De repente, parecia que o tempo entrava em uma marcha diferente, lenta, como um efeito visual de cinema em slowmotion. Alheios ao entorno e inseridos em uma paisagem totalmente fora do contexto natural, cerca de cinquenta homens e mulheres, bailarinos, executavam saltos mirabolantes nas consistentes areias do Gonzaga, fazendo arregalar os olhos de quem costumeiramente frequentava a praia tão somente para curtir o sol e banhar-se nas refrescantes águas atlânticas. Observando o balé perfeito, era possível até ouvir, na imaginação, uma peça clássica sob a batuta de Tchaikovsky ou Stravinsky.
Santos teve o privilégio de testemunhar uma apresentação, informal, de um dos maiores e mais conceituados grupos de balé do mundo, a Beriozka, um verdadeiro patrimônio cultural russo, formado no pós-guerra, em 1948, na hoje extinta União Soviética. A Beriozka nasceu de uma dissidência do Bolshoi (o mais antigo grupo de balé do mundo, de 1773), e partiu para uma linha de trabalho mais centrada nas raízes folclóricas russas. À custa de árduo treinamento e exercícios, seus bailarinos chegaram a um nível de aprimoramento quase perfeito da arte, reconhecido por críticos internacionais como um dos grandes do mundo da dança.
Em 1967, o Beriozka desembarcou no Brasil para uma breve excursão nos palcos do Rio de Janeiro e São Paulo. Vindos do Reino Unido, onde foram elogiados pela imprensa britânica como “o espetáculo mais refrescante assistido em Londres”, os soviéticos da Beriozka, acostumados com o rigor do frio euroasiático, diante do “inverno” brasileiro, desejaram mais do que nunca outro tipo de refresco, escolhendo Santos para concretizá-lo.
Balé ao som das ondas
Assim, numa bela manhã da primeira semana de junho de 1967, dois ônibus desceram a Serra do Mar, trazendo consigo os integrantes do Balé Beriozka, que haviam se apresentado em São Paulo, anunciados como o “mais popular do mundo”. Ao desembarcarem diante da praia do Gonzaga, os jovens bailarinos (a companhia só mantinha integrantes até a idade de 25 anos) desvencilharam-se das suas pesadas roupas e foram brincar e chapinhar na água como crianças em férias.
A ocasião ficou marcada entre os jornalistas brasileiros que acompanharam a passagem do grupo pelo Brasil. O jornalista do famoso semanário “O Cruzeiro”, Ary Vasconcelos, chegou a dizer: “Os públicos carioca e paulista ficaram deslumbrados com a apresentação do Beriozka. O entusiasmo começara com ‘Uma Tarde Sobre as Águas’, onde um grupo de moças ondulava o corpo com tanta graça e perfeição que todos ficaram com a ideia exata de que elas viajavam em um barco a vela. Outras danças do conjunto levaram também o público ao delírio, como a ‘Suíte Siberana’, ‘O Cisne’ (em que os braços das bailarinas se transformam em cisnes, com olhos rutilantes formados por anéis), ‘Os Brincalhões’ (onde os bailarinos revelam virtuosismo insuperável) e a ‘Grande Festa Cossaca’. Mas não menos interessante foi, sem dúvida, o espetáculo extra proporcionado, de graça, a alguns banhistas da praia de Santos. Russos grandes como ursos dando espantosos ‘tours en l’air’, soviéticas lindas fazendo ‘fouettés’ junto das ondas, iashins improvisados defendendo chutes à queima-roupa e metrevelis de araque em calção de banho. Horas depois todos trocavam o biquíni e vestiam novamente trajes típicos russos, alguns dos quais pesavam cerca de trinta quilos”.
Assim, os santistas puderam assistir algo que nenhum outro brasileiro teve oportunidade: o puro balé russo nas mágicas areias da cidade de Santos.