele ponto também havia muitos portugueses, e estes gritavam, desde a praia, para que os estranhos não se atrevessem a desembarcar em terra.
Os lusitanos em terra assentiram que só um homem fosse até eles para conferenciar. Assim, João Hendriksz, segundo piloto da nau Lua Grande, despiu-se, atirou-se na água e em poucos minutos chegava em terra, sobre um rochedo. Rapidamente um grupo de homens brancos acompanhados de muitos índios armados de arcos e flechas renderam o holandês.
Hendriksz pediu que lhe enviassem um emissário para negociar. Neste ínterim, o Gaivota arreou suas bandeiras, içando um pavilhão branco, como sinal de paz. Um dos portugueses perguntou-lhe quem eram os seus, de onde vinham e para onde iam, e o que pretendiam naquela costa.
O holandês respondeu que os flamengos (povo da região de Flandres, situada parte na França, parte na Bélgica e parte na Holanda) queriam adquirir bebidas e víveres em troca de bom dinheiro. Diziam que rumavam ao Rio da Prata. O português desconfiou das respostas do estranho. Afinal, aquele homem não era súdito do mesmo rei que os colonos daquela terra e havia uma ordem que proibia o tráfico com os homens da Holanda.
Mas negócio era negócio, e os colonos precisavam de recursos. Assim, o português disse que, se houvesse segredo, seriam os holandeses abastecidos com o que precisavam.
Problemas à vista
Aliviados com o acordo, os homens de Spilbergen se preparavam para desembarcar os doentes e receber os víveres e refrescos que comprariam dos portugueses. O comandante ordenou que quatro de seus navios ficassem ancorados de forma abrigada e o Caçador nas proximidades da praia onde o grupo de colonos iria conferenciar.
Na manhã do dia 19 de janeiro, duas grandes embarcações saiam de um rio (certamente o canal do estuário de Santos) e pareciam hesitar diante da esquadra batava ali estacionada. De repente, ambas as embarcações deram meia-volta e regressaram pelo rio. Desconfiado, Spilbergen mandou a nau Gaivota ficar ancorada na foz daquele rio. Logo depois, surgia uma grande canoa arvorando a bandeira branca, vinda da Vila de Santos. AO mesmo tempo, na praia, surgia muita gente também com bandeirolas brancas.
A canoa aproximou-se do Gaivota e os dois lados conferenciaram. Os colonos pediram aos holandeses que escrevessem uma carta ao governador do porto e que esta carta deveria ser fincada numa estaca, na praia. Eles prometiam que, um dia após a carta ser retirada do local, haveria outra carta como resposta.
Os colonos também alertaram os batavos sobre os índios da região, reputando-os como muito bravos e selvagens, numa demonstração de simpatia ou como estratégia para aterrorizar os estrangeiros.
A tal carta foi, então, escrita pelo próprio almirante e colocada na tal estaca, junto com uma cesta endereçada ao capitão-mor de São Vicente, contendo dois queijos, duas garrafas de vinho velho da Espanha, um pacote de facas e outro de quinquilharias.
Logo em seguida, surgia pela praia, vindo dos lados da vila vicentina, vários magotes de índios e brancos que agitavam bandeirinhas brancas. Quatro botes holandeses, então, partiram para aquele ponto da praia. Durante a conferência, os portugueses explicaram que ainda não podiam traficar com os visitantes sem a decida licença do governador. Os holandeses, então, avisaram que iriam apanhar algumas laranjas na ilha vizinha, e não foram contestados.
À noite voltaram os escaleres do Caçador com algumas laranjas e limões. A surpresa é que apareceram também com carne fresca de vaca, o que foi apreciadíssima. Spilbergen notou que algum colono devia ter negociado mesmo sem a licença do governador.
Tentativas de acordo.
Era 21 de janeiro quando, julgando estarem bem enroladas as preliminares da paz, Spilbergen ordenou ao comandante Vilhelm Van Anssen que conduzisse à terra três botes bem armados para entender junto aos portugueses quais seriam, de fato, suas intenções.
Partiu, assim, aquele capitão, levando o seu imediato Kussijn, um tenente, Ruffih, e Dirk Doedt, mestre do Estreita Matutina. Quando desembarcou, encontrou alguns portugueses que lhe deram uma carta, e lhe disseram ser do governador, mas não estava assinada.
Para demonstrar as boas intenções da vila santista para com os visitantes, dois portugueses (um capitão e um piloto) se ofereceram como reféns, até que a situação fosse resolvida. Além deles, fizeram parte deste grupo um mulato e um brasileiro, escravos, ambos práticos da barra de Santos. Assim, todos foram levados a bordo, onde foram tratados com gentileza, chegando até a serem convidados a conhecer os vasos da esquadra. Os da terra ficaram impressionados com o tamanho e poderio das duas naus maiores: o Sol e a Lua.
À noite naquele mesmo dia, o comandante resolveu devolver os colonos para a terra. Estava visivelmente irritado com a demora dos portugueses pela tomada de decisão. Desconfiava ele e seus capitães que os colonos estavam querendo ganhar tempo, talvez esperando a chegada da armada luso-espanhola que fazia a patrulha da costa brasileira. Imagine o tamanho do butim que os súditos do Rei Filipe teriam em mãos.
Spilbergen estava perfeitamente convencido da perfídia de semelhante canalha, e assim convocou, para aquela mesma noite seu Conselho de Guerra, a ocorrer na nau capitânia. A decisão era atacar as vilas locais, obrigando os colonos a fornecer o que precisavam. Ocorre que à parte da conduta das ditas autoridades, muitos portugueses negociavam às escondidas com os marinheiros holandeses. Foram vendidas, assim, toda sorte de frutas, frangos, açúcar, leitões e conservas. Era o que, afinal, ainda segurava o ímpeto de Spilbergen.
O confronto se inicia
Dois dias depois, 23, o almirante, cansado das promessas portuguesas, decidiu tomar uma decisão mais enérgica, enviando sete chalupas bem guarnecidas e protegidas pelas naus Caçador e Gaivota rio adentro, para chegar até a Vila de Santos. O próprio Spilbergen comandava a operação. Numa das praias do rio, os holandeses fincaram uma carta junto a uma bandeira branca.
Os movimentos dos inimigos eram observados pelos colonos. Um deles se aproximou, após o afastamento dos estrangeiros. Tomou a carta nas mãos e fez sinal negativo aos batavos, proferindo ainda diversas insolências.
Diante da afronta, Spilbergen mandou arrear as bandeiras brancas e içar o pavilhão de Orange, o que significaria o início das hostilidades. Vários botes foram enviados para terra e os soldados passaram a invadir os espaços. Um engenho foi tomado, perto de São Vicente, nas proximidades da igreja de Nossa Senhora das Naus.
Nas redondezas da vila, vários combates se deram. Colonos e aliados indígenas contra-atacavam com fogo de arcabuzes e flechas. Pelos sítios por onde passavam, os holandeses pegavam viveres e frutas, aos quais levavam a bordo.
No dia seguinte, 25, Spilbergen avançou com outras naus pelo canal do estuário e tomava uma espécie de baluarte arruinado, em torno do qual havia muitos pomares abandonados recentemente.
Em meio à invasão, eis que surgia uma embarcação comercial, de 72 toneladas, que vinha de Lisboa e Rio de Janeiro. Percebendo a situação, a nau tentou recuar, mas os ventos contrários não ajudaram. Assim, foi presa fácil para as naus Gaivota e Caçador, que estavam não muito longe da entrada da barra.
Os holandeses, então, fizeram prisioneiros os 18 homens da tripulação e passageiros, apresando ainda dois pequenos canhões, algum ferro, algodão, óleo, sal e miudezas. Espavoridos, certos de que seriam todos enforcados, tentaram negociar com os batavos, informando aos capturadores que no Rio de Janeiro havia holandeses e franceses presos, e cujas vidas poderiam ser negociadas pelas suas.
Contaram ainda que, entre os prisioneiros no Rio havia alguns homens dados como desaparecidos do incidente na Ilha Grande, entre eles o tenente François du Chéne, que fora gravemente ferido de um flechaço no peito, e mais uns 10 ou 12 homens dos seus escaleres.
Spilbergen, então, ordenou que se mandasse a terra um dos presos levando uma nova proposta aos portugueses. Trocaria ele os prisioneiros, homens por homem, sendo que restante seria libertado em retribuição de mantimentos, sobretudo gado.
Nova tentativa de acordo
No dia 27 de janeiro, os colonos chegaram com nova bandeira branca e mais uma mensagem presa numa estaca. Era a resposta para a proposta enviada no dia anterior por um dos marinheiros aprisionados. Nela, os portugueses disseram que não fariam acordos com piratas, que nenhum prisioneiro no Rio de Janeiro seria libertado ou trocado. E quanto aos negócios, “só na ponta da espada”.
Spilbergen não se segurava de raiva. Mas tinha de ser estratégico. O tempo estava passando e as condições de travessia pelo Estreito de Magalhães ficava mais complicada a cada dia. Era preciso seguir viagem.
Decidido a ter paciência, embora pudesse proceder rigorosamente contra os prisioneiros, e precisando, por necessidade, de viveres, ainda insistiria o comandante batavo. Mandou que os presos escrevessem aos amigos e aos eclesiásticos de Santos, contando-lhes a triste situação em que se achavam. Enquanto isto, trabalhava-se ativamente para descarregar o navio apresado. Havia no porão cofres bem guarnecidos e bastante roupa de que se apropriaram os malvestidos das equipagens holandesas.
O portador da última missiva fora um português que para terra seguiu acompanhado de dois filhinhos, querendo deste modo o almirante mostrar quanto sabia ser humano.
Repulsa incondicional
Relíquias, cruzes, cartas de indulgência e de remissão, livros, impressos e manuscritos, tratando de assuntos políticos e espirituais, e um grande número de pinturas apareceram nos despojos do navio confiscado. Entre os cadernos alguns havia de uma linda caligrafia. O que mais curiosidade causou, porém, aos calvinistas foi uma coroa de prata domada, e alguma prataria que servia de ornamento à Santa Madre. Os batavos entendiam que naquelas paragens da América a figura de Maria era muito mais forte do que a do próprio Jesus Cristo. Eles ficaram indignados com a idolatria papista. E mais ainda com a total falta de solidariedade com os companheiros aprisionados. Mesmo na iminência de vê-los enforcados, os portugueses, em nenhum momento, mostraram-se inclinados a discutir a libertação dos seus aliados.
Spilbergen relatou em seus diários: “Eles mais se deleitavam com a efusão do sangue holandês do que com a conservação de suas riquezas e com o bem-estar de seus compatriotas. Eles não demonstram a menor compaixão à situação desgraçada desses”.
No dia 29 voltavam as chalupas holandesas à praia, onde encontraram escritos insultuosos. Dirigiram-se, então, os soldados ao lugar do velho baluarte e dos pomares abandonados, onde colheram mais de 8.000 laranjas e limões. Mataram ainda vários porcos para uso a bordo. Os batavos ainda incendiaram algumas casas onde havia uma capela. Era uma retaliação por conta do ataque sofrido e pelos insultos.
Da mata ainda foram disparados tiros contra os invasores, mas nenhum deles atingiu o alvo. O navio apresado por Spilbergen foi, então, queimado. Um dos capitães encontrou entre os documentos da embarcação papeis que alertavam sobre a presença dos holandeses daquela frota. A carta alertou o almirante sobre a provável existência de um espião na corte batava, uma vez que a correspondência parecia ser do ano anterior. “Fatalmente deve haver em nosso país traidores entre os homens principais da corte.”
No dia 31, Spilbergen mandou quatro escaleres para uma exploração no lagamar de Santos, chegando quase ao sopé das montanhas. Retiraram-se à pressa, porém, vendo muita gente armada a espera do provável desembarque inimigo. Seria muito provável a chegada de reforços vindos do Planalto de Piratininga, de São Paulo.
Em outra tentativa para pegar mais água doce, os invasores foram recebidos por uma chuva de flechas. Eram índios comandados pelos colonos de Santos. Disse um dos holandeses, que “atrás dos selvagens, havia portugueses que os obrigavam, a pauladas, a avançar”.
Surpreendidos, fugiram os holandeses. Perseguidos de perto, ainda abandonaram o escaler do Caçador, embarcando todos no do almirante. Para sorte dos batavos, vinham quatro embarcações ao seu encontro.
Reforçados, voltaram ao ponto da agressão, onde de novo travaram combate, conseguindo, graças à superioridade de suas armas de fogo, com que os inimigos se retirassem. Quatro mortos tiveram os batavos e quase não houve homem que para bordo não voltasse ferido. Penosa impressão causou o encontro na esquadra, embora se houvesse recuperado o escaler apresado.
No dia 2 de fevereiro, resolveu Joris Van Spilbergen soltar quatro dos prisioneiros, guardando outros como reféns para que ainda pudesse realizar uma improvável troca por seus homens presos na ilha Grande. Entre os libertos estava Pedro Alvares, mestre do navio incendiado, homem que parecia já ter traficado com holandeses. O comandante diria em seu diário que o homem “fez-nos grandes promessas acerca dos nossos patrícios, prometendo que haveria de trabalhar com todo o ardor para que fossem soltos. À sua palavra, porém, só demos o crédito suficiente para que não nos embaçasse de todo. Si o libertamos foi porque tinha mulher e filhos e perdera todos os bens”. Os demais também por casados haviam sido despachados.
O almirante compassivamente deu-lhes algum dinheiro, mostrando-se os prisioneiros muito gratos pela compaixão. Os demais portugueses presos, distribuídos pelos vasos da frota, deveriam servir como marinheiros forçados, noticia que lhes provocou o desespero, como era de esperar.
No final do dia, mostrando-se o vento propicio, levantaram ferro os seis vasos da frota batava. Viu-se então um bote em que um indivíduo remava desesperadamente em direção à nau capitania. Chegando á distancia de fala, disse o indivíduo que desejava ver o almirante.
Spilbergen foi até a amurada e consentiu que subisse a bordo. Pediu-lhe o pobre diabo que tivesse pena do seu cunhado que ia entre os prisioneiros. Ofereceu-lhe, então, em troca da liberdade do parente um papagaio, algumas galinhas e muitas laranjas.
Irritado com toda a situação que tivera de passar naquelas paragens de Santos, Spilbergen recusou a transação. Insistiu o pedante: Era solteiro e sem compromissos e, assim, se propunha a tomar o lugar do cunhado, que tinha mulher e filhos. Surdo a qualquer ditame de generosidade, ante tão extraordinária abnegação, ordenou o chefe holandês que o pusessem no bote com os seus presentes e o forçassem a retirar-se.
No diário de bordo desta navegação, ainda escreveriam sobre este episódio: “Assim lhe mostramos que, mercê de Deus, de tudo tínhamos abundância”.
Dois dias mais ainda esteve a esquadra batava a bordejar a barra de Santos. Só no dia 4 de fevereiro é que Spilbergen e seus homens perderam a vista da costa brasileira, que nenhuma lembrança boa foi registrada.
Estampa de Jan Janez
Da tentativa de invasão holandesa sobre Santos e São Vicente restou precioso documento iconográfico, embora tosco. Uma estampa publicada em 1621 no livro “Miroir Oost & West Indicai”, atribuída a Jan Janez, um editor de Amsterdam. Seu título era “Le pourtrait de capo de St. Vineent en Brésil” (Retrato do Cabo de São Vicente, no Brasil). Nele, se veem cinco naus de Spilbergen bloqueando a barra de Santos, enquanto a nau Gaivota vigia o porto de São Vicente (Santos). No lado direito, no canal do estuário, vê-se a nau Caçador chegando a um ponto extremo. As duas povoações retratadas na imagem (Sanctus e St.Vincent) se assemelham a cidadelas medievais, com edifícios altos, igrejas e muralhas.
Em diferentes pontos do litoral, numerosas tropas de índios e brancos, armados, ficam à espreita, aguardando o desembarque inimigo. Vê-se, à esquerda, próximo à São Vicente, um grande incêndio a um engenho e uma igreja (Nossa Senhora das Naus).
A sequência da viagem de Spilbergen
Segundo os historiadores holandeses, a viagem de Joris Van Spilbergen foi considerada uma das mais bem-sucedidas na história naval batava. Logo depois de deixar Santos, em 16 de fevereiro de 1615, a frota chegava ao estuário do Rio da Prata. Em 28 chegavam ao Estreito de Magalhães, depois de enfrentar uma verdadeira tempestade no litoral da Patagônia. A frota levou quase um mês para chegar ao Oceano Pacífico.
Neste trecho, o Gaivota se perdeu e nunca mais foi visto. Muitos deduziram que possivelmente um novo motim poderia tê-lo feito voltar. O Estrela da Manhã também teve problemas na altura da Ilha dos Pinguins. Parte da população foi morta pelos patagões durante um desembarque.
A partir de 7 de maio, Spilbergen ordenou a subida pela costa do Chile, velejando sempre ao norte. E, da mesma maneira como foram tratados em Santos, os batavos foram hostilizados pelas colônias espanholas em Concepcion e Valparaiso. A viagem prosseguiu até a América do Norte. Em uma das paradas, na Bahia de Quinteros, ainda no Chile, Spilbergen decidiu desembarcar para fazer aguada. Foi neste local que resolveu libertar dois dos santistas presos em fevereiro. Desapareceram eles exprimindo ao almirante mil agradecimentos.
Apesar de não ser bem recebido, nenhum lugar ousou atacar a bem armada frota holandesa. A única exceção aconteceu em 16 de julho, na costa do Peru, quando Spilbergen trombou com a Real Esquadra Espanhola, composta por cerca de dois mil homens, sob o comando do general Don Rodrigo de Mendoza e o almirante Don Pedro Alvarez de Pulgar. A batalha foi feroz, mas vencida pelos holandeses.
Em 21 de setembro a frota batava chegava no litoral do México, entrando no Porto de Acapulco. Cinco dias depois partiram para a Ásia, chegando nas Filipinas em 2 de março de 1616. Após muitas outras aventuras, deixava Spilbergen, rico de despojos, os mares do extremo oriente, em 14 de dezembro de 1616, rumando na direção dos portos da Holanda, onde chegou sem maior novidade e aureolado de enorme prestigio. Se tornava, assim, o quinto navegado a completar o trajeto circum-navegatório universal, após Fernão de Magalhães (1519-1521), Drake (1577-1580), Cavendish (1586-1588) e Oliver van Noord (1598-1601).
Quem redigiu toda a narrativa de sua jornada foi o escrivão da sua nau capitania, João Cornelissen de Maya, escrevendo-a em latim, no ano de 1617. Seus relatos logo foram traduzidos para o francês, o inglês e o alemão. No Brasil, foram poucos os historiadores que replicaram essa história. Um deles, Afonso Taunay, o fez com maestria em seu livro “Na Era das Bandeiras” (1921) que, agora, tornou-se base para esta releitura do Memória Santista.