Santos, 7 de dezembro de 1939, 9 horas da manhã. Do alto do Monte Serrat, os observadores do Posto de Atalaia (Local que a antiga Praticagem do Porto de Santos mantinha para controlar a chegada e partida de navios), Gerson da Costa Fonseca e Mário de Azevedo, atentos às movimentações na entrada da Baía de Santos, perceberam algo muito estranho na enorme embarcação que se avizinhava à Ponta dos Limões (situada entre a Ilha das Palmas e a Praia do Góes). Primeiro em razão do navio ter se aproximado do porto santista sem autorização expressa das autoridades locais, e segundo porque, apesar de ostentar, na popa, a bandeira japonesa, o navio não apresentava exatamente as características típicas dos cargueiros nipônicos. A situação ficou ainda mais enigmática, quando os homens que exerciam o trabalho de abordagem, passaram a informação via rádio dizendo se tratar do cargueiro “Santos Maru”.
Gerson olhou para Mário e indagou: – Mas, o Santos Maru não partiu estes dias da cidade?
O atalaiador estava confuso. O cargueiro japonês havia, de fato, estado no porto santista até a semana anterior e partira da cidade sem apresentar complicação alguma. E visualmente, do alto do Monte Serrat, não parecia sofrer nenhuma dificuldade de navegação.
Mário atentou para outro detalhe. – Olha só, o Santos Maru que eu conheço não tem duas chaminés como esse cargueiro! Aliás, ele tem mais é cara de transatlântico! Vou te dizer que tenho um palpite do que está acontecendo!
O companheiro ainda pouco experiente na função prestou atenção, então, na tese instantânea do colega tarimbado: – Esse navio não é japonês! É alemão!
Gerson ficou surpreso e apontou novamente as lentes da luneta do posto na direção da estranha embarcação, tentando constatar os detalhes percebidos por Mário. No entanto, ele não conseguiu ver muita coisa, ao contrário do seu colega de praticagem, Antonio Reis Castanho Filho que, naquele mesmo momento, adentrava à bordo do navio intruso (naquela altura já dentro no canal da barra. defronte à velha fortaleza). Ao alcançar o convés, Castanho ficaria atônito ao notar que não havia nenhum oriental entre os membros tripulação. À sua frente estavam, mesmo, apenas homens de cabelos loiros e olhos azuis.
Enquanto o prático tentava entender o que estava acontecendo a bordo do estranho navio “japonês”, Gerson e Mário notaram a presença de um cruzador da marinha de guerra inglesa (os historiadores afirmam que se tratava do HMS Achilles, integrante da Force G britânica, que patrulhava o Atlântico Sul no início da Segunda Grande Guerra) na boca da Baía santista, parecendo procurar por alguma embarcação inimiga a ser abatida.
E, de fato, estava. Justamente o disfarçado navio alemão SS Windhuk, que vivera um drama nas últimas semanas. Aparentemente aliviado, o comandante da embarcação germânica, Wilhelm Brauer, saudou o prático santista com um inglês arrastado, e visivelmente feliz. Ao lado do seu primeiro-oficial, Reinhold Polh, o capitão rogou para que os colocassem em segurança, com o compromisso de explicar toda a situação posteriormente. Castanho, então, após colher orientação do comando do porto, conduziu o gigantesco navio alemão (considerado um dos mais luxuosos, modernos e velozes de sua época) para a altura do armazém 8 das Docas. Ali, lançaria suas âncoras para, então, permanecer “fundeado” por muito, muito tempo.
Antes de deixar o navio, o prático santista chegou a receber um abraço do comandante alemão. Àquela altura, boa parte dos 244 tripulantes do Windhuk já estava no convés, observando, do convés, a tranquila cidade brasileira. Muitos mal acreditavam que suas vidas tinham dado uma guinada absurda, dado o clima que testemunharam poucos meses antes, no ponto de partida daquela viagem que, de empolgante, se tornaria angustiante.
O começo do fim
Hamburgo, Alemanha, 21 de julho de 1939. O porto da grande cidade hanseática estava apinhado de gente naquela manhã de quarta-feira, data marcada para o início de um luxuriante cruzeiro de 60 dias rumo a uma série de incriveis aventuras que se dariam nas colônias da África, com direito a safaris, de acordo com as propagandas da Woermann-Line Deutsche Afrikalinie. A bordo da espetacular embarcação de 176 metros de comprimento, estavam cerca de 160 passageiros de primeira classe e 240 de classe turística, em sua maioria nobres ou magnatas franceses e ingleses, além de uma tripulação de 250 pessoas, entre engenheiros, médicos, marinheiros e oficiais. O Windhuk era uma verdadeira cidade flutuante, capaz de deslocar 16 mil toneladas pelos oceanos a uma impressionante velocidade de 18 nós (33,3 km/h).
Aquela seria a 13ª viagem do navio alemão (Construído no Estaleiro Bloom & Voss, em Hamburgo, para a armadora German East Africa Line, o lançamento do ‘Windhuk’ ocorreu em 21 de agosto de 1936) e tudo prometia, como as viagens anteriores, ocorrer da melhor maneira possível.
Alerta para a fuga
Cidade do Cabo, África do Sul, 29 de agosto de 1939. Havia quatro dias que o Windhuk repousara suas âncoras na tranquila baía da Cidade do Cabo, possessão inglesa no extremo sul do continente africano. Enquanto aguardava o retorno de alguns de seus passageiros, que passeavam pelas redondezas, o comandante Wilhelm recebeu uma mensagem via rádio, com ordens expressas do governo nazista alemão, para que todas as embarcações germânicas que estivessem atracados em portos de colônias francesas ou inglesas, que rumassem para os portos de países neutros. A guerra na Europa estava prestes a estourar com todas as suas forças.
O comando do Windhuk expediu um comunicado a todos os passageiros e, estes, assustados com a situação, acabaram pegando seus pertences e decidiram permanecer na Cidade do Cabo. Brauer e sua tripulação não tinham outra opção, a não ser fugir o quanto antes dos olhares ingleses.
Assim, o Windhuk zarpou, o mais discretamente quanto pôde. Porém, para azar dos alemães, eles cruzaram com um navio holandês que navegava naquelas paragens. Estes, por sua vez, alertaram os ingleses sobre a presença do transatlântico da nação nazista. Mesmo com um terço da capacidade do combustível e perseguido por um vaso de guerra britânico, o Windhuk conseguiu aportar na cidade de Lobito, Angola, no dia 1º de setembro, onde já se encontravam outros quatro navios alemães. Naquela mesma data, o exército de Adolf Hitler inavia a Polônia, dando início à Segunda Grande Guerra Mundial.
Fechando o cerco
O ataque à Polônia levou a França e a Inglaterra a formalizarem suas declarações de guerra contra os germânicos. Imediatamente, ambos os países deram início a um intenso bloqueio naval por todo o Oceano Atlântico. Todas as embarcações alemãs foram notificadas da situação e orientadas a aguardar novas ordens.
No dia 5 de novembro, cinco tripulantes do Windhuk tomaram coragem e acabaram fugirando em um dos botes salva-vidas do navio. Contando unicamente com a sorte, um mês depois, à deriva no Oceano, acabaram encontrarando um navio de guerra português que lhes ofereceu batatas, bacalhau, conservas, um barril de vinho e cigarros. Passados 73 dias, tempo em que percorreram quase oito mil quilômetros, os marinheiros do Windhuk chegaram às Ilhas Canárias, possessão espanhola.
Ao mesmo tempo, em Lobito, Angola, o radiotelegrafista do Windhuk recebia uma mensagem urgente do alto comando nazista: “Zurück nach Deutschland! Zurück nach Deutschland!” (De volta à Alemanha! De volta à Alemanha!). A determinação era clara. Brauer deveria, a todo custo, conduzir o seu navio de volta à Europa, para ser incoporado à frota do Terceiro Reich.
O Windhuk, então, levantou âncoras para cumprir sua difícil missão. Outro navio alemão, o SS Adolf Woermann, da mesa companhia (Deutsche Afrikalinie) e igualmente ancorado no porto angolano, decidiu também zarpar rumo ao norte. No entanto, apesar de terem saído com todas as luzes apagadas, ambos foram descobertos pelos ingleses, o que frustrou todo o planejamento de fuga. Foi aí que se deu, então, o início de uma verdadeira caça pelos mares do Atlântico Sul. As duas embarcações germânicas se lançaram na rota da Argentina. Agora, a única chance de escapar era tomando o rumo da América do Sul.
O Windhuk, famoso por sua incrível potência, fez uso da capacidade máxima de suas máquinas, deixando para trás o navio irmão, que, por sua vez, acabou sendo afundado pela própria tripulação, em 22 de novembro, nas proximidades da Ilha de Santa Helena, já em plena vista do cruzador inglês HMS Neptune, que o perseguia. Aos britânicos, só restou resgatara os 163 marinheiros e oficiais da embarcação germânica. Enquanto isso, Brauer e seus comandados corriam a toda velocidade.
Disfarce japonês
Para aumentar as chances de escapar ileso ao cerco britânico, o comandante do Windhuk teve a ideia de disfarçar seu navio com as cores de outra companhia, a OSK South American and African Line, do Japão, bastante conhecida nas rotas do Atlântico. Brauer decidiu, depois de estudar o catálogo da empresa japonesa, o navio “Santos Maru” por conta de suas características estruturais, mesmo sendo o navio alemão onze anos mais novo e dono de dois sistemas de chaminés, ao contrário do Santos Maru, que só possuia uma. Para o comandante alemão, era um detalhe que certamente os comandantes militares ingleses não perceberiam.
Brauer foi inteligente o suficiente para utilizar os seus empregados da lavanderia e calderaria, que eram todos chineses, ordenando-os que pintassem na proa do navio o nome “Santos Maru” na forma de ideogramas, mesmo sendo os ideogramas chineses bastante diferentes dos japoneses. Mas qual comandante britânico seria capaz também de descobrir essa “malandragem”?, pensou o capitão alemão.
O trabalho de transformação era feito com o barco em alta velocidade oceano adentro. A tripulação pendurou cordas balouçantes na lateral do casco e promoveu a pintura do navio com faixas preto e vermelhas. As chaminés foram camufladas e sobre o mastro do convés da piscina colocaram uma bandeira do Japão, costurada às pressas na lavanderia. Para convencer
ainda mais seus perseguidores, o chefe de transmissão do Windhuk, John Lüers, fluente em várias linguas, transmitia suas coordenadas fictícias falando em japonês.
A salvação era o Brasil
Por conta do excesso de exigência sobre as máquinas do navio, o combustível foi sendo gasto além da conta. Brauer fez novos cálculos e percebeu que não seria maispossível chegar aos portos argentinos ou até uruguaios. A iminente falta de comida a bordo também preocupava o comando do navio. Diante do quadro, não havia outra saída a não ser buscar abrigo no Brasil. Pelo menos era um país que ainda mantinha excelentes relações com a Alemanha. O presidente Getúlio Vargas era um simpatizante do Eixo, pelo menos em 1939. Sendo assim, o famoso país tropical poderia ser uma grande saída para a situação extrema do Windhuk.
Decidida a nova rota, o rumo agora era o porto de Santos, o maior do litoral brasileiro. A cidade santista, assim como sua vizinha São Vicente, abrigava muitos empresários alemães, atuantes em casas de comércio exterior. Desta forma, não seria dificil convencer os compatriotas os abrigarem provisoriamente. Santos, da mesma forma, dispunha de um consulado alemão, o que ajudaria muito, em várias questões.
Assim, depois de praticamente esgotar as forças de suas máquinas,o Windhuk avistou a costa paulista em 7 de dezembro. Era o fim de uma corrida pela sobrevivência. A partir dali, a história seria totalmente diferente.
Acontecimentos posteriores à chegada do Windhuk a Santos
Depois de salvos, protegidos no canal interior do Porto de Santos, os tripulantes do Windhuk ficaram “morando” na cidade praiana por dois anos, utilizando o imenso navio alemão como uma espécie de hotel de luxo. Cada um deles recebia um salário do consulado alemão, de cerca de 125 mil réis (R$ 1.250 nos dias de hoje) para subsistência (os recursos eram providenciados pela empresa alemã Tehodor Wille & Cia). A ordem do Terceiro Reich era que ficassem no Brasil, até que a situação fosse controlada. Assim, os alemães do Windhuk viveram entre os santistas, desfrutando o clima tropical.
Até mesmo um casamento aconteceu entre os tripulantes. A babá (existia esse serviço para os passageiros que traziam crianças), Hildegard Lange, de 23 anos, acabou se apaixonado pelo comissário de bordo, August Braak, de 44 anos, e ambos se uniram em matrimônio numa grande festa dentro do Windhuk.
Com o passar dos meses, alguns dos tripulantes preferiram viver em pensões de Santos e São Vicente.
Segundo o pesquisador Cláudio Tsuyoshi Suenaga, mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), autor de um excelente trabalho sobre o tema, “a situação começaria a mudar drasticamente com o ataque japonês à base naval de Pearl Harbor, no Pacífico, em 7 de dezembro de 1941 – exatamente no aniversário de dois anos da chegada do Windhuk –, que proporciona aos Estados Unidos o pretexto para saírem do alheamento e ingressam de vez na guerra. Vargas, que com sua inata habilidade política procurava obter vantagens e concessões de ambos os lados, embora se inclinasse às potências totalitárias do Eixo, identificadas com as linhas preconizadas pelo seu Estado Novo, passa a ser fortemente pressionado a assumir uma posição pró-Aliados”.
E, de fato, as coisas assim se sucederam. No dia 15 de janeiro de 1942, duas semanas antes de Vargas romper oficialmente as relações diplomáticas com a Alemanha, o governo brasileiro ordenou o desembarque dos tripulantes do Windhuk e lhes confiscou os documentos (jamais devolvidos).
O Brasil entra na guerra e prende os alemães do Windhuk
Pressionado pelos ataques promovidos por submarinos alemães na costa brasileira, o presidente Getúlio Vargas não vê outra saída a não ser fazer uma aliança com os Estados Unidos e declarar guerra à Alemanha e aos outros países do Eixo (Itália e Japão).
O governo manda, então, apreender o Windhuk, espalhando o boato de que o venderia aos Estados Unidos pela bagatela de US$ 5 milhões. Não aceitando a infâmia de ver o navio caindo em mãos inimigas, os tripulantes, com o auxílio de um bote, levaram toneladas de areia e cimento a bordo e concretaram todo o maquinário. Quando os norte-americanos chegaram para conferir sua nova e preciosa aquisição e se depararam com a sabotagem, ordenou-se a imediata prisão dos tripulantes do Windhuk, que passam a ser “caçados” em pensões e hotéis da cidade. Dos 250 tripulantes, 244 foram levados às cadeias de Santos.
Para escapar do cárcere, alguns prepararam com mantimentos e instrumentos de navegação a Santa Fé, uma baleeira de pesca de 12 metros, fundeada na Praia das Vacas, em São Vicente. No domingo de Carnaval, enquanto a cidade se distraía, os fugitivos partiram com destino a Dacar, no Senegal, na costa ocidental da África. Navegavam a vela e a motor, mas numa noite o barco foi apanhado de surpresa por uma forte tempestade. O motor quebrou e a correnteza arrastou a Santa Fé para longe da rota. Um tripulante que fazia o seu turno no leme caiu no mar e não pôde ser resgatado. Com a moral em baixa, o comandante da fuga conduziu o barco de volta à Praia Grande. Próxima à praia, por um descuido a Santa Fé afundou e seus tripulantes foram presos e levados de trem, junto com os demais companheiros, à cadeia do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) no bairro da Mooca, na capital paulista, bem como à Casa de Detenção no Carandiru, zona norte. Um livro de culinária alemão, o Kochkunst Führer, foi encontrado com o cozinheiro do navio e apreendido sob suspeita de que se tratasse de uma obra nazista subversiva devido à palavra Führer, que quer dizer “guia” em português.
Como era inviável manter todos em cadeias comuns, surgiu a ideia de transportá-los para campos de prisioneiros nos moldes dos campos de concentração nazistas, dos quais já se tinha notícia na época. Instalaram-se inicialmente pris��es provisórias em Pirassununga, Bauru e Ribeirão Preto, até que ficassem prontos os campos de concentração em Guaratinguetá e Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba. A tripulação do Windhuk foi então transportada em trens blindados para essas duas cidades, onde permaneceram, com a bucólica visão da Serra da Mantiqueira ao fundo, até o final da guerra.
Esse é um episódio praticamente desconhecido da história do país e só recentemente começou a ser estudado, já que, até 1996, era considerado secreto pelo governo, que permitia somente o acesso parcial aos arquivos oficiais, lacrados com base em uma lei que proibia consultas ou pesquisas por 50 anos. Em 1988, o prazo diminuiu para 30 anos.
Segundo a historiadora Priscila Ferreira Perazzo, que em agosto de 2002 defendeu na Universidade de São Paulo (USP) uma tese de doutorado em História Social intitulada Prisioneiros de Guerra: Os Cidadãos do Eixo nos Campos de Concentração Brasileiros, o tratamento dado aos imigrantes deixou de ser uma questão nacional para projetar-se como um dos elementos de negociação no campo da política internacional.
Os campos brasileiros, espalhados por sete estados (Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), chegaram a confinar cerca de três mil prisioneiros entre alemães, italianos e japoneses, tidos como elementos “indesejáveis” desde 1938. Mas na verdade se tratavam de fazendas do governo adaptadas, sem cercas eletrificadas ou torres com metralhadoras, que pouco se assemelhavam aos campos nazistas.
Alemães detidos em Pindamonhangaba, SP
Sob uma certa liberdade vigiada, os alemães em Pindamonhangaba, alojados em estábulos improvisados, tinham permissão para transitar pelo campo, construir suas próprias casinhas de jardim, que decoravam com seus pertences, fazer seus pães vollkornbrot típicos, criar galinhas, ordenhar as vacas, trabalhar na lavoura para produzir os alimentos que consumiam, sair para fazer compras na cidade – acompanhados por soldados armados de metralhadoras – e até jogar futebol. Os tripulantes, que nos anos anteriores haviam se casado com brasileiras, podiam receber visitas nessas cabanas. Os músicos da orquestra do navio animavam o ambiente e eram até chamados para tocar nas festas da cidade. O cozinheiro do navio assumiu a cozinha do campo e servia pratos refinados aos oficiais brasileiros. Somente uma vez os prisioneiros se rebelaram e tentaram fugir, sendo temporariamente mantidos na cadeia pública local.
Já em Guaratinguetá, o regime era bem mais rígido. O trabalho nas lavouras começava cedo e terminava à noite. Não havia regalias. O contato externo era proibido e invariavelmente só se comia arroz com feijão. Um dos prisioneiros desse campo, Horst Jüdes, ex-aprendiz do Windhuk que tinha apenas 19 anos à época, não sentiu ter vivido propriamente em um campo de concentração, e sim em um “presídio”. Assim como os demais, ele fora isolado e impedido de enviar mensagens aos familiares na Alemanha.
A maioria dos tripulantes eram jovens na faixa dos 20 anos. Em março de 1944, a ex-babá do Windhuk, Hildegard Braak, nascida em 1916, deu à luz a Carl Braack, o primeiro e único a nascer em um campo de concentração no Brasil. Conforme relatou, em Pindamonhangaba os tripulantes não pensavam em rebeliões ou fugas. “Estávamos bem lá. Para que fugir? Só esperamos, então, o fim da guerra”.
Enquanto a Europa era devastada, os prisioneiros ficavam isolados dos acontecimentos. Não tinham acesso a rádios nem jornais, e toda a correspondência era censurada. Em 1945, precipitava-se a derrocada do Reich em todas as frentes. Na segunda quinzena de abril, os russos cercaram Berlim e penetraram na cidade.
A mais destrutiva guerra de todos tempos – cujo saldo trágico ultrapassou os 40 milhões de mortos –, praticamente terminava em 8 de maio de 1945 com a rendição formal da Alemanha nazista. Os prisioneiros nos campos de São Paulo, no entanto, só foram libertados três meses depois, em agosto, com a capitulação definitiva do Japão, arrasado por duas bombas atômicas. No ano seguinte um navio é colocado à disposição para levá-los à Alemanha.
Apesar das hostilidades sofridas, não ficaram traumas e cerca de 90% dos prisioneiros resolveu ficar no país, de acordo com o jornalista Camões Filho, autor do livro O Canto do Vento (que é o que significa Windhuk). Dos tripulantes do Windhuk, apenas um voltou à terra natal. O principal motivo, além dos atrativos naturais, se devia ao fato de as chances de sobrevivência aqui parecerem indubitavelmente maiores do que na alquebrada Alemanha do pós-guerra.
Tencionando progredir economicamente, espalharam-se pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Santa Catarina. Alguns subiram a Serra da Mantiqueira, que tanto admiravam do campo de concentração, e se transformaram nos principais responsáveis pelo sucesso hoteleiro e gastronômico de Campos do Jordão. Em Santos, na capital paulista e em Blumenau, destacaram-se no comércio, em especial no ramo de restaurantes. Hildegard foi para a Grande São Paulo, tornando-se pioneira no Brasil no estudo da ortóptica (ramo da oftalmologia em que, mediante exercícios oculares, se procura corrigir deformação de eixos visuais que não estejam coordenados de modo a proporcionar visão binocular normal), e vive até hoje em Santo André. O aprendiz Kurt Viol trabalhou no ramo de construção civil e ajudou a construir o estádio do Maracanã, na capital fluminense, e depois se tornou especialista em torrefação de café.
Windhuk, restaurante alemão em Moema
Aproveitando a experiência do período em que trabalharam na cozinha do Windhuk, em 1948 Wolfgang Gramberer e Rolf Stephan, que ficaram presos em Guaratinguetá, fundaram no bairro de Moema, zona sul de São Paulo, um bar com o mesmo nome da embarcação para congraçar os amigos e não deixar que a história fosse esquecida.
O bar passaria a outros proprietários até que Valfrido Krieger (natural de Santa Catarina) ingressou no bar como funcionário em 1964 e apenas nove meses depois adquiriu o estabelecimento. Ampliou as instalações e a estrutura e converteu o bar em restaurante alemão, cultivando suas tradições e a culinária, assim prosseguindo até os dias atuais.
Com mais de 50 anos de tradição, o restaurante Windhuk, todo decorado com objetos originais do navio, fotos e notícias, ocupa um majestoso chalé em estilo alpino em Moema. Todos os anos, no dia 7 de dezembro, os tripulantes remanescentes do Windhuk se reencontram no restaurante para comemorar a chegada ao Brasil e relembrar a aventura.
Quanto ao destino do Windhuk, o que se sabe é que foi rebocado, reparado e reformado pelos norte-americanos, que o rebatizaram de USS Le Jeune e o utilizaram para transporte de tropas nas guerras da Coréia e do Vietnã. Mais tarde teria sido visto com peregrinos em águas filipinas e desde então correm boatos de que terminou seus dias em algum ferro-velho da Ásia. Seu sino de cobre original ainda hoje ressoa em um quartel nos campos de treinamento do exército norte-americano na Califórnia.
(parte do texto extraído do estudo original do historiador Cláudio Tsuyoshi Suenaga – Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista – Unesp)