Obras, cujos originais se encontram em um Museu da África do Sul e no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, estão entre as mais antigas produzidas na cidade de Santos
Em 1825, o Brasil era um país muito jovem (apenas três anos de idade, desde a Proclamação da Independência, em 1822), e tentava buscar na comunidade internacional o seu reconhecimento como nação autônoma. Os principais aliados dos brasileiros, os britânicos, faziam o papel de interlocutores entre o recém criado Império comandado por D. Pedro I e a Corte de Portugal. A Inglaterra não desejava apenas consolidar uma relação amistosa do reino lusitano para com sua antiga colônia mas, sobretudo, preservar sua ascendência econômica sobre o Brasil, garantindo a vigência e ampliação dos acordos estabelecidos pelo tratado comercial anglo-português de 1810. Assim, encarregado de negociar as bases deste reconhecimento, o diplomata Sir Charles Stuart partia para o Brasil com uma comissão eclética, composta, além dele, do seu secretário, lorde Marcus Hill, dois oficiais do exército britânico, um médico e um cirurgião-assistente, um artista (Charles Landseer), um botânico (William John Burchell), um “foreign clerk” e sete criados.
A missão inglesa, além do papel diplomático original, desembarcou no Brasil com intensões de aprofudar o conhecimento sobre a geografia, a fauna e a flora do jovem país. Assim, o grupo explorou, de março de 1825 a maio de 1826, boa parte do território brasileiro, em especial o Nordeste e o litoral sul, até Santa Catarina. Nesta longa jornada, dois de seus membros, o artista plástico Charles Landseer (26 anos) e o botânico William Burchell (44 anos), produziram centenas de desenhos e pinturas que retratavam as belezas e peculiaridades da exótica nação sulamericana.
Santos, ponto de partida da Expedição de Burchell
Ao término da peregrinação da “Missão Stuart”, o diplomata e seu séquito retornavam à Inglaterra, em maio de 1826, mas sem William Burchell que, encantado com o que vira no Brasil, resolveu esticar a estada por conta própria. Assim, a partir de setembro daquele mesmo ano, o naturalista empreendeu uma expedição independente, com o intuito de promover pesquisas científicas não só no Brasil, mas também no Peru, na Argentina e na Bolívia. E o ponto de partida do botânico inglês se daria na pequena vila portuária de Santos.
Burchell tomou o navio “Aurora” na capital imperial no dia 10 de setembro de 1826 e, cinco dias depois, desembarcou na terra de José Bonifácio de Andrada e Silva. O inglês vinha acompanhado apenas de seu escravo Joaquim (ou “Congo”, como aparece nos registros de sua expedição). Na vila santista e em Cubatão, ao contrário do que se esperava inicialmente, Burchell ficou mais de cinco meses (até o final de fevereiro de 1827), analisando o cotidiano das localidades e retratando-as em aquarelas lindíssimas, que acabaram constituindo um conjunto de imagens que, certamente, estão entre as mais antigas da história de Santos.
A vila portuária paulista não era desconhecida de Burchell, que já havia estado ali meses antes, acompanhado de Stuart, Landseer e companhia. Nas duas visitas o inglês produziu aquarelas significativas para a história santista, como a que exibe o Outeiro de Santa Catarina e sua capela (única retratação fiel da pequena edificação religiosa). O naturalista também retratou o Valongo, com uma bela representação da Igreja e Convento de Santo Antonio; a Rua Direita (atual XV de Novembro); a Igreja Jesus, Maria e José; o Porto Geral de Cubatão (em dois ângulos da ponte sobre o Rio Cubatão e do aterrado), além de uma panorâmica da vila, provavelmente pintada a partir da Ilha Barnabé.
A saga das obras de Burchell
O naturalista, após deixar Santos, ingressou em uma longa jornada até Belém do Pará, percorrendo duas mil e quinhentas milhas pelo interior do Brasil. Na cidade amazônica, resolveu retornar à Inglaterra, após receber notícias sobre a doença de seu pai, o que fez com que abandonasse os planos de explorar Peru, Bolivia e Argentina. Em sua viagem para casa, levou na bagagem 7.200 espécimes botânicos, mais de 4.000 aves e cerca de 20.000 insetos, além do fiel companheiro Joaquim. Na mala, também levava mais de 250 desenhos e aquarelas, entre eles os produzidos na vila santista.
Depois de uma vida com alguns reconhecimentos do mundo acadêmico, Burchell se isolou e seu nome acabou esquecido. Em depressão, acabou tirando a própria vida em 23 de março de 1863, aos 81 anos de idade.
O legado, dividido
As obras produzidas por Burchell tomaram duas direções distintas. Parte ficara sob a guarda de Charles Stuart, o embaixador inglês, e outra parte com os herdeiros do botânico, que destinaram o material a parentes que residiam na África do Sul. Em 1934, várias aquarelas foram adquiridas por um colecionador daquele país, dr. J. G. Gubbins, que as repassafram para a Biblioteca da Universidade Witwatersrand, em Johannesburg (vale dizer que Burchell, antes da viagem ao Brasil, havia empreendido uma grande jornada à África do Sul, onde produziu centenas de aquarelas e outros desenhos sobre a fauna e flora locais).
Em 1968, a instituição vendeu as obras de Burchell para o Africana Museum, que se estabelecera em Johannesburg no ano de 1935 – a fim de contar a história da África do Sul – sob iniciativa do próprio dr. Gubbins, pouco antes de sua morte. Entre as aquarelas estavam algumas que retrataram a cidade de Santos em 1827. Tais originais de William John Burchell nunca foram expostos fora da África.
Álbum Highcliffe
Outra parte das obras produzidas no Brasil por Burchell, inclusive as da viagem entre Santos e Belém, ficou sob a tutela de Charles Stuart. Este material foi descoberto pelo historiador brasileiro Alberto do Rêgo Rangel, em 1924, no acervo do falecido diplomata inglês, situado na biblioteca do castelo da família, em Highcliffe, costa sul da Inglaterra. Em meio a 340 desenhos encadernados, havia cinco aquarelas originais de William Burchell sobre Santos. Em setembro de 1926, o álbum, intitulado “Highcliffe”, foi comprado pelo empresário carioca Guilherme Guinle. Em 1960, ele passou para as mãos de Cândido Guinle de Paula Machado e em 1999 acabou leiloado na Christie’s de Londres, adquirido então pelo Instituto Moreira Salles, do Rio de Janeiro, onde está até hoje.