Recentemente restaurada, a Sala Princesa Isabel, que nasceu em 1888 na Cadeia Velha e ocupa o Paço Municipal desde 1939, revela em suas paredes um desenho que pode desvendar a inspiração de um ícone santista.
Santos, 27 de novembro de 1884. A cidade santista estava eufórica com a presença de Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Grabriela Rafaela Gonzaga de Bourbon Duas Sicílias e Bragança (sim, isso tudo é um nome só!). E não era pra menos. Afinal, aquela era a primeira vez que a Princesa Imperial do Brasil, herdeira direta do trono, pisava no solo natal de José Bonifácio de Andrada e Silva, falecido tutor de D. Pedro II, seu pai. Isabel também estava feliz, acompanhada do marido, o Príncipe Imperial Consorte, Gastão de Orléans, o Conde D’Eu; dos filhos, Pedro (9 anos), Luís (6) e Antônio (3) e de grande comitiva. No entanto, aquela fora uma visita rápida. Na verdade, praticamente uma passagem relâmpago pela vetusta cidade portuária. É que havia uma embarcação (um paquete) atracada no cais do Valongo à espera de Isabel e seus acompanhantes, com destino à Paranaguá (PR).
Nas pouco mais de três horas que estiveram na cidade, Isabel e Conde D’Eu visitaram a Santa Casa, a Beneficência Portuguesa, a Igreja Matriz e a praia da Barra (Boqueirão), além da Câmara Municipal que, à época, situava-se na atual “Cadeia Velha” (Casa de Câmara e Cadeia). Sempre muito simpática e atenciosa, a mulher que chegou a comandar diretamente o Brasil por duas vezes até então (entre maio de 1871 e março de 1872 e entre março de 1876 e setembro de 1877) como Regente do Império, ouviu os anseios dos representantes do povo santista e comprometeu-se a interceder junto ao pai, o Imperador, em questões pontuais. As autoridades locais se mostraram satisfeitas e impressionadas com a sabedoria e habilidade política da princesa.
Quatro anos depois desta passagem, em maio de 1888, a princesa protagonizaria um dos maiores feitos históricos do Brasil Imperial, novamente na qualidade de Regente, posto que voltaria a ocupar em junho de 1885, determinando o fim da abominável prática da escravidão no Brasil. O ato lhe garantiu a alcunha de “Redentora”. A cidade de Santos, claramente alinhada aos preceitos do abolicionismo, decidiu, então, perpetuar uma homenagem à altura do magnânimo gesto, nominando a sala de sessões da vereança com o nome da Princesa Imperial.
As três salas da Câmara
A primeira “Sala Princesa Isabel”, assim, funcionava na parte superior da atual Cadeia Velha até 1896, ano em que a Câmara Municipal passou a ocupar um dos blocos dos famosos Casarões do Valongo, erguidos defronte à estação de trem (atual Museu Pelé). A nova sede da municipalidade, totalmente adaptada para as atividades políticas locais, foi decorada com o que havia de melhor em termos de mobiliário. Além disso, nas paredes havia os retratos dos primeiros presidentes do Brasil, desde o Marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891) e, em lugar de destaque, um enorme quadro retratando o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, inventor do aeróstato, numa bela obra assinada por Benedicto Calixto.
Ali nos Casarões do Valongo, Largo Marquês de Monte Alegre, a sala de sessões “Princesa Isabel” existiu até 1939, quando foi novamente transferida, desta vez para um espaço definitivo e próprio (no Valongo, a municipalidade pagava aluguel), construído às margens da remodelada Praça Mauá: o suntuoso Palácio José Bonifácio de Andrada e Silva.
A sala de sessões da Câmara Municipal do novo Paço impressionou a cidade por ostentar luxo e beleza, alinhado à riqueza ditada pela própria edificação projetada por Plínio Botelho do Amaral. No centro do espaço, um imponente lustre com cristais da Bohemia irradiava luz intensa ao ambiente, revelando as obras de arte estampadas nas paredes e em quadros que retratavam figuras históricas como Martim Afonso de Sousa, o colonizador; Braz Cubas, o fundador de Santos; e a própria Princesa Isabel, a homenageada, num trabalho assinado pelo pintor italiano Ângelo Cantú. Somado aos vitrais que descrevem a Liberdade, a Justiça, a Caridade e a Nacionalidade; ao mobiliário construído em madeira nobre; ao piso em tacos de altíssima qualidade e aos murais que revelam a força do trabalho e da educação santista, a essência do lugar que evoca à lembrança de uma das mulheres mais importantes da história brasileira, se mantém viva e provoca uma sensação de orgulho a todo santista que lá adentra. Afinal, cada detalhe daquele lugar é um mergulho na história.
Um novo “mistério” para a cidade
Há cerca de dez dias, estive visitando a Sala Princesa Isabel a convite do Cerimonial da Prefeitura para opinar sobre alguns detalhes antes de sua inauguração. Aproveitei para contemplar a beleza do restauro promovido no lugar e fiquei encantado com o resultado do trabalho realizado. Fazia tempo que não entrava ali e desfrutei da oportunidade para empreender uma nova leitura do local, uma leitura mais detalhada e lastreada na bagagem histórica adquirida nestes anos todos de pesquisa sobre a memória santense.
A determinado momento, eis que meu olhar se volta para uma das paredes laterais, situada quase na saída para o salão nobre da antiga Câmara. Eu fico paralisado e bastante intrigado ao vislumbrar uma composição geométrica extremamente familiar desenhada em relevo numa placa de mármore incrustada numa parede de granito. Ato contínuo, me volto aos meus acompanhantes e lhes indago: – O que vocês veem ali? – Imediatamente todos me respondem: – O desenho da mureta do canal.
Sim, não havia dúvidas. Apesar de apresentada numa proporção diferente e forma ligeiramente alterada, era um desenho muito, mas muito próximo da composição clássica da famosa mureta que nasceu em 1945 na avenida Almirante Saldanha da Gama, na Ponta da Praia, e que ganhou a cidade ao longo das décadas para se tornar um dos símbolos de Santos.
– Com certeza esse desenho foi inspirado na mureta. Talvez uma homenagem – disse um dos meus acompanhantes. Eu balancei a cabeça. – Absolutamente! Isso não seria possível. Esta parede é original e foi aqui colocada quando da construção do Paço Municipal, em 1938. Sendo assim, é anterior à mureta, pelo menos uns cinco anos, retruquei.
No mesmo dia pesquisei junto aos arquivos iconográficos (de fotos) da Fundação Arquivo e Memória de Santos por imagens do Paço no ano de sua inauguração (janeiro de 1939). E lá estava a parede, do mesmo jeito que encontrei e fotografei.
Diante do fato, fica aqui uma questão para a história das muretas dos canais. Será que seu desenho, por algum motivo, foi inspirado por esta arte entalhada nas paredes da Sala Princesa Isabel? Não seria algo a descartar. Afinal, o desenho da mureta surgiu poucos anos depois, proposta pelo departamento de obras da Prefeitura, assinado por Carlos Lang. E então? Que tal mais esta pimenta para a memória santista?
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A SALA PRINCESA ISABEL HOJE. FOTOS: SERGIO WILLIANS