Incêndio no cargueiro grego se tornou uma das lições mais duras do sistema portuário. Embarcação ainda assombrou o canal do porto por quase 40 anos.
Santos, 8 de janeiro de 1974. Era o final de tarde de uma terça-feira agitada no porto de Santos. Entre os armazéns 30 e 31 da Companhia Docas, um cargueiro de bandeira grega, o Ais Giorgis, estava descarregando uma ampla variedade de produtos, inclusive diversos de natureza química, como o nitrato de sódio – matéria-prima utilizada para a fabricação de fertilizantes, explosivos, vidros, fogos de artifício, adesivos, aditivos de pinturas e reativos fotográficos. Enquanto os estivadores ali escalados realizavam a complexa tarefa de retirar a carga nos porões da embarcação, uma apreensão começava a pairar no ar. Algo parecia fora do normal, pois o material “ardia” nas mãos de alguns deles. Do lado externo do navio, um vagão aberto (galera) da Companhia Docas, que estava sendo carregado com o nitrato, emitia indícios visíveis de fumaça, acentuando ainda mais a inquietação no ambiente portuário.
Algumas horas antes, na parte da manhã, 11h15, a pouca distância dali, na sede da Capitania dos Portos, localizada na avenida Conselheiro Nébias, a comunidade portuária celebrava a transmissão de cargo para o novo capitão dos portos, Nuno Marques Pillar. Entre sorrisos e congratulações, o recém-nomeado comandante jamais poderia prever que seu início de incumbência seria eternizado por um dos mais significativos incidentes na história do porto santista. Ainda confraternizando com a recente posse, Pillar e seus comandados receberam a perturbadora notícia de que um incêndio significativo havia começado por volta das 21h30, no vagão ferroviário nº 40, de jurisdição da Cia. Docas de Santos.
As chamas haviam se espalhado rapidamente no local. No entanto, a pronta intervenção do Corpo de Bombeiros, que fora acionado pelo Plano de Auxílio Mútuo (PAM), conseguiu contê-las após uma luta intensa. O PAM previa a intervenção do grupo de combate a incêndios da cidade em casos emergenciais de grande magnitude na faixa de cais.
Contudo, enquanto os bombeiros se ocupavam do vagão, poucos perceberam a incidência de dois efeitos colaterais gerados pela situação. O primeiro foi o intenso calor no casco do navio grego. Superaquecido, o porão do Ais Giorgis havia se tornado uma verdadeira ameaça, uma bomba-relógio. O segundo, e pior, foi que uma “lingada” (carga com vários sacos amarradas e levantadas por um guindaste) com nitrato foi devolvida ao navio após o início do fogo na galera. E esta, sem que ninguém percebesse, trazia focos de incêndio, sendo esta uma das causas do alastramento do fogo para dentro do Ais Giorgis.
Inferno no Porto
Com o fogo iniciado no interior do navio, as chamas rapidamente atingiram as demais cargas, que eram igualmente inflamáveis. Eram 21h55, quando os marinheiros do cargueiro, compostos por gregos e egípcios (26 homens e duas mulheres), perceberam o novo foco de incêndio enquanto assistiam à luta dos bombeiros na galera ferroviária. Alarmados, eles desembarcaram e suplicaram a intervenção dos soldados santistas, que prontamente se dirigiram ao convés do navio para combater o fogo nas áreas de carga.
Diante da situação grave e descontrolável, o comando da brigada ordenou a retirada dos homens do convés do Ais Giorgis. Pouco tempo depois, o novo comandante da Capitania dos Portos chegava ao armazém 30, porém a situação já estava crítica. Às 22h25, diante da impossibilidade de controlar o fogo, mesmo com os reforços, uma decisão mais severa precisava ser tomada em relação ao navio em chamas, que passou a representar uma ameaça aos armazéns e às embarcações vizinhas, como os cargueiros Altenburg, Itapuí e Itatinga, atracados nas proximidades e também carregados de materiais altamente inflamáveis. A decisão foi conduzir o navio em chamas para o meio do canal do estuário.
Antes das 23 horas, fortes explosões ecoaram pela cidade. As chamas do colossal incêndio no Ais Giorgis alcançaram incríveis 50 metros de altura, proporcionando um espetáculo aterrorizante para quem observava na direção do cais. Aquela se tornara, sem dúvida, a maior ocorrência do gênero na história do porto santista.
Morte no canal
O então diretor de tráfego da Companhia Docas de Santos, Saulo Viana, havia determinado a retirada imediata do navio em chamas do cais de atracação. Para conduzir a tarefa árdua e perigosa, dois rebocadores da empresa Wilson Sons foram mobilizados. A responsabilidade de puxar o Ais Giorgis para o centro do canal do estuário recaiu sobre eles. Durante a operação de rebocagem, permaneceram a bordo do navio grego o sargento Francisco, do Corpo de Bombeiros; o estivador Manuel Mendes Feijó; e o portuário Marcelo Martin Vicente, membro da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) do porto.
Seguindo o combinado, os três planejavam deixar a embarcação após tê-la posicionado no centro do canal, distante das margens do estuário. O meio de fuga era um cabo amarrado na proa do navio, conectado a um dos rebocadores. Após a travessia bem-sucedida do bombeiro Francisco e do estivador Manuel, uma poderosa explosão abalou o Ais Giorgis, resultando na queda do portuário Marcelo, que ainda estava pendurado no cabo, nas águas em chamas. Ele afundou e desapareceu nas escuras aguas do estuário e só seria encontrado, sem vida, dois dias depois. Marcelo se tornaria um herói para a cidade.
Um entrave no porto
O Ais Giorgis ainda permaneceu em chamas no meio do estuário por mais dois dias, até encalhar na altura do Armazém 25, onde hoje está o Terminal de Passageiros da Concais. Cinco anos após o ocorrido, em 1979, uma empresa (Jommag) adquiriu o navio e empreendeu uma operação para reflutuá-lo até suas instalações em Vicente de Carvalho, Guarujá, na Margem Esquerda do Porto, com o propósito de desmontá-lo. Contudo, na madrugada de 8 de julho daquele ano, um vendaval severo rompeu as amarras da embarcação, arrastando-a de volta para o meio do estuário, tornando-o mais uma vez um considerável obstáculo para a navegação. Somente vinte anos mais tarde, em 1999, a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), que assumiu a gestão do porto em substituição à Companhia Docas, conseguiu remover uma parte da embarcação. No entanto, uma porção ainda considerável do casco permanecia submersa no estuário. Nestes destroços, havia uma quantidade significativa, de 150 m3, de lama contaminada por poluentes. O Ais Giorgis era a vergonha do cais santista.
Em novembro de 2011, a área onde o navio ainda permanecia submerso foi delimitada por boias de sinalização. Sua carcaça impedia a passagem simultânea de dois navios. Diante desse cenário, a Codesp tomou a iniciativa de contratar uma empresa para realizar a retirada dos destroços, com prazo estipulado até março de 2012. Porém, a conclusão desse complexo processo somente se findou em 18 de janeiro de 2013, quando os últimos destroços do Ais Giorgis foram finalmente removidos, encerrando assim um dos dramas mais longos da história do porto santista.