Você já ouviu falar de Heráldica? Não? Pois bem, trata-se da ciência (ou arte, dependendo do ponto de vista) que estuda a origem, a evolução e o significado dos emblemas blasônicos, assim como a descrição e a criação dos brasões (sejam eles de família ou de localidades – reinos, países, estados, cidades, vilas, etc).
Este tipo de arte remonta à época medieval, criada para que os guerreiros, nos campos de batalha, não cometessem o erro de travar combate com os próprios companheiros. Na antiguidade, quando os povos de raças diferentes se enfrentavam, a identificação mútua era, de certa forma, natural, uma vez que a simples distinção do biótipo humano facilitava o reconhecimento do adversário. Assim, os oponentes acabavam se diferenciando pela cor de pele, cabelos e até aspectos faciais.
Mas um dia esta diferença se estreitou por conta da miscigenação entre as raças. Então, para contornar os equivocos fatais, os impérios dominantes passaram a fazer uso de vestimentas e armas que os tornassem reconhecidos – e temidos – pelos inimigos. Um dos maiores exemplos neste sentido, na história da humanidade, foi a Legião Romana, exército que se fazia reconher à grande distância. Não havia quem não “tremesse na base” apenas ao identificar as cores e os símbolos dos soldados de Roma. Mesmo não adotando critérios específicos para construir sua marca, os legionários foram os precursores da simbologia de guerra.
Cores e animais
A gênese da heráldica, no entanto, só começou mesmo, pra valer, na Idade Média, baseando-se em simbologias descomplicadas, como faixas horizontais ou verticais, das mais variadas cores, ou desenhos singelos, como os da Cruz de Malta e a Cruz dos Templários (muito utilizadas no período das Cruzadas). Com o tempo, a arte heráldica foi incorporando outros elementos visuais, como figuras de animais e seres mitológicos, além de torres, lanças, corações etc..
Reinos, cidades e vilas
A “moda” pegou em todo o globo e atravessou os mares. Até mesmo o Brasil, logo que foi descoberto, ganhou seu símbolo heráldico. Com o passar dos séculos, a colônia portuguesa na América foi adotando como seu os brasões de seus soberanos, em especial os reis das dinastias de Avis e Bragança.
Porém, ao contrário do que acontecia na Europa, à exceção do Rio de Janeiro e Salvador, na Bahia, as vilas e cidades brasileiras não adotaram a simbologia heráldica, história que só foi mudando a partir do surgimento do império do Brasil, em 1822, ocasião em que a arte passou a ganhar força no jovem país, a fim de contemplar os membros da aristocracia emergente (duques, marqueses, condes, viscondes e barões).
O primeiro brasão santista, pioneiro em São Paulo
Apesar de ter sido alçada à condição de cidade em 1839, Santos só criou o seu próprio brasão de armas em 1888, um ano antes de seu cinquentenário. Ainda que “tardiamente”, foi o primeiro município paulista a adotar um símbolo heráldico.
O Brasão, usado como emblema da Câmara Municipal (importante dizer que nesta época ainda não existia a instituição “Prefeitura”, que só veio a ser criada em 1907), não fora criado, contudo, fielmente dentro dos preceitos da ciência heráldica, ou seja, não levou-se, a rigor, na sua elaboração visual, as condições econômicas, política-administrativas e geográficas da cidade. O desprezo a estes dados resultou em um brasão repleto de equívocos conceituais, principalmente nos formatos do escudo (formato não usual para localidades) e da coroa mural (com quatro torres, o que é característico para aldeias e não cidades).
Além disso, o brasão de armas pioneiro ainda não trazia o lema que caracterizava a alma santista: Patriam Charitatem et Libertatem Docui (À pátria, ensinei a caridade e liberdade).
O Brasão de Calixto
A última aplicação do velho símbolo da Câmara foi no “corpo” da estátua do fundador de Santos, Braz Cubas, inaugurada em 1908. De lá em diante, o brasão da cidade foi esquecido até que, na segunda metade da década de 1910, a Prefeitura contratou o famoso pintor Benedicto Calixto para produzir um novo.
Após debruçar-se por alguns anos sobre livros de heráldica para imaginar um símbolo à altura da história da cidade santista, Calixto entregou o trabalho no início de 1920, sendo instituído oficialmente pela Lei 638 daquele ano.
O problema é que, apesar de belíssimo, a nova identidade heráldica de Santos ainda persistiu em alguns erros conceituais, como o formato da coroa amurada (ainda com quatro torres, quando deveriam ser oito, além da cor, amarela, exclusiva de capitais, quando deveria ser cinza) e do escudo (tipo francês, com uma ponta, ao invés do português, de forma arredondada). Este último equivoco foi, inclusive, objeto de certo constrangimento quando da visita do presidente de Portugal a Santos, Craveiro Lopes, em 1957. Os lusitanos, grandes admiradores da arte heráldica, ao vislumbrarem o escudo santista, questionaram o então prefeito Silvio Fernandes Lopes se a cidade havia sido colonizada por franceses. Diante do espanto e da negativa do alcaide, os visitantes explicaram que havia um erro “grave” no formato do brasão, apontando a diferença dos estilos francês e português.
Apesar de errado do ponto de vista heráldico, o brasão santista foi sendo mantido pela administração ao longo dos anos, mesmo diante de propostas de mudanças, como as ocorridas em 1963 e 1981.
A mudança definitiva
Em 2001, o pesquisador Jaime Caldas e a historiadora Wilma Therezinha lideraram uma discussão para a reforma do brasão de armas de Santos, que acabou sendo executada e finalizada em 2004. O resultado é o símbolo que temos hoje, com coroa amurada e escudo corretos do ponto de vista heráldico.
Os detalhes do Brasão
Coroa Amurada – Define o status da localidade (aldeia, vila ou cidade). Santos, como cidade, tem oito torres (três à mostra, duas de lado e três ocultas – do outro lado).
Escudo – Abojado, padrão português e espanhol. Indica o país (ou Reino) que o fundou.
Suporte – Folhagem lateral. No caso de Santos, são ramos de café, que indicam a principal fonte econômica histórica da cidade.
Caduceu – Bastão entrelaçado com duas serpentes, que na parte superior tem um par de pequenas asas. Representa equilíbrio moral, boa conduta e sabedoria.
Esfera Armilar – Símbolo da navegação, indica o perfil santista como “cidade aberta para o mar”.
Banda verde e amarela – Referência ao fato de Santos ser a terra natal do patriarca da independência, José Bonifácio.
Faixa com lema: Patriam Charitatem et Libertatem Docui (À pátria, ensinei a caridade e liberdade). Caridade representada pela Santa Casa, o primeiro hospital do Brasil e liberdade pelo perfil santista nas lutas pela independência e libertação dos escravos.